1001 cartas para chegar até você escrita por Liliquinha


Capítulo 8
Capítulo 8 – Mudanças necessárias, medidas drásticas




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Na segunda-feira, no meio da aula, um pensamento súbito lhe ocorreu. Ela precisava de mudar a tática! Até mesmo a Princesa cansou e mexeu na ampulheta para manipular o tempo. Por que a Dona da Rua ia ficar só sentada esperando pelas cartas? Por acaso ela era como a Rapunzel? Ia ficar trancada na torre o dia todo esperando o príncipe encantado pedi-la para jogar suas tranças de mel? E que príncipe mequetrefe é esse que no segundo dia mesmo não levou uma corda? Enfim, o importante agora era ter um plano. Qual? Bem, não sabia ainda... Contudo, ela cresceu ao lado do “mestre dos planos infalíveis”, foi vítima da maioria deles, conseguindo se livrar com uma eficácia de 99% das artimanhas. Como é que ela não saberia fazer um?

Até mesmo os Mutantes Espaciais conseguiram bolar uma alternativa para o inevitável fim do Mundo. Mônica Sousa conseguiria planejar alguma coisa. Ela precisava de respostas. Isso estava indo longe demais e ela nem sabia para qual direção. Iria novamente confrontá-lo, agora durante o intervalo das aulas. E o que ia ter de diferente desta vez? Ela não soube se responder. A segunda aula terminou sem ela nem perceber. Logo que a professora saiu, o prof. Licurgo entrou na sala com o xerox da prova surpresa. Antes mesmo de dizer bom dia já estava repassando para a sala toda as folhas. Ótimo, ela estudou para aquilo, seria moleza... Sendo sincera, não seria fácil assim, mas manejável.

As questões não eram difíceis, mas exigiam concentração. Colocou seu melhor nas respostas, focando o máximo que podia no exercício. O primeiro a acabar foi Cebola, entregando para o professor o papel com seu melhor sorriso desafiador. Licurgo decidiu corrigir ali mesmo. Será que faria isso com todos? Não. Os próximos que acabaram não muito depois tiveram a sorte de serem liberados para o intervalo. Só Cebola que não: tinha que ficar ao lado do professor enquanto ele corrigia lenta e sadicamente todas as questões, uma a uma. Mônica retinha a atenção o melhor que podia na própria folha, mas às vezes distraía-se. Sua atenção voltou-se toda para DC que entregava ao professor sua folha e levava para fora da sala seu violão.

Violão? Por que ele trouxe isso para escola? É porque ele tinha um, claro... Foco! Esforçou-se para terminar o restante dos exercícios o mais rápido que pôde. Magali ainda estava ocupada revisando pela terceira vez suas respostas e completando-as. Cascão estava forçando ao máximo os neurônios para responder as questões iniciais. Mônica apressou-se: precisava confrontar o outro a sós, o quanto antes, melhor. Terminou os exercícios, entregou ao professor. Sem olhar para o semblante desesperado de Cebola que a implorava para salvá-lo, ela saiu apressada.

No pátio, encontrou os colegas de classe comentando as respostas do exercício, comparando. Era óbvio que DC não estava no meio deles. Conseguiu avistá-lo ao longe, meio que escondido. Sentado em uma escadaria com o violão no colo. A gazela já estava afastada do bando; isolada, a presa é mais suscetível a um ataque surpresa. Perfeito! Ela tinha um plano? Não exatamente, mas não podia esperar até ter um, precisava dar o bote enquanto tinha a chance! Não podia esperar que alguém a chamasse, por isso acelerou o passo e foi até o rapaz. DC estava de olhos fechados, encostado no corrimão, uma perna estendida e a outra dobrada. O violão bem acomodado para que ele dedilhasse uma melodia lenta, parecia distraído e alheio a tudo. Ao lado de seu braço, o caderno de anotações repousava no degrau a cima. O cabelo estava ainda úmido, a camiseta preta colada ao corpo, o pingente de prata do colar balançava com o movimento das mãos ao tocar as cordas. Ele estava tão bonito. Respirou fundo e aproximou-se. O que ela ia falar? Tarde demais para pensar, já estava de frente para ele.

— Tchau, Mônica. – reparou nos olhos abrindo-se lentamente e de leve levantar a cabeça, com o sorriso singelo. O olhar curioso.

— Oi, DC. – o coração dela descompassou e ela desvencilhou de seu olhar.

Por que ele tinha que ter um sorriso tão bonito? Ficaram um tempo em silêncio, ele voltou para a música que estava tocando. Cantarolava, procurando harmonizar e sincronizar o som das cordas ao ritmo da melodia cantarolada. Aquela atividade corriqueira a hipnotizava.

— O violão está incomodando? – perguntou sem parecer se importar com a resposta.

— Não, está muito bom. – desviou o olhar dele, corada – Não sabia que você tocava violão. Para falar a verdade, nem sabia que você tinha um...

— Não tinha. Comprei recentemente. Para escrever mais músicas.

— Você tem escrito muito ultimamente? – o tom desafiador indicava uma indireta.

— Um pouco. Por enquanto, mais melodias do que letras. – sorriu de volta, o olhar indecifrável. Parou de dedilhar por uns instantes para recomeçar a melodia – Gosta?

Ele tocava bem, os dedos longos e finos pareciam feitos para as cordas do instrumento. Não tinha reparado na mão dele ainda. Era grande e magra; enquanto uma segurava firme o braço do violão, a outra, inquieta, deixava os dedos dançarem pelas cordas de aço. O som era uma melodia suave, bem contrastante com o estilo de bateria que ele costumava tocar. Embalava como uma afável canção de ninar, mas envolvia como um abraço sedutor que a mantinha no lugar. Ele parecia ter acabado e a olhava como se esperasse uma resposta.

— É uma melodia bonita. Gostei. – desviou o olhar da feição doce do rapaz para encarar o caderno que se encontrava ao lado dele, no degrau acima. Apontando para ele, perguntou: – Está escrevendo uma letra para ela?

— Trabalhando nisso.

Depois de respondê-la, voltou a cabeça para o instrumento em suas mãos, retomando sua atividade de olhos fechados. Mônica sentou-se ao lado dele: planejava espiar o caderno sem que ele notasse. DC parecia não se importar. Era óbvio, não tinha nada de comprometedor ou interessante escrito nas páginas abertas, só marcações das notas e cifras, uma anotação ou outra sobre a melodia. Ela se lembrou que ele fez aula de música por um tempo, depois de formarem a banda. Esnobe, DC se sentia muito bem julgando os amigos quanto às habilidades musicais de cada um, já que detinha mais conhecimento técnico sobre o assunto. No entanto, a cada ensaio melhoravam mais e mais por causa da disciplina imposta por ele. As músicas que tocavam, tanto os covers quanto as originais, ficavam cada vez melhores com os ensaios, demonstrando harmonia entre os integrantes do grupo... Era divertido quando a gente tocava juntos. Acabou dizendo alto a última frase e só se deu conta disso quando ouviu dele:

— Também estou com saudade dos ensaios na garagem.

DC tinha um sorriso maldito. Os olhos pequenos e negros encaravam-na de forma que pareciam perfurar o coração dela e tirar o ar de seus pulmões. Quando é que ele ficou tão atraente? A voz de Magali a tirou dos pensamentos, o que era bom, porque ela já estava se perdendo demais neles. A amiga chegou apressada perto dos dois, meio que ignorando a situação toda, focando apenas no exercício que acabaram de fazer.

— Mô, como você foi? A questão 3 e 4 estavam bem estranhas, não? Ah, oi, DC? Tudo bem? – uma pausa rápida – você tem um violão?

— Tchau, Magá. Só para praticar.

— Ah, deu até saudade da banda... – voltou-se para Mônica de novo – Vamos comprar uma coisinha? Estou morta de fome. Pelo amor de Nossa Senhora da bicicletinha, me fala o que você colocou na 3, por favor. – sem esperar muita reação da amiga, puxou-a da escada.

Mônica parecia ter voltado ao presente, respondia às perguntas da amiga. No entanto, às vezes pensava no colega. Forçava-se ao máximo não fazer isso, mas era difícil. Ela não tinha reparado o quanto ele mudou. O cabelo preto como a noite arrepiado em cima e longo atrás, a franja meio comprida; o pescoço longo, os ombros largos... Por que ela ainda estava pensando na aparência dele?! A amiga a olhou estranhando a mudança repentina de suas expressões. Milena e Marina juntaram-se às duas na fila da cantina para comprar alguma coisa e também discutir a prova surpresa. Cascão e Maria Cascuda estavam juntos em uma das mesas, onde ela parecia explicar as questões e a matéria para ele e de certa forma puxar a orelha dele por erros crassos que ele cometera no teste... Todos estavam preocupados com a prova e ela só pensava em um garoto!  Deu um beliscão discreto no braço e focou na conversa das amigas.

Voltando para casa, pensava sobre o dia. Pelo que escutou dos colegas, ela não tinha ido mal. Um erro bobo aqui e ali, mas no geral, podia ter ido bem. Cebola saiu derrotado da conversa com Licurgo; ele tirou a nota máxima, no entanto, sua alma e felicidade foram drenadas durante as explicações extenuantes. Segundo o Prof. Licurgo, Cebola só tirou A – se tivesse se esforçado mais, teria tirado A+. Durante o caminho de volta para casa, era isso que o trio escutava: as lamurias de Cebola.

Magali acompanhava Mônica para que terminassem o trabalho de geografia em dupla, mesma coisa os meninos indo para casa do Cebola. Despediram na entrada da casa dela. No corredor de entrada, cogitou por uns instantes se devia conferir a caixa de correio ou não. Foi. Tinha uns envelopes de conta e propaganda, o que a ajudou disfarçar a carta que era para ela.

As duas jovens entraram distraídas por uma conversa aleatória. Dona Luísa tinha saído para fazer compras, por isso deixou um bilhete na porta da geladeira e uma caçarola pronta dentre do forno. Comeram bem e descansaram antes de sentar para fazer a pesquisa. Já era fim de tarde quando Magali foi para casa e finalmente Mônica pode pegar a carta. Tinha a deixado em cima da mesa da entrada para disfarçar. De volta ao sossego de seu quarto, pôs-se a ler:

***

Halam Al-Hakim, filho de Asmar, neto de Salim, mercador de Zenóbia, apresentou-se a corte da Princesa, onde fora recebido com olhares de reprovação. No dia anterior, a Princesa Layla Al-Jamilla fizera a ampulheta correr duas vezes a fim de acelerar a história. Seus conselheiros a alertaram contra isso: seria perigoso demais demonstrar interesse pela narrativa do rapaz, daria a ele provas de seu sucesso, obrigando-a dar-lhe um tesouro. Imprudente. A jovem governante escutara atenta aos conselhos, mas não concordava. O que tinha de mal? Voltando-se ao presente, encarava os olhos castanhos do jovem, que aguardavam os comandos reais para iniciar o conto. A pergunta escorregou dos lábios da Princesa: “Halam Al-Hakim, mercador de Zenóbia, responda-me sincero: como devo punir um contador de histórias que toma tempo demais de minha corte, que tem a audácia de estender propositalmente seu conto?”

As palavras pegaram todos de surpresa. Não menos espantado, Halam Al-Hakim primeiro refletiu em silêncio, cabisbaixo e submisso. No segundo momento, altivo e olhando-a nos olhos disse: “Vossa Alteza, antes de punir um condenado, dizei a ele o crime que cometera; se seu crime é ser apenas prolixo, não compreendo como tal configure como um crime que mereça dura punição... Talvez sabeis melhor que eu, Soberana, como puni-lo. Posso apenas oferecer-vos um conselho: Se não desejais mais que o contador de histórias tome o tempo de vossa corte, não o permitis mais que nela entre, nem que se sente diante de Vossa Alteza, nem que a vós dirija uma só palavra. Condenai-o a guardar para si sua história.” Calou-se, esperando a resposta da princesa.

Depois de alguma ponderação superficial, a Princesa Layla Al-Jamilla, sorrindo com audácia, disse: “Mercador, se bem me lembro do acordo, sua história em troca de um tesouro ou de sua morte. Assim foi acordado, com testemunhas está escrito. Como poderia simplesmente deixá-lo ir?” Halam Al-Hakim, cabisbaixo, ao responder soou jocoso, mas melancólico: “Ó, Princesa Venerada, bem sabeis que a morte é um meio de calar qualquer inconveniente contador, encerrando pela eternidade os contos que ele traz consigo. No entanto, com todo o respeito, Vossa Alteza, se achai justo lembrar-me o acordo, relembramo-nos então de todas suas cláusulas. Minha história receberá o preço que vos convir: se caso dela gostardes, ganharei um tesouro; ou sucumbirei à morte se a vós ela desagrada. Antes de cobrar-me a cabeça, Iluminada Princesa, havei de declarar antes que minha história vos desagrada, ainda que inacabada.”

Olhando seus conselheiros, a Princesa hesitou com o coração agitado, mas sorriu ao mercador: “Halam Al-Hakim, por enquanto, convém-me escutar o restante de sua narrativa. Ainda não posso afirmar se me gosta de sua história não finalizada, nem me agradaria encerrá-la pela eternidade em seus lábios defuntos. Termina de contá-la antes.” Sutilmente, ordenou à serva que virasse a ampulheta para que ele pudesse retomar seu conto:

 Ainda a Fada Jandira Al-Nour narrava à Farhad Al-Naim suas vidas passadas: “Depois da morte do arrependido Said Al-Faruk, sua súplica fora atendida: ganhara uma oportunidade de aprendizado, mas quis o Destino que as linhas assim estivessem escritas: nasceu em Mantonero um bebê assolado por uma maldição: apesar da forma humana, as costas, braços e pernas do recém-nascido eram cobertos por estacas de ossos. Chamavam-no de porco espinho, apesar de ter sido batizado como Benedito. Conheceu o amor de sua mãe e a rejeição de seu pai logo cedo. O amor lhe era caro: a mulher amava-o à medida que conseguia: agradecia ao Alto por ter dado a ela um filho que ela há muito pedira, tratava-o como uma benção, mas não podia abraçá-lo com risco de machucar-se. O pai evitava dirigir-se a ele, não permitia que saísse de casa, sendo mantido em segredo, como uma desonra que assolara a família. Benedito aprendeu as tarefas de casa, seguindo bem o exemplo materno. Com rebeldia infantil furtava o véu da noite e aproveitava os cantos escondidos na penumbra para passear. Tinha um trato gentil e amável apesar da rude aparência. Vivia contente com suas pequenas alegrias.” Interrompeu para tomar um gole do chá e pensar sobre as palavras que diria depois.

A Fada continuou: “Infelizmente, doía não conhecer o amor do pai, a quem amava demais. Queria tanto o afeto dele que passou a se sentir mal por não atender as expectativas paternas. Pensava: se fosse um filho melhor... Se estudasse mais... Quem sabe assim poderia ter o orgulho do pai... Se Benito fosse bom, o pai perdoá-lo-ia por ser uma aberração... Tomando consciência do pesar de seu coração, procurei para consolá-lo. No encontro, tomei a forma de uma coruja e ensinei-lhe: ‘o amor verdadeiro é incondicional: ama simplesmente porque ama, não se justifica com razões, nem impõe condições.’ Não me respondeu, mesmo que tenha me ouvido e entendido. Por força de nossa amizade, perguntei-o: ‘pequeno Benito, há algum desejo que tu gostarias de ver realizado?’ Ainda que as memórias de nosso passado juntos soassem apagadas, o menino dirigiu-se a mim com familiaridade, respondendo: ‘Já sou feliz, de nada preciso. Tenho meus pais e agradeço diariamente que ambos tenham saúde. Mas, se poderia pedir-lhe algo, pediria que tivessem longos anos de vida, que o Senhor sempre lhes conserve a saúde. O peso de uma maldição é leve quando se carrega sozinho, sem condenar àqueles que se ama, Fada Querida.’ Deu-me as costas e afastou-se a pulos infantis. Desde então procurei não o ver mais, com medo de ver repetir os erros de Said Al-Faruk.”

Retomou assim que se sentiu mais forte: “Um dia, no Palácio de Cristal, visitou-me o gênio malvado trazendo-me um inocente vinho de rosas para bebermos juntos. Propunha uma trégua. Permiti que entrasse no salão a fim de escutá-lo. Servia-se de longos tragos da bebida da qual se fartava sem restrição, oferecendo-me sempre, o que aceitei somente uma pequena taça, que tomei em goles bem pequenos e espaçados. ‘Ó, Fada Graciosa e Amada, seus séculos de vida não te entediaram ainda? Pois a mim, que vivi bem menos, procuro sempre o que me entreter em tamanho tédio. Acho diminutas as chances de bem desfrutar as longas horas do dia... Venha, aceita meu convite, que mal nenhum faz ir ver como cresce Benito.’ Encarei-o surpresa, perguntei-o: ‘O que pretendes, Muhtal Al-Jinni?’ Com um sorriso largo e horrendo, replicou: ‘Apenas passar meu tempo que a eternidade se demora a gastar, Fada.’ Preocupei-me com as intenções dele, e decidi acompanhá-lo para assegurar que não faria mal ao pequeno e à família dele. Assim que concordei, pusemo-nos em viagem. Chegamos ao anoitecer. Tomamos a fachada de dois anciões e no casebre da família pedimos abrigo para a noite: uma cama onde descansar os ossos e um pouco de comida em troca de uma moeda de ouro. O pai concordou humilde, mas envergonhado instruiu à esposa que escondesse o menino. Triste, a mulher obedeceu. Serviram os convidados com um pão velho, um prato de sopa que esquentava na lareira e um vinho tinto dos barris da família. Tanto o homem como o gênio beberam felizes como se fossem velhos amigos.” O semblante dela mudou com a narrativa, cada vez mais pesaroso. O coração de Farhad Al-Naim também se apertara.

A Fada Jandira Al-Nour prosseguiu: “Perspicaz, Muhtal Al-Jinni perguntou ao patriarca se aquela família era feliz, ainda que não tivessem filhos... Repreendi-o com o olhar, ao que ele apenas ignorou, desviou dissimulado. A mãe encarou-nos surpresa com a pergunta direta. Senti que ela queria rebater, responder que tinham um único filho, mas o marido prontamente cortou o fio de seu pensamento e simplesmente dissera: ‘Bom homem, não fomos agraciados com o amor de uma criança.’ Insistente, o gênio continuou: ‘Uma casa tão grande como a tua, a quem pretende deixar, meu bom homem, se não tens filhos?’ Seco, o pai respondeu: ‘O destino dos meus bens não me pertence depois que estiver morto, tal como o futuro não me pertence.’”

A pausa da Fada foi mais demorada e seu semblante mais carregado. Era uma difícil rememoração. Voltou: “Sorrindo travesso e ébrio, Muhtal Al-Jinni disse ao homem com a mão em seu ombro: ‘Gosto muito de ti, por isso vou te dar um presente: se quiser ter um filho, só tem de colocar dentro deste lenço de seda o sangue seu e de sua esposa, também devem doar cada um dos órgãos dos quais a criança precisará: olhos, mãos, pernas, etc. Mínimos sacrifícios de amor... Então, dentro do embrulho, um bebezinho irá nascer para se tornar o filho com o qual sempre sonhaste.’ O tom de voz era divertido e excitado, seu sorriso mostrava os dentes e tive completo horror, paralisada de medo. Vi então o semblante assombrado da mulher que parecia querer chorar. A surpresa estupefata do marido, que parecia cogitar a viabilidade do acordo, talvez fosse o vinho que lhe ofuscava o discernimento. Senti pena. O homem fora arrebatado pela ideia e estava extasiado demais para compreender o preço que lhe cobravam pelo sonho. Procurava ávido por seu punhal, gritando à esposa e a um servo que alguém o trouxesse. A mulher estava em choque e não se mexia. O marido procurava afoito pela arma, impaciente rodava a casa à procura dele. Muhtal Al-Jinni ria-se enquanto bebericava o vinho. Senti-me impotente e paralisada. Recordei-me do vinho de rosas e senti-me tola por ter caído na armadilha. Era tarde demais...” A voz dela foi entrecortada pela dor e remorso.

Retomou a narrativa depois de um breve tempo e um gole de seu chá: “Enquanto a mulher recolhia-se quieta em um canto e o homem clamava pelo punhal, vinha discretamente o pequeno menino, trazendo em suas mãos a arma do pai. Submisso, olhava diretamente para o homem, que parou para escutá-lo: ‘Querido pai, deixai que eu dê meu sangue e meu corpo para trazer à vida o filho que quereis, o filho de vossos sonhos.’ A mãe apressada foi em sua direção e tentou primeiro dissuadi-lo e depois abraçá-lo, mas os espinhos a feriram de tal modo que ela recuou. ‘Querida mãe, se me permitis, tereis um filho a quem possa abraçar, um filho a quem possa amar.’ Ajoelhou-se de frente para o pai, deixando que lágrimas escorressem dos olhos, enquanto oferecia a ele seu punhal. O homem, por um instante horrorizado, perguntou ao gênio se isso poderia ser feito, mas Muhtal Al-Jinni não respondeu. Sorvia da sua taça de vinho apreciando de olhos fechados, como se fosse alheio a tudo.”

A respiração dela acalmou-se para que pudesse voltar a narrar: “Eu estava presa à cadeira, só consegui ter forças para chamá-lo à razão: ‘Benito, por que tu ofereces tua vida?’ Ainda cabisbaixo, respondeu: ‘Senhora, Fada Amada, se minha morte servir para alguma felicidade de meus pais, terei pago pela angústia, vergonha e dor que lhes causei. O que um pecador mais almeja é a redenção. Por isso ofereço de bom grado esta vida tão indesejada.’ Novamente, o homem voltando-se para o gênio perguntou se poderia fazê-lo, e de novo fora respondido apenas com o som do vinho sendo lentamente sorvido. A mãe, em prantos e ferida com os espinhos do filho, ajoelhada pedia ao marido que não fizesse tal loucura, mas ela não tinha força pra contrariá-lo. Segurando a beira de sua saia, seu filho só lhe disse: ‘não chora, mãezinha, que a cada vez que abraçar teu novo filho, sentir-me-ei abraçado, pois é meu corpo que abraçarás; A cada palavra de amor que disseres a ele, serão meus ouvidos que ouvirão; A cada beijo na bochecha, será minha pele que teus lábios tocarão...’ Olhando diretamente para o filho e ignorando as súplicas da esposa, pela terceira vez, o homem perguntou ao Gênio, mas não esperou a resposta e com o punhal matou o filho. Muhtal Al-Jinni abriu um largo sorriso e desatou-se em uma gargalhada horrenda que preencheu cada canto da sala.”

O ar suspendeu-se dos pulmões dos ouvintes. A Fada retomou a fala usando o tom agressivo e debochado do gênio maligno: “‘Bartolomeu, tolo! Por que mataste o filho com o qual sonhavas? Tomado pela ânsia de se livrar do que não gostas, não hesitaste em perder o que te era caro... Por que devo eu te dar de presente um filho perfeito se é assim que valorizas tuas graças? Como sou generoso, lhe presenteio com essa lição!’ Gargalhando-se sem pudor, voltou sua forma original, bebeu o último gole do vinho, arremessou ao chão o copo de vidro e sumiu da cena como se fosse densa fumaça.”

Repetir as palavras do gênio deixaram um gosto amargo na boda da Fada, que precisou tomar um gole de seu chá para acalmar os nervos. Reparou nas lágrimas silenciosas de Farhad Al-Naim e prosseguiu sem mais delongas: “O grito da mulher irrompeu gigantesco e suas lágrimas eram capazes de inundar os oceanos. Mesmo que os espinhos que cobriam o corpo do menino ferissem seu corpo, ela o abraçava apertado, desfeita em prantos. Murmurava baixo initerruptamente, pedia-lhe perdão por ter falhado, por não ter conseguido protegê-lo; temia que seu amor não fora o suficiente para aplacar a dor do filho, se fosse uma mãe melhor... O pavor do homem tomou-o de assalto, horrorizado ao ver o corpo morto e ensanguentado finalmente se deu conta do que fizera e do peso das palavras do gênio. Chorou desconsoladamente. Deixou cair o punhal ensanguentado e ajoelhou-se frente aos dois. Curvou-se submisso para implorar o perdão da criança. Havia falhado como pai, porque não sabia amá-lo. Atentou-se à aparência, por isso não viu que a máscara de aberração escondia o filho amoroso e solicito que agora estava perdido para sempre... Amaldiçoava as mãos e o punhal. Pragueja seu coração egoísta por ter permitido tal atrocidade. Vertia lágrimas tantas a fim de lavar sua alma do sangue inocente. Vi o desespero do casal e lamentei sua sorte. Finalmente pude me levantar a aproximei-me da mãe abraçada ao corpo defunto. Notei que o sangue dela se misturava ao dele, que ela não se importava com dor nem com os espinhos que lhe empalhavam. A morte do filho lhe doía imensamente mais do que o desconforto físico.”

Depois de uma pausa para enxugar uma lágrima, a Fada continuou: “Dirigi-me a ela: ‘Valeriana, mãe que chora, seu sofrimento me preenche. Pede-me o que quiser, que lhe atenderei.’ Olhando-me com os olhos cheios de lágrimas e com uma dor imensa, abraçou ainda mais apertado o corpinho defunto e respondeu-me: ‘Meu senhor, o que uma mãe pode pedir? Se peço que meu filho volte a viver, a que vida trago ele? Se ele mesmo ofereceu sua morte para pagar o que ele pensava ser um crime: ter nascido neste corpo. Seria cruel trazê-lo de volta a um mundo onde sofria, onde pagava com a vida duras penas... No entanto, como posso conviver com sua perda, se ela me arranca um pedaço da alma? Fui incapaz de protegê-lo tanto de sua morte quanto de sua vida miserável. O que meu coração pode pedir?’”

A ampulheta terminara. Os olhos marejados de todos eram um sinal de que estavam todos atentos à história. A Princesa Layla Al-Jamilla encarava o mercador com os olhos tristes e segurando firmemente o tecido do vestido à altura do peito. Seu coração doía. “Halam Al-Hakim, filho de Asmar, neto de Salim, mercador de Zenóbia, ainda terá mais um dia para continuar sua história. Terá o tempo da ampulheta, já que assim é o acordo. Não lhe perguntarei quanto tempo ainda há de demorar. Rezo para que ao final, eu tenha apreço por sua história. Creio que falo por todos que custará um preço alto demais, maior que um tesouro, ter de calar um contador tão hábil como o senhor. Vá, que os bons ventos o levem e o tragam de volta amanhã.”

***

O coração de Mônica também sentia dor pelas personagens, que crueldade do Gênio! Pobre criança... As histórias nas cartas tinham muito sentimentalismo, um quê filosófico, um ar de mistério, mas nenhum romance até agora. Elas faziam-na chorar e Mônica importava-se com as personagens, mas não é uma história que agradaria, segundo Cascão, Maria Cascuda, por exemplo. Faltava romance, nem que fosse um do tipo “água com açúcar”... Se deviam ser “cartas de amor”, ainda que a modo Do Contra, elas não tinham muito “amor”, pelo menos não como tema. Também não tinham o formato típico. Seriam mesmo cartas de amor? E se não eram, se não tinham esse propósito, o que eram então? Romance de folhetim? Pensou vagamente na aula de literatura, nos romances publicados pelo jornal. Era isso que o Do Contra queria?

E se não fosse ele? Não era isso que ele tinha dito? Será que ele não tinha mentido e ela foi idiota por não ter acreditado? Será que mais alguém recebia? Isso ela nunca procurou saber... Uma coisa tinha certeza, a Denise não recebeu. Se tivesse, estaria em todas as redes sociais dela. O mesmo vale para Carmem. Talvez era isso que ela precisava saber, era essa a mudança de estratégia que ela deveria acatar. Por que agora sentia uma pontada dolorida de decepção? No fundo, ela queria que fosse o DC que escrevia para ela? Ela queria que fossem cartas de amor? Levantou-se da cadeira e precisava respirar um pouco de ar e sair dali.


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Notas finais do capítulo

E aí? Ficou bom ou só ficou grande?



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