1001 cartas para chegar até você escrita por Liliquinha


Capítulo 10
Capítulo 10 – Canção da Sereia




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/811098/chapter/10

Dormiu mal. O coração de Mônica estava apertado. Por que os dias traziam mais perguntas do que respostas? Levantou-se rapidamente e correu para o banho. O rosto tristinho de Cebola estava marcado em sua memória. Ela precisava de encontrá-lo e abraçá-lo. Elogiar as habilidades e inteligência dele não significava que ela queria que ele fosse embora –queria-o perto, ele devia já saber isso... Contudo, se tivessem que ficar longe para ele realizar seu sonho, ela o apoiaria, como sempre fizera e sempre faria. Terminou logo o banho e apressou-se para sair. Talvez conseguisse correr até a casa de Cebola para falar tudo o que sentia.

Ao trocar de roupa, viu a pasta das cartas em cima da escrivaninha e o coração parou. Será que aquilo era obra do Cebola? As pernas fraquejaram por um instante. Seria aquilo um plano de trazê-la para perto dele? Desistiu de correr até ele antes da aula. Ela passou tanto tempo atribuindo aquela “loucura” a DC, que nem cogitou o fato de “planos infalíveis” serem a marca registrada do Cebolinha, desde sempre. A constatação deveria deixá-la feliz, não? Por que se sentia mais decepcionada do que contente?

Os passos seguintes foram todos executados no automático. Se por um lado seria um ato de romantismo do amigo de infância, também seria mais uma vez que ele brinca com ela. Será que nesses anos todos a única coisa que mudou é que ele não troca mais as letras? Além disso, por que ele faria questão de ter uma máquina de escrever para datilografar as cartas se ele tinha em casa um computador de última geração e uma impressora maravilhosa? O que ele ganharia com isso? Provar que além de gênio, Cebola também era um “gênio literário”? Não. As piores notas de Cebola são nas áreas de humanas, especificamente literatura. Por mais que ele saiba decorar fórmulas matemáticas, conceitos da física e química, e que lembrar datas e momentos históricos fosse fácil para ele, escrever não era seu forte. Suas redações classificavam-se como “passáveis”. Cebola conseguia expressar bem sua argumentação, mas florear um texto, trabalhar com gêneros literários, isso são expertises que ele não tem. E se ele escrevesse cartas pra ela, seriam cartas, não? Seguiriam a fórmula típica, data e local, remetente; teria uma mensagem clara e objetiva, não seriam trechos de histórias que se entrelaçam. Por mais que pudesse ser ele, não seria. Não é?

Durante a aula e no intervalo, não pôde deixar de observá-lo, como se estudasse seus hábitos, suas manias, os temas de conversa... Por incrível que pareça, descobriu uma ou duas coisas que ela não sabia; ou se sabia, não se lembrava. Nunca se conhece uma pessoa por inteiro... As aulas passaram rápido e os dois voltaram para casa juntos, conversando sobre amenidades. Não teve coragem de perguntar sobre as cartas nem falar sobre planos do futuro, talvez quisesse aproveitar um pouco mais o presente. Ao chegar em casa, evitou a caixa de correio. Almoçou, foi para o quarto e descansou um pouco. Decidiu acabar logo com o drama e foi até a caixa de correspondências. Nada. Foi até a mãe, que estava assistindo à televisão enquanto passava roupa, e perguntou sobre o correio. Respondeu que não tinha carta. Estranho.

Nada de carta? Seria por causa do ensaio? DC não deve ter tido tempo com essa correria... Não, não era ele quem mandava, não foi isso que ele disse? Qual seria a explicação lógica? Mônica riu. Não tinha lógica. Ela nem ao menos sabia quem era o remetente, como poderia saber o que o motivou a não mandar uma carta justo hoje. Teve uma ideia ótima: se ainda não tinha recebido a carta, e havia de recebê-la (porque era esse o padrão), ficaria de tocaia até ver o carteiro. Por isso, foi estudar na varanda. O posto de observação dava-lhe uma visão privilegiada da entrada da casa e da caixa postal.

Passou o dia todo tentando ler a matéria, agoniada toda vez que via alguém se aproximar de sua caixa de correio, mas nenhum conhecido e também nenhuma carta. Suspirou... A história não tinha acabado, por que as cartas parariam de chegar? Além do mais, já tinha se acostumado a elas; seria estranho demais não receber a continuação, queria saber como acaba... Pensou nas personagens, nas tramas, na missão de Farhad, no tesouro do mercador, etc. O que iria acontecer a eles? Concluiu que um dia a história teria um fim. As cartas acabariam... O alarme do celular soou: 16h, hora do ensaio!

O coração bateu forte. Mônica queria atrasar um pouquinho para não correr o risco de ficar a sós com DC. Por quê? Estava confusa demais sobre aquela situação toda e conversar com ele não a ajudava em nada. Por sorte Cebola, como se tivesse uma bola de cristal, passou na casa dela: veio “buscá-la” para irem juntos para o ensaio. Ela sorriu e concordou com o convite. Conversaram um pouco durante o caminho, sobre a escola e a matéria que ela não conseguiu prestar atenção. DC não morava longe, o que era bom. E também explicava a eficácia até então do correio mágico... Cascão já tinha chegado com a namorada. Maria Cascuda segurava o caderninho, estudando mais um pouquinho. Nenhuma precaução é demais se tratando do vestibular no fim do ano.

— Não é como se você fosse perder tempo vendo a gente ensaiar, só hoje. – disse Cascão, meio magoado.

 – Eu sei, amor, mas é só para garantir. O ensaio pode demorar... E eu posso aproveitar... – O namorado tentou mais uma vez argumentar, mas era inútil. Era mais fácil concordar.

— Oi, galera. – os dois cumprimentaram.

As mãos dadas foram acidentais. Para dizer a verdade, Mônica nem reparou que estava de mãos dadas com o Cebola até ele soltar sua mão para abraçar Maria Cascuda.

— Só falta a Magali, então... – comentou Cebola.

— Atrasou? – perguntou Mônica.

— Não, ela foi no banheiro. Já deve estar voltando. – Respondeu DC, de costas para o restante, mexendo no computador. Levantou-se com umas folhas de papel impressas com os arranjos para cada instrumento – A letra está com a Magá, ela quem vai cantar hoje. Aqui estão os arranjos, podem ir aquecendo se quiserem.

Depois que entregou o papel para cada um, voltou a sentar-se de frente para o computador, mexendo no software de gravação. O ar parecia gélido naquele instante. Cascão foi para a bateria, Cebola pegou a guitarra que ele mesmo trouxe, e DC com o violão e uma gaita. Magali chegou bem na hora, com a folha na mão. Colocou a folha no suporte do teclado.

— Vamos começar?

O ritmo era até simples. Primeiro, DC passou a melodia no violão para ditar o ritmo que queria, enquanto Magali cantarolava para assimilar o tempo. O som embalava e era bem gostoso, apesar de não ser nada fora de órbita ou experimental demais... Seguindo a partitura, Cebola dedilhava a guitarra; o violão, agora nas mãos de Mônica, acompanhava. Os dois nasceram um para o outro...

Cascão na bateria fazia-a até parecer delicada, se é que era possível... Ritmada com batidas constantes e sutis. A gaita seguia melancólica e arrastada, fazendo jus ao fato de ser instrumento de sopro. O teclado com som de piano também trazia um pouco de melancolia. A hora de entrar a voz era demorada, deixando Mônica ansiosa a esperar... Que letra estaria por vir? Um ajuste aqui e ali no tempo e nas notas. Canetas vermelhas nas folhas. Depois de umas três tentativas o grupo já estava harmonizando, agora mais familiarizados com a melodia. Na quinta vez, tocaram a versão instrumental, com mínimo de erros. Na sétima, finalmente ouviriam a letra:

É um convite atrevido,

Mas passa comigo

Mil e uma noites de amor...

Me leva pro quarto,

Me lê como um livro...

De olhos fechados,

Meus pontilhados

Se leem com as mãos

 

Decifra e me devora...

Repete por horas

Seculares juras de amor

Me sufoca com beijos,

Chama ardendo em desejo

Sem pressa, que o sol não chegou...

Entre beijos e afagos,

sonhos molhados

Nos seus braços é onde

a felicidade se esconde

não adianta negar

Teus olhos têm magia

Tramam teus lábios

Doces fantasias

Maravilhosas mentiras,

Segredos a desvendar

Você já sabe

mil e uma ainda é pouco

para tanto desejo

Capaz de nem saciar

No final das contas

Quando a história não acabar

Você vai querer mais

do que eu tenho para dar?

Com prazer te daria

todos meus dias,

basta você desejar

Fica comigo

uma porção de meses

um punhado de vezes...

mesmo que o “felizes para sempre”

possa não durar

Uma noite apenas,

mil promessas pequenas,

Te dou a eternidade

em troca de cada segundo

que você quiser me dar

Quando a música terminou, Mônica sentia as faces coradas. Seria uma indireta? DC tinha um sorriso para o grupo, satisfeito com a primeira versão, talvez um ajuste aqui e ali no tempo da voz. A guitarra também podia acelerar em alguns pontos. O violão precisava deixar as cordas vibrarem mais aqui e ali. A bateria estava ótima, só um ponto que os pratos estão mais estridentes do que deveriam. Mais uma vez! Na terceira, pareciam ter acertado, pelo o que ele conferiu na gravação do áudio. Maria Cascuda ficou impressionada com a seriedade do grupo, principalmente na postura quase profissional de DC, comentando que o ensaio era bem mais sério do que ela tinha imaginado.

— Você entende mesmo dessa coisa de música, né? – acrescentou a garota de cabelos loiros encaracolados, dirigindo-se ao rapaz de costas – Você leva mesmo jeito com música, DC... Foi você mesmo que escreveu a letra?

A pergunta parecia um pouco maldosa, mesmo que não fosse. Por causa da sincera indagação é que por uns instantes ele ficou sem reação, encarando-a com uma expressão enigmática.

— Maria, o menino fez aula! – Cascão interrompeu – Só não deixa ele começar a falar disso, pelo amor de deus, que senão a gente vai ficar a vida toda aqui...

— Quanto à letra, o Cascão deu uma ajudinha. – respondeu virando-se logo para encarar o computador.

Uma óbvia mentira que o outro não quis desmentir. Cascuda parabenizou o namorado e elogiou a letra. Deu um beijinho nos lábios dele.

— Então é por isso que eu tinha que vir, não? Agora você é o mestre dos planos infalíveis?

— Anos de experiência, né, amor? Você esqueceu que eu te prometi uma serenata? Só que meu som fica bem melhor quando tem outros para tocar junto...

Era mentira. Pensava Mônica. Ela olhava para DC ocupado com o computador. Provavelmente mexendo no arquivo de áudio. Era normal gravar os ensaios... Poderia ouvir a música o quanto quisesse. Mônica tomou coragem, aproximou-se dele para pedir uma cópia do áudio.

— Acho que eu podia melhorar um pouco no violão, se eu escutar mais da música, para ver os arranjos e o ritmo... – disse um tanto tímida e encabulada...

— É bom praticar com o violão, também. – Ele concordou sem nem se virar – A gente ficou tanto tempo sem tocar.

Por acaso ele inferia que ela não tinha ido bem? Sentiu a raiva subir um pouco. DC, alheio às reações temperamentais dela, virou-se para lhe entregar o pendrive com a música.

— Aqui. Amanhã você me devolve. – disse com um sorriso que a desarmou... O que ela queria? Foi ela quem disse que precisava ensaiar mais. Agradeceu com o risinho acanhado.

— A música é bem diferente do seu repertório, né? – disse Cebola cortando, aproximando-se dos dois, ficando ao lado de Mônica.

— É só uma canção de amor. – Desvencilhou DC – Todo mundo já escreveu uma.

— Você nunca se importou de escrever uma. Por que agora?

“Por que agora?” Essa pergunta fez Mônica parar de respirar por uns instantes.

— Continuo não me importando. Fiz, porque quis. Seria bobo e infantil deixar de escrever uma música de amor, só porque tantos outros já escreveram. Também serve para provar que eu sei escrever um dessas bobagens. Se não tivesse nenhum exemplar no meu repertório, podiam me acusar de não saber escrever músicas de amor... Não precisa ser uma manchete de jornal.

— A Denise discordaria. – falou Cascão rindo.

— Isso é problema dela, não meu... – respondeu em um tom seco. Como se tivesse mudado como um céu nublado de repente se abre em um céu ensolarado, DC levantou-se e dirigiu-se aos amigos de braços abertos – Ótimo ensaio, turma. Estão dispensados por hoje. Valeu.

Cascão e Cascuda foram os primeiros a se despedirem. Ele ia levá-la em casa, carregar as sacolas de compras. Cebola queria puxar Mônica, que parecia paralisada perto de DC. Ele de costas mexia ainda no computador, terminando alguma coisa com os arquivos de música. Magali aproximou-se dele com a folha da letra. Mônica viu de relance que era datilografada... Tá de brincadeira?!

— Ah DC, a letra ficou bem legal, se importa de eu levar para casa? Queria analisar a escansão dos versos e o jogo de rimas... Também queria até mostrar pro Quim, se você não se incomodar...

— Ah, sem problemas, Magá. Mas acho que ele ia preferir ouvir o áudio, os instrumentos dão uma boa melhorada na letra.

— Não precisa ser modesto, a letra é ótima, mas concordo que ele ia adorar ouvir a gente tocar.

— Vou dar uma mexida no som para ver como fica melhor, daí ele pode ouvir a versão melhorada. E se ele quiser vir para outro ensaio, está convidado.

— Sério?! Ia ser bem legal.

— Seria uma honra te ajudar a fazer uma serenata para seu namorado. Tudo pela igualdade de gêneros.

— Valeu, DC, vamos marcar depois um ensaio, sim. O Quim precisa sair um pouco da cozinha e eu ia gostar de fazer uma surpresa para ele. A ideia é bem romântica. – provocadora, ela deu uma cotovelada nele e perguntou: – Que bicho te mordeu?

— Ultimamente? – olhou-a nos olhos, sério – Acho que só pernilongo mesmo. – sorriu.

— Então, vamos? – Cebola perguntou mais alto para Mônica, puxando-a de leve.

— Ah, vamos esperar a Magali...

— Ah, vamos então. Obrigada de novo, DC. Que o cupido esteja sempre com você.

Cupido?

No caminho, Cebola parecia incomodado, talvez quisesse voltar só com a garota de quem gostava, mas não era má a companhia da amiga. Talvez só estivesse de mal humor por causa de outra coisa. Magali comentava alguma coisa que Mônica não conseguiria recordar nem se ameaçassem sua vida. Por fim, concordou apenas por concordar e perguntou timidamente se poderia ver a letra. Magali concordou prontamente, tirando-a da pasta dentro da bolsa.

Analisando o papel, percebeu que era bem parecido com o papel das cartas. As marcas dos tipos também eram parecidas, bem menos erros a serem corrigidos pelo corretivo, mas um ou outro que eram similares às correspondências anteriores. Não lia as palavras, estava tão absorta na matéria viva do escrito e no que ele representava que por um instante se perdeu completamente em pensamento. A voz de Cebola é que a tirou do transe:

— É uma letra bem ousada, não?

— É bem menos explícita do que muitas, mas tem umas indiretas... – concluiu Magali – Eu gostei bastante, principalmente das referências às Mil e uma noites.

— É, ele repetiu bastante isso. – menosprezou Cebola.

— Além das menções óbvias, também a escolha de certas palavras que têm a ver com os contos maravilhosos... A analogia a livros e leitura em braile. E também a parte sobre “história não acabar” é sobre a Sherazade... – os dois a encararam – Eu tive mais tempo com o texto que vocês... – defendeu-se tirando a folha da mão da amiga – Desculpa, pessoal, mas tenho que ir para casa, preciso terminar a matéria de história. Até mais, gente.

Despediram-se e retomaram o caminho para casa. Mônica estava tão absorta nos pensamentos sobre as indiretas de DC que acabou ignorando sem querer Cebola. Não conversaram, porque qualquer coisa que o rapaz falava não era recebida com muito entusiasmo, tendo respostas monossilábicas e curtas. Só saiu dos próprios pensamentos quando ele a chamou mais alto, já que tinham chegado na entrada da casa dela. Ela parou subitamente constrangida e despediram-se um tanto secos.

— Até mais, Cê.

O sorriso curto e a rapidez com que entrou em casa não eram convidativas. No corredor até a entrada, Mônica olhou para a caixa de correio... Não ia ter uma carta hoje? Seria ela a letra da música que ela nem pôde levar para a casa? Não teria nada para ler na intimidade de seu quarto? Afastou o pensamento. Resolveu corajosa olhar a caixa postal: não ia ter nada, mas não custava olhar, nem que fosse para se decepcionar. E lá estava um envelope branco com seu nome escrito. Agarrou o embrulho com uma alegria preenchendo seu coração e as faces corando ligeiramente. Os batimentos cardíacos descompassados a acompanharam ao entrar em casa, ao cumprimentar a mãe de longe, ao subir apressadamente as escadas e ao correr até o quarto, onde fechou a porta. Sentou-se à escrivaninha. Por um momento se esqueceu de tudo. Apressou-se para ler a carta:

***

Halam Al-Hakim sentou-se de frente para Princesa Layla Al-Jamilla. Bebeu um gole apenas do chá de hortelã e comeu uma única mordida do pão sírio antes de prosseguir sua história:

               Sentado no salão principal do Palácio de Cristal da Fada Jandira Al-Nour, Farhad Al-Naim escutava atentamente sobre sua missão: “Para chegar à morada da Deusa do Destino, é preciso descer ao polo sul, onde se encontram o Fim e o Começo do Mundo. O extremo Sul é uma região inóspita e bastante perigosa. Tua sobrevivência depende do quanto pode suportar o ar gélido e a escuridão de uma noite eterna. Caminha até encontrar as luzes da aurora boreal, pois é este o local exato para invocar Mut, a guardiã do portal. Para esta viagem, será necessário um transporte capaz de seguir tal distância e uma arma para derrotar a quimera. Posso apenas te dar uma pele que te sirva de escudo e que te proteja do frio.”

A Fada interrompeu a fala e levantou-se. Aproximou-se de uma de suas paredes de cristal e, tocando-a, fez com que partículas de diamantes voassem suspensas no ar, revoltas em um redemoinho gentil. Tilintavam, giravam, dançavam como se fossem pó mágico. Os dedos longos e finos da Fada manejavam os grãos de diamantes como quem brinca. Logo alinharam-se para formar um capote tal como a pelagem branca de um animal. Envolveu-a nos ombros de Farhad Al-Naim, vestindo-o com carinho. Sentiu-a macia e resistente. A Fada alertou-o: “Esta será tua armadura contra todos os desafios que enfrentarás. Se te fechares dentro dela, basta que feche os olhos por um minuto para transformar-te em um urso; tal forma o ajudará a chegar até a aurora boreal, quando sua montaria não conseguir suportar o frio. Basta fechar os olhos novamente até que sinta seu corpo mudar para que voltes a ser humano.” Farhad Al-Naim agradeceu-a com um sorriso satisfeito. A Fada afastou-se dele, talvez tímida. Continuou:

“Antes de tomar caminho ao Extremo Sul, Farhad Al-Naim, deverás primeiro ir à Fada Harb Sayida, senhora dos rochedos e vulcões, a quem pedirás material para forjar a espada do teu sucesso. O ferro de suas minas é mais resistente que qualquer carne; é capaz de cortar o mais duro diamante. Presenteia minha prima com esta rosa de gelo e não provoques sua ira, pois ela é guiada por paixões arrebatadoras e não é conhecida por ter o espírito dócil. Quando conseguires dela a matéria-prima, leva-a ao ferreiro Mannu, o único capaz de moldá-la, e peça-o para que forje a espada. Acredito que estas moedas de ouro serão suficiente pagamento para ele. É Mannu também quem poderá te dizer o paradeiro do alazão voador Zyan. Nenhuma outra montaria suportaria a longa distância ou seria mais veloz que ele. Dê-lhe estas maçãs de rubi. Sei que serás capaz de cativá-lo...” O sorriso gentil da Fada fez o rapaz corar e seu coração encheu-se de esperança.

A Fada Jandira Al-Nour entregou a ele tudo do que necessitaria para cumprir a missão: a rosa de gelo para a Fada dos Vulcões; moedas para pagar o ferreiro; maçãs de rubi para o cavalo Zyan; uma placa de cobre onde estava escrito o encantamento para invocar a quimera; e por fim presentes para a Deusa do Destino, contidos em uma caixa de madrepérola.

Jandira Al-Nour tinha o olhar triste, pois temia pela vida do jovem guerreiro. Talvez porque teria de esperar até que renascesse novamente para ter igual chance de liberdade; ou porque simplesmente gostaria de dividir com ele a última vida. De frente para o rapaz, ela ajeitou a pele de urso para garantir que estava bem colocada. Os olhos dos dois encontram-se, ambos os corações batiam descompassados. Havia amor e carinho em cada gesto dela.

Certificando-se de que ele tinha tudo que lhe seria necessário, a Fada Jandira Al-Nour conduziu-o até a varanda. O ar da noite brincava nos cabelos loiros dela. Ainda que estivesse vestindo a capa resistente, Farhad Al-Naim não pode evitar de sentir um arrepio percorrer a espinha e atribuiu a sensação ao frio que fazia. Com um sopro longo e gentil, a Fada Jandira Al-Nour fez uma nuvem materializar. Esta serviria de transporte para o rapaz até a Senhora dos Vulcões, cuja morada ficava a um dia de viagem. Aproximando-se do rapaz, a Fada segurou-lhe as faces e deu um beijo na testa dele. Seria isso a marca de sua proteção e benção. O jovem ficou sem ar. Afastando-se um passo, a Fada Jandira Al-Nour despediu-se: “Até o retorno, Farhad Al-Naim, que os ventos bons sempre o conduzam pelos caminhos certos.” Por sua vez, Farhad pegou nas mãos sedosas da Fada, segurou-as até seus lábios e beijou-os em forma de respeito e devoção. “Prometo que farei tudo a meu alcance, Fada Jandira Al-Nour, para ver-te livre e feliz. Que a sorte esteja do nosso lado. E que os ventos me tragam de volta vitorioso.” Despediu-se montando na nuvem e viu-se afastar com o vento gélido da noite.

O coração do jovem palpitava e ele desejava completar tão logo a missão para que pudesse ter a chance de ser feliz ao lado da amada. Rezava ao Alto que o permitisse reparar seu erro e que o coração da Fada pudesse então ter por ele um amor parecido com o que ele sentia. Indagava se o carinho e a gratidão seriam suficientes para fazê-la amá-lo e querer partilhar com ele sua vida. Refletia sobre seu passado e seu futuro, por isso não conseguia dormir, mesmo sendo embalado pela nuvem macia e o sutil movimento que fazia. Seu coração incerto e ansioso precisava acalmar-se e para isso Farhad Al-Naim passou a contemplar as possibilidades com racionalidade. Pensar impaciente na vitória o cegaria para os obstáculos a superar. Jamais poderia esquecer-se de que a missão era periculosa. Ainda que devesse manter as esperanças e confiar em seu sucesso, havia de considerar a sombra da derrota sempre a espreitar. Mesmo com todas as bençãos da Fada, ele não poderia consagrar-se vencedor nem ignorar os sacrifícios que lhe seriam exigidos. Fechou os olhos e respirou fundo. Devia ter fé.

Embora não tenha encontrado paz ou tenha dormido um minuto sequer, sentia-se descansado. Aos primeiros raios do amanhecer, quando viu as rajadas laranjas cortarem o céu ainda azul escuro, o rapaz deu-se conta que devia estar próximo de seu destino, e sentiu-se estremecer. A nuvem parecia ser empurrada por fortes lufadas de um vento furioso que o fariam chegar antes do previsto. Farhad Al-Naim concluiu que só lhe restava aguardar o inevitável confronto. Sem conseguir forçar-se ao sono, decidiu sentar-se na nuvem e ficar de olhos bem abertos.

O sol a pino resplandecia. No entanto, a paisagem acinzentada parecia espantar os luminosos raios solares, tornando o terreno mais tenebroso. A nuvem que o carregava ia de encontro ao planalto cor de chumbo. Desvaia-se apressada, obrigando o rapaz a se preparar para logo desmontá-la. Pôs os pés em chão firme. O solo era árido e escuro, formado por uma camada rugosa de várias pedras entrelaçadas. O ar estava coberto por uma camada densa de fumaça cinza que lhe enchia os pulmões. Farhad Al-Naim tossia, mas devia aproximar-se até o cume da montanha se quisesse falar com a Fada Harb Sayida. As solas dos sapatos não impediam seus pés de sentirem o calor que emanava do chão, ainda que o sentisse mais brando do que realmente devia ser. No rosto do rapaz, gotas de suor escorriam numerosas e constantes. Os olhos ardiam com a fumaça, dificultando-o de enxergar os passos adiante. Quanto mais próximo do ápice, mais densa ficava a neblina. Farhad Al-Naim admitiu para si que não conseguiria subir até o cume: seus pés queimavam, o ar nos pulmões parecia sufocá-lo, não enxergava mais o caminho. Quando se sentiu suficientemente perto, chamou pela Senhora das rochas e dos vulcões, desesperado e agonizando.

A terra começou a tremer sob os pés de Farhad Al-Naim. Pequenos sulcos abriram-se próximo de onde ele estava formando assim pequenos rios de lava. Encurralavam-no em uma armadilha de fogo. O ar ficou ainda mais denso e difícil de respirar. Tinha a sensação de que todos os metais fundidos tentavam entrar por suas vias aéreas. Cobriu o rosto com a capa para proteger-se. Observava atento o cume, mesmo que as lágrimas encobrissem sua visão. Lá abria-se uma cratera colossal onde borbulhava um lago do líquido incandescente, explodiam numerosas bolhas ferventes. Salpicavam pedrinhas brilhantes e faíscas. Da lava viscosa e ardente, saia uma figura similar à de um ser humano.

Parecia curvado no início, tal como se tivesse dificuldade de se erguer com o peso todo que o cobria. Apoiava-se nos braços a sua frente, procurando ter estabilidade. Mantinha a cabeça baixa. Os movimentos bruscos e engessados indicavam que não estava acostumado àquele corpo, assimilava-se mais a uma marionete desajeitada. Continuava a fazer movimentos rígidos e antinaturais, ajeitando incômodo o corpo em posições angulosas e estranhas. Aos poucos ia colocando as vértebras no lugar e assemelhando-se cada vez com um corpo feminino. Quando se deu por satisfeita com a forma, caminhou até Farhad Al-Naim.

 De frente para ele, erguia imponente o corpo de uma mulher alta. Sua pele tinha a textura áspera e rugosa. A superfície era formada por placas irregulares, contornadas por veias fundas e abertas, de onde se podiam ver os pequenos rios de lava correrem. Colorida por vários tons escuros de cinza, era do mesmo material que o restante do terreno. A solidez rochosa contrastava com instabilidade de um corpo formado de quebra-cabeças de onde pedrinhas e faíscas soltavam-se constantemente. Com a proximidade, o rapaz percebeu o quanto aquela figura era semelhante a uma boneca a qual se tinha dificuldade de manipular. A lava escorria do topo da cabeça como cabelos flamejantes e fluíam até a cratera. Supôs que a Fada Harb Sayida escolheu uma forma com a qual ele pudesse dialogar. Quando os olhos da marionete se abriram, além da cor laranja vívida da lava, Farhad Al-Naim pode ver ódio e raiva.

“Crápula miserável! O que veio fazer aqui?! Não me enganas. Não importa que forma tomes, que máscara uses, reconheço de longe a maldição que corre em tuas veias! Verme maldito! Como ousas chamar-me?! Vieste buscar a morte?! Pois então a encontre!” A voz da Fada Harb Sayida saiu a urros, suas palavras eram estrondosas e graves. Farhad Al-Naim entendeu que teria de enfrentar a ira provocada por Said Al-Faruk, novamente teria de remendar os erros de seu passado, mesmo sem saber como.

A Fada Harb Sayida avançava contra ele. Seus passos eram terremotos. Golpeava-o a murros violentos, acertando diversas vezes a pele de urso, alternando os braços. Farhad sentia falta de ar, escondia o rosto dentro da capa afim de evitar o ar contaminado e assumir uma pose defensiva. A lava dos cabelos fervilhava, respingando pequenas pedras e soltando ainda mais fumaça. O ar ao seu redor era insuportável e o calor era desumano. O rapaz procurava recuar, tomando o cuidado de não pisar nos vários sulcos de lava. Cabia a Farhad Al-Naim defender-se e suportar ao máximo os ataques. A capa de urso resistia à agressividade da Fada e protegia-lhe maravilhosamente. Com a voz abafada, o rapaz tentava convencê-la a ouvi-lo, mas ela o atacava sem cessar. Percebendo que seus golpes surtiam pouco efeito, já que ele se mantinha de pé, a Fada mudou de estratégia: transformou sua mão em um martelo e com pouco esforço arremessou-o para longe.

Farhad Al-Naim sentiu a força do golpe ainda que a pele tenha absorvido a maior parte do impacto. Infelizmente, ele perdera o equilíbrio e caiu de lado, deixando o rosto à mostra. A cabeça doía, a fumaça cegava-o e confundia os sentidos. Não sabia onde estava sua oponente, apenas sentiu a força de outro golpe, um chute talvez. Encolheu-se o melhor que pôde dentro da pele e fechou os olhos para refletir sobre a estratégia. Precisava recuperar-se rápido e recuar o quanto antes. Uma sensação estranha o tomou de assalto. Seu corpo passou por uma metamorfose em meio a luta. Levantou o novo corpo com altivez e soltou um urro. Sua adversária parou atônita. Talvez tão surpresa quanto ele, podia-se dizer.

A Fada Harb Sayida reconheceu a magia imediatamente. O urso diante de si estava confuso por causa da fumaça. Procurava fugir dela e acostumar-se ao próprio corpo que agora lhe era estranho. Em quatro patas, o animal fugia o mais rápido que conseguia. A Fada procurou dissipar o melhor que pôde a fumaça. Para impedir sua fuga, fez com que uma parede de pedra aparecesse de frente para ele. Não só o obstáculo físico conseguiu contê-lo, como o tremor da terra ao levantá-la, fez com que perdesse o equilíbrio.

 Farhad Al-Naim estava encurralado. Sua voz saia como os grunhidos de um animal que ele não compreendia. O ar parecia mais leve, a lava envolta de si tinha resfriado e a figura aproximava-se dele cautelosa, sem atacá-lo. O urso encolhia acuado, pressionando-se contra a parede. Espremia os olhos, bastante assustado, temendo as reações da oponente. O corpo experimentava nova metamorfose, retomando as formas que ele reconhecia. O olhar da Fada já não tinha mais a raiva que antes carregava, estava repleto de incerteza. Ela perguntou-o apreensiva como ele conseguiu realizar esta magia antiga. Farhad Al-Naim respondeu sincero: “Esta pele é um presente da Fada Jandira Al-Nour.” O olhar dela rejeitava tal proposição. Não acreditava em tamanha mentira e por isso preparou-se novamente para atacá-lo. O atraso de segundos da Fada fora o suficiente para que o rapaz tirasse da bolsa a rosa de gelo que levava, presente da prima.

Vendo a flor, a Fada Harb Sayida parou imediatamente. Por um momento, não esboçou reação alguma que não espanto. Ergueu o braço e estendeu-o suficiente para tocar o presente. Curiosa e atordoada, contemplava o singelo presente de sua amada prima. Aproveitando o momento, Farhad Al-Naim dirigiu-se a ela, ajoelhado:

“Não posso morrer por vossas mãos, magnífica Fada Harb Sayida. Antes de mais nada, preciso cumprir a missão incumbida pela Venerada Fada Jandira Al-Nour. Sigo em viagem até a Deusa Um-Carim Tamara Al-Miray pedir-lhe que desfaça o laço eterno e amaldiçoado que nos prende. Seguindo o comando dela é que venho até vós implorar que me dê material suficiente para a espada que me será essencial.” A Fada segurava a rosa de gelo com um olhar enigmático e até triste...

A voz do mercador de Zenóbia é cortada pelo vazio da ampulheta. O ar fica preso na garganta dos ouvintes, e a ansiedade é a única voz que se ouve.

***

Mônica já tinha se acostumado com a sensação de angústia que sentia ao terminar de ler as cartas. A curiosidade preenchia-a. Não adiantava procurar a continuação, ela só viria na carta seguinte, no dia seguinte. Deixou o corpo cair derrotado na cadeira, pendendo a cabeça para trás e suspirando frustrada. Lembrou-se do pendrive com a música. Seria bom poder ouvir mais uma vez a letra daquela canção de amor. Tirou-o ansiosa do bolso, depois pegou o notebook e ligou-o. Nunca sentiu que a máquina demorara tanto para responder. Por fim, conseguiu acessar o arquivo de música. Ao escutar, estranhou. Só havia o som de um violão melancólico e uma voz masculina entoava a canção. Ela parou a música alarmada com a situação. Resolveu pegar um fone de ouvido para que só ela e o computador soubessem do segredo daquela canção.

Respirou fundo para ter coragem e colocou para tocar desde o início. A voz era inconfundível. O dedilhar preguiçoso no violão ditava um ritmo melancólico e sôfrego, a voz embargada tinha uma sensualidade ímpar, apesar do tom faceiro e provocador da letra. Será que DC confundiu os arquivos e lhe passou o errado? Não. Ele lhe entregou o pendrive rápido demais. Nem tinha terminado de processar a música. Na hora ela nem fez caso, mas agora era tão óbvio. Ele queria que ela ouvisse essa versão, como se ele fizesse sua própria serenata.

A voz dele a embalava como uma hipnose. Deixou o áudio tocar em loop, ignorando o vácuo entre as repetições. Não queria que terminasse... Que mensagem estava por trás daquela letra? Resolveu digitá-la. Analisando as palavras, incorporou melhor que pode sua aula de Literatura. Não fazia só referências à Mil e uma noites, o eu-poético fazia um convite “atrevido”, pedindo para ser lido com os dedos; a chama é ambígua, porque é tanto sinônimo de fogo quanto o verbo “chamar”, é uma flama que arde ou uma pessoa que chama ardendo de desejo... E o mais engraçado, é que ele repetiu “desejo” 3 vezes, (ainda que o terceiro seja o verbo no infinitivo.) Deveria confrontá-lo? Exigir respostas? Desejava saber mesmo quais eram as intenções dele, pois naquele momento lhe pareceram óbvias. A voz dele em seu ouvido a convidava e uma parte dela queria aceitar o convite, mas a outra temia não poder aceitar.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "1001 cartas para chegar até você" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.