1001 cartas para chegar até você escrita por Liliquinha


Capítulo 7
Capítulo 7 – Muda de canal, que esse filme já deu




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Esperava encontrar a carta logo na caixa, mas não tinha nada. Conferiu algumas vezes pela manhã de domingo, tentando distrair-se com outras coisas, mas não conseguiu pensar em outra coisa. A Princesa Layla Al-Jamilla estava furiosa, o que aconteceria ao mercador? Cortaria a cabeça dele? Já era meio dia, acabara de almoçar com os pais quando foi de novo na caixa de correio: nada.

À tarde, a turma tinha marcado de se encontrar no shopping. Iam ver um filme e dar um passeio pelas lojas. Cebola queria comprar algum acessório para o computador novo. E Cascão ficou sabendo no blog da Denise que ia finalmente reprisar o filme dos “Mutantes Espaciais contra os Cavaleiros do Apocalipse” na sessão das 3 horas. Imperdível!

— Que filme esquisito é esse?

— É o quarto filme da franquia “Mutantes Espaciais”, Mô! – respondeu Cascão, ofendido – O grupo de heróis do espaço têm de enfrentar o Apocalipse, que se dá com a vinda dos Quatro Cavaleiros na Terra. É maravilhoso e na primeira vez que passou, há dois anos, foi sucesso de bilheteria, assisti umas três vezes. E agora, pela primeira vez, ele voltou para o cinema.

— Resumindo, é um filme que só o Cascão e mais duas pessoas no mundo querem ver. – respondeu Cebola, cínico.

— Ou seja, uma cilada para gente. – brincou Magali, rindo para o amigo do lado que ainda tinha um semblante emburrado – Pelo menos a gente passa um tempinho juntos hoje.

— Vocês falam isso, mas a real cilada vai ser quando a gente entrar na loja de informática. Falam de mim, mas vocês são bobas de cair nesse papinho do Cebola: “vou só comprar uma coisinha, rapidinho...”. – falou imitando o amigo. Todos riram, menos o rapaz diretamente atacado pelo comentário.

— Tive uma ideia: por que vocês dois não vão para a loja de informática enquanto eu e a Magá damos uma passadinha na loja de roupas. Preciso de umas meias. E aí, 20 para as 3, a gente se encontra na porta do cinema, que tal? Assim a gente divide as ciladas.

— Boa, Mô. – Magali foi a primeira a concordar – também preciso de umas coisinhas.

— Boa ideia, assim vou até poder ficar mais na loja de informática. – sorriu com todos os dentes para o Cascão que concordou contrariado – A gente se vê mais tarde então, meninas.

O grupo se separou e o tempo até que rendeu bem. Como combinado, foram para a fila do cinema às três. Não tinha tanta gente assim para ser um filme de “sucesso”. Enquanto Cascão defendia a honra da “obra de arte”, alegando que o público não entendia a oportunidade que estava perdendo, as meninas foram pegar a pipoca e o refrigerante. Cebola o puxou para pegar os ingressos. Na fila de entrada, conversavam distraidamente quando de repente Cascão apontou para alguém que estava atrás deles.

— Cara, o que VOCÊ está fazendo aqui?! – o espanto era geral.

— Não posso? Até paguei o ingresso. – respondeu DC fingindo estar magoado com o comentário.

— Não, nada disso, amigo. – Cascão tentou desconversar – É que eu não esperava que VOCÊ fosse curtir os Mutantes Espaciais.

— Não curto. Mas decidi assistir, de tanto que o Nimbus falou sobre o design dos Cavaleiros do Apocalipse e sobre a trilha sonora de arrepiar. Aí eu me interessei, vim dar uma olhadinha. Tentei ver em casa, mas dormi. Talvez na telona, depois de pagar caro nesse ingresso, o filme fique menos chato.

— E essas coisas te interessam? – Perguntou o Cascão, meio sem filtro.

— Fiquei curioso para ver a entrada triunfal deles. O enquadramento espetacular, os ângulos da câmera mostrando os quatro cavaleiros descendo na terra com uma orla demoníaca, cada um iluminado por uma cor diferente... Procurei as imagens na internet, mas não deram a dimensão da grandeza. Só vim conferir...

— Pensei que não se interessasse por modinha. – comentou Cebola com desdém. DC riu.

— Cascão não representa o gosto da modinha, é só perguntar para Denise, que não está nem aqui para ver esse filme... – defendeu-se – Mutantes Espaciais é de um nicho bem específico, né? De qualquer forma, não vim para ver o filme, talvez nem fique até o final.

— Típico. – disse Cebola, dando de ombros.

— Senta com a gente. – Magali ofereceu.

— Valeu, mas não obrigado. – respondeu entrando na sala e afastando do grupo – A gente se vê na escola.

Os quatro amigos sentaram-se naturalmente um tanto distante do outro. Se o Do Contra queria distância, teria, não? O assento dele ficava a cinco colunas, a duas fileiras acima, perto suficiente para ver o grupo. Mônica sentou-se em uma ponta e o Cascão na outra; no meio, ao lado dela sentou-se o Cebola e a Magali ficou entre os meninos, segurando a pipoca toda. Enquanto o grupo estava ocupado rindo do filme e Cascão contra-argumentava, Mônica às vezes virava o rosto para ver o que o outro fazia: trouxera um caderninho para fazer anotações e colocara uma perna em cima da poltrona da frente. Parecia em casa. O cinema não estava lotado, o que era de se esperar de um filme que o Cascão chamou de “clássico”. As várias fileiras vazias deixavam a visão que ela tinha dele desobstruída.

Durante o filme, Mônica olhou diversas vezes de relance para DC. Uma das vezes, ele a olhou de volta, dando um sorriso largo e cínico, além de um aceno. Por que ele fazia questão de ficar longe? Não eram amigos? O filme passava, mas Mônica não conseguiu prestar muita atenção. Concentrou-se na tela quando se aproximava o confronto épico entre os Mutantes Espaciais e o Apocalipse. O vermelho, o verde, preto e branco iluminavam a tela enquanto uma orla de seres horrendos descia pela lateral, devastando o caminho das cidades. Findada a cena épica, ela procurou pelo garoto contrariado, porém ele tinha ido embora mesmo. Uma sensação de desconforto a tomou rapidamente, mas a mão de Cebola em seu ombro chamou sua atenção para o filme. Logo que terminou, foram para a praça de alimentação. Sentaram-se os quatro à mesa para comer o hamburguer e conversar:

— Agora entendi porque a Maria Cascuda não quis vir. – brincou Magali.

— Ela não entende o que é um filme bom. Para ela, tem que ter um romance água com açúcar, aí é a sétima arte. Ela mal, mal tolera um filme de suspense policial, isso se tiver um casalzinho. Senão, ela reclama o filme todo. – Cascão se defendeu.

— É péssimo assistir filme de ficção científica com ela, aponta erro em tudo. – reclamou Cebola.

— Vocês falam assim, porque ela não está aqui para se defender.

— Eu chamei, mas ela preferiu estudar para prova. Convenceu até a Milena e a Marina a passarem o domingo enfurnadas estudando!

— Dá um desconto, ela quer tentar uma faculdade bem concorrida, um curso bem difícil... – Magali tentou contemporizar

— Eu sei. Só não reclamo, porque ela prometeu que ia cuidar de mim de graça.

— Para mim, ela falou que o acordo era cuidar do seu joelho por um precinho camarada. – interviu Cebola, depois dirigiu-se para Mônica ao lado – E o que você achou do filme, Mô? Está tão caladinha... – aproximou-a mais com um abraço amigável.

— Ah, só estava pensando... No filme, o Apocalipse é inevitável... Eles só ganharam tempo fazendo o acordo, mas não deu certo. A solução deles foi criar um mundo paralelo. Os Mutantes Espaciais não derrotaram a ameaça, o plano não resolveu o problema.

— Claro que não, eles precisam vender o quinto filme e a série de quadrinhos... – Cebola disse cínico.

— Mas, galera, era só isso que os Mutantes Espaciais podiam fazer! Muitas vezes eles precisam de soluções drásticas e inusitadas. O problema aqui foi o Apocalipse! O fim do mundo! Eles não ficaram de braços cruzados esperando tudo se resolver magicamente, mas aquele mundo ia acabar inevitavelmente. É uma metáfora: a vinda dos cavaleiros é para falar do fim do mundo, ou seja, o mundo que a gente conhece. Um tsunami pode acabar com um país inteiro, aí eles têm que reconstruir tudo. Uma guerra é capaz de destruir nações consolidadas, tomadas de territórios, tratados assinados criam novos países... A eleição de um partido pode mudar o sistema político que decide o que vira ilegal e o que se torna legal. Isso tudo são formas de “fim do mundo”, porque o mundo que se conhecia acaba, dando lugar ao “novo mundo”. Algumas mudanças são inevitáveis. Os Mutantes Espaciais mostraram que nem sempre dá para lutar ou negociar com o destino, é preciso aceitar que a tragédia virá e a partir das consequências fazer alguma coisa... Muitos reclamaram da mensagem fatalista, mas chega até a ser esperançosa, dando uma alternativa mais otimista em relação ao inevitável.

— Uai, esse filme até parece bom. – Cebola disse – Nada a ver com o filme que a gente acabou de assistir.

— Ha-ha. Engraçadinho. Admite que ficou impressionado. Nem você ia ter ideia de como evitar o Apocalipse.

— Não assim, de repente. Tem que pensar na estratégia... Tudo depende do contexto, tem que ver o que se tem disponível: tecnologia, pessoas, recursos... E se não der certo o plano, mudar a estratégia... – tentou argumentar.

— Sei.

Mudança de estratégia? Mônica viu de relance DC andando pelo shopping, distraído. Pensou na carta que já devia ter recebido. Não tinha nenhuma quando ela saiu, será que não teria uma quando ela voltasse? E se não tivesse, poderia esperar perto da caixa de correio para ver se ele viria até lá e assim ela pegá-lo no flagra. Perfeito.

— Desculpa, galera, mas prometi para minha mãe que ia voltar mais cedo... – Mônica falou olhando para o relógio.

— Quer carona? – ofereceu Cebola – Meu pai só está esperando eu ligar para vir me buscar.

Ela concordou de imediato. Seria bom ganhar uma carona, ia poupar as pernas e assim teria mais tempo para preparar a emboscada. Também não seria mal passar mais tempo com o amigo. A verdade é que ela queria voltar para casa logo por causa das cartas. O que isso queria dizer? Era ruim admitir, mas os pensamentos dela estavam voltados para DC e seu comportamento arredio, mais do que para a conversa dos amigos. Por que ele não queria ficar perto se ficava olhando para eles? Por que não se juntar ao grupo? Será por causa do Cebola?

A ideia repentina a fez cogitar ciúmes, sentimento que ela conhecia bem. Volta e meia era assombrada por aquele “fogo do inferno” que subia até sua cabeça e fazia-a ter raiva de todas as garotas bonitas que falavam com Cebola. Magali já tinha conversado com ela sobre isso. O ciúme é uma competição imaginária que se trava com um oponente que não está nem se inscreveu. Ninguém ganha, porque o ciúme nunca é sobre os outros. É sobre as inseguranças e a baixa-estima do ciumento. O problema não era uma menina bonita falar com o Cebola, nem o Cebola dar atenção a ela. Na verdade, o problema é a insegurança da Mônica que fica imaginando que perdeu o Cebola para a outra. Será que o DC sentia isso?

Pensava nisso durante o trajeto da carona. Maria Cebolinha, ao lado dela, falava alguma coisa com o irmão, que se sentou no banco da frente. Mônica não saberia o assunto, estava distraída demais com suas reflexões buliçosas. Voltou ao presente somente quando o senhor Cebolácio chamou sua atenção: já estavam na porta da casa dela. Ela agradeceu encabulada e saiu. No caminho até a entrada, hesitou em verificar a caixa de correio. Talvez não tivesse nada lá. Respirou fundo e encheu-se de coragem. Lá estava, debaixo de duas propagandas, o envelope modesto e ordinário com o seu nome.

Quando ele colocou a carta lá? Durante o filme? Por que ele fez questão de sair e voltar para o shopping? Ele sabia que ela estaria lá? Suspirou de olhos fechados, não queria pensar nisso agora. Entrou em casa. Seus pais estranharam que ela tenha voltado cedo, ao que ela respondeu com um falso sorriso de que os amigos tiveram que sair mais cedo, porque tinham outros compromissos. Foi direto para o quarto, ia tomar um banho. Parou antes no quarto, deitou-se na cama para ler:

 ***

A resposta do mercador, cínica e ousada, enfurecera a Princesa. Contudo, ela apenas respirou fundo e ordenou à serva que virasse novamente a ampulheta para que o jovem retomasse de imediato a narração, o que, como servo obediente, Halam Al-Hakim acatou de bom grado:

A revelação da Fada Jandira Al-Nour cortou o coração de Farhad Al-Naim. Contudo, finalmente compreendera os sentimentos em relação a ela: sentia um carinho familiar e gratidão, mesclados a um acanhamento submisso e desejo o qual tinha vergonha de admitir. Ele, ainda jovem demais para o amor, experimentava agora pela primeira vez a paixão – não fulminante como a de Said Al-Faruk – talvez apaziguada pelas eras e pelo remorso, mas tão envolvente quanto como deveria ter sido naquele dia. Olhou-a nos olhos, sentindo a ligação que tinham, devido à união de seus nomes no Livro Infinito das Vidas. Respirando fundo, a Fada retomou a narrativa:

“Depois ter viajado até o Fim do Mundo e executado a tarefa, Said Al-Faruk pôs-se em viagem até o Palácio de Cristal. Auxiliado por Muhtal Al-Jinni, preparara uma armadilha para mim. Montado em uma nuvem, trazia consigo uma gaiola de ouro. Pediu humilde por uma audiência, pois desejava ardentemente meu perdão. Comovida, aceitei que entrasse. Prostou-se diante de mim, implorando que eu perdoasse o furor de seus sentimentos, mas que jamais duvidasse da nobreza deles. Concordei em aceitar suas desculpas e Said Al-Faruk pôs-se a contar uma bela anedota: ‘Em viagem de Angura a Omane, deparei-me com um belo pomar de macieiras, pereiras e pessegueiros, todas bem carregadas de frutas frescas e belas. Pareciam o paraíso. Impelido pela fome, entrei no pomar, pedindo licença aos donos daquelas maravilhosas árvores. Depois de comer até fartar-me, sentei-me para aproveitar a sombra que as folhas da copa davam quando avistei outra visão maravilhosa: um pássaro que reluzia como o ouro. Este viera ao pomar para comer um dos pêssegos. Encantado com tal criatura, supus que vós, Fada Venerada, deveria ser proprietária exclusiva dela. E esse presente seria para mim a redenção. Deslumbrado, não compreendi a dificuldade de obter o animal. Alertaram-me que era um pássaro mágico muito ardiloso, que não seria aprisionado por qualquer armadilha. Desde então, sai em busca da gaiola perfeita. Bem instruído, fui até a Ponta de Saguari, onde mora o ferreiro Mannu que aceitou fabricá-la em troca de pequenas tarefas. Executei-as de bom grado e conquistei o direito a essa bela gaiola... Vim até vós, antes mesmo de ter o Pássaro de Ouro, porque humildemente peço-vos auxílio: ó sábia Fada Jandira Al-Nour, conhecedora dos mistérios do mundo, dizei-me como posso apanhar maravilhosa criatura, a fim de conquistar vosso perdão.’”

A Fada pausou a narrativa para refletir. Talvez lhe ocorresse como deveria ter agido naquela ocasião, porém o passado já estava escrito, não havia meios de mudá-lo. Prosseguiu: “Não imaginei que Said Al-Faruk fingia inocência e arrependimento. Tocada por suas palavras e sua insistência, supus sincero seu pedido de desculpas. Se me pedia ajuda, eu, sua Madrinha, deveria socorrê-lo. ‘Said Al-Faruk, filho do gentil agricultor, vindo de Omane, fico contente com tua mudança de espírito e ainda que não seja necessário dar-me o Pássaro de Ouro para provar teu remorso, aceitá-lo-ei agradecida quando me o trouxeres. No Monte Anni, há de encontrar o ninho da bela ave. Toma cuidado, a viagem até lá é traiçoeira. Asseguro-te, porém que levarás minhas bençãos que o protegerão.’ Agradeceu-me submisso e perguntou-me se a estrutura de metal era realmente adequada para prender o animal. Não queria jamais duvidar do divino ferreiro, mas não teria uma segunda chance de obter o Pássaro de Ouro se ele escapasse de sua armadilha. Não vi maldade em seu pedido. Julguei válida sua preocupação e concordei em analisá-la a fim de aliviar suas dúvidas e dar-lhe uma ideia da estratégia. Circulei-a, curiosa, querendo verificar todos os detalhes e certificar-me de que suportaria o lendário pássaro... Hipnotizada, aceitei a sugestão de Said Al-Faruk e entrei na armadilha para ver seu interior. Mal entrei, a porta foi fechada de súbito. Compreendi que era uma emboscada para mim quando vi que as Moçoilas de Cristal não vinham a meu socorro: estavam paralisadas em pleno movimento como todo o restante do Palácio de Cristal. A magia que dá vida ao lugar tinha se cessado. Nada mais brilhava ou movia-se como outrora, restava o frio gélido. Ouvi Said Al-Faruk pronunciar as palavras de um encantamento tão velho quanto o tempo, impedindo-me a fuga e enfraquecendo meus poderes. Ao constatar que ele havia planejado tudo, decepcionei-me.” A Fada teve de interromper a narração, sentia um nó na garganta.

Tomou alguns goles do chá de calêndula para acalmar-se e prosseguiu: “Quando me viu encurralada, sem saída, Said Al-Faruk novamente jurou-me seu amor, prometendo-me céus e terra, as estrelas todas, o sol, a lua... Tudo, menos a liberdade... Implacável, decretou que só me deixaria ir se concordasse em ser sua esposa... Consternada, recusei. Disse-lhe: ‘Chamas de amor o que é na verdade obsessão e desejo de posse. Repito que não me amas, Said Al-Faruk, como eu também não o amo... E ainda que eu cedesse a teus caprichos, não poderia te amar. Es um mortal e eu, não. É uma união fadada ao fracasso. Imploro que me deixes ir. Não o condeno, estás cego e iludido, mas não deixes que tal sentimento te governe a razão e tuas ações. Liberta-me.’ Riu-se de mim. Novamente supliquei-o que desistisse dessa tolice de casamento, pois seria maldito. Não quis ouvir-me. Zombando-se de mim, disse que só aceitaria ouvir de minha boca que eu o amava, nada de conselhos ou súplicas. Para o problema irremediável, ele tinha a solução: ‘Se aceitar ser minha esposa, posso te tornar mortal, Fada Maravilhosa. Uma só palavra e seremos felizes para todo sempre. Teu olhar duvida de mim, pois saiba que se me deres tuas asas, tornarás humana como eu e assim nossa união não seria condenada...’ Como odiei Said Al-Faruk. Humilhava-me, obrigava-se a ceder aos seus caprichos e exigia algo que eu não poderia dar-lhe.” A Fada teve de novamente interromper a fala. Rememorar o passado era difícil demais para ela. Até fisicamente doloroso.

Retomou: “Como poderia Said Al-Faruk saber deste segredo? Vi então pela janela o gênio odioso voando com suas asas de morcego próximo demais. Reconheci Muhtal Al-Jinni e compreendi tudo: era uma armação dos dois. Se eu cedesse, com minha liberdade, viria minha morte. Tornando-me mortal, estaria à mercê dos caprichos de um ou de outro. Não podia adivinhar as intenções do ser maligno, mas sentia que ele manipulava Said Al-Faruk para benefício próprio. Fingi fraqueza e desmaio, a preocupação obrigou meu algoz a aproximar-se. Atendeu ao singelo pedido de olhar-me no fundo dos olhos. Daí pude ver o que de fato ele pretendia: Seu plano era primeiro aprisionar-me, convencer-me a ceder e entregar minhas asas, a fonte de todo meu poder... Depois abriria a gaiola e com um punhal matar-me-ia, arrancando-me o coração. Este deveria ser para sempre guardado na caixa mágica de madrepérola, para que eu o amasse e sempre lhe fosse obediente e fiel. Ao morrer, tornar-me-ia humana e esqueceria tudo. Said Al-Faruk afastou-se de mim quando viu o ódio em meus olhos e temeu por sua vida. Dentro da gaiola mágica, meus poderes estavam limitados... Novamente odiei-o.”

A Fada tinha uma das mãos na boca, estava enojada com a rememoração, porém prosseguiu: “Dirigi-me a ele: ‘Se nutri por tantas eras delicado afeto por ti, Said Al-Faruk, agora desprezo-te, odeio-te e quero que todas as maldições dos céus e terras recaiam sobre ti! Por que me pedes mais do que posso te oferecer? Como ousas tentar possuir à força algo que não te pertence?! Repito que não me amas, es caprichoso e possessivo demais para me amar. Maldito, que as fúrias do inferno te persigam. Em troca da minha liberdade, exige-me promessas de amor. Não! Mil vezes não! Assim como exiges minha decisão, da mesma forma, obrigo-te a uma dura escolha: cada dia que me mantiveres presa, Said Al-Faruk, será para ti a morte de alguém que amas. Deste modo, talvez entendas o verdadeiro amor...’” interrompeu a fala para respirar um pouco e retomar o fôlego.

A Fada Jandira Al-Nour prosseguiu a narrativa: “A praga recaiu sob aqueles que Said Al-Faruk amava... Quando ele retornou à casa, encontrou-a assolada por luto e dor. Haviam-se passado cinco dias, portanto, o filho do gentil agricultor de Omane encontrou cinco defuntos os quais velar e pelos quais chorar a perda. Ao ver que a maldição atingia seus entes mais amados, arrebatados por um angustiante e súbito fim, Said Al-Faruk também quis morrer... Por mais que chamasse a Morte, ela não viria para ele. Decretei que ele viveria para ver a praga que ele submetera a quem amava. Voltou ao Palácio de Cristal no oitavo dia. Implorou-me que desfizesse a maldição, mas eu estava resoluta. Cabia a ele a escolha: minha liberdade em troca do fim da praga. Primeiro ele recusou, furioso. Passou uma lua, e ele sabia em seu coração que o amanhecer traria mais um cadáver entre os seus. Said Al-Faruk prostrou-se a meus pés e chorou. Categoricamente disse que me libertaria, com a condição de que eu poupasse aqueles a quem ele amava. Livre da gaiola de ouro, respirando o ar da liberdade e sentindo-me poderosa novamente, lembrei-me de meus apelos e da zombaria do filho de Omane. Repeti imperiosa para ele que a praga assolava àqueles quem ele amava, e que, para que não fazer mais vítimas, bastava ele não amar mais... Vi a fúria em seus olhos e o desespero. Rancorosa, correspondi ao seu ódio: ‘Nas linhas do Livro Infinito das Vidas, fizera a deusa Tamara Al-Miray unir nossos nomes, sem meu consentimento. Prendeu-me a ti com essa impensada decisão. Queria tomar a posse do meu coração e de meu corpo sem nem mais merecer meu afeto... Vai e isola-te. Não ames. Peregrina por sete anos. Sobe a Montanha das Salamandras de Fogo. Se conseguir, a maldição findará e serás perdoado.’ Decretei. Se fui dura com minhas palavras, Farhad Al-Naim, compreenda. Senti-me magoada, apunhalada pela traição. Vingativa, queria com a punição apagar os más horas a humilhação sofrida. E se devia perdoá-lo, não o faria antes de ter provas de verdadeiro remorso e abnegação.” Ela parou para observar o jovem que concordava calado com ela.

Fechou os olhos e continuou: “Nesse tempo, Said Al-Faruk caminhou com nada mais que a roupa do corpo e um cajado, abandonando todos que amava. Com o tempo, não quis mais ter notícias de Omane; se não pensasse nos seus, se não os amasse mais, a peste não os perseguiria. Seguiu sua peregrinação, não permanecendo um dia no mesmo lugar. Não descansou. Teve fome, mas não comeu. Teve sede, mas não bebeu. Vivia, porque tinha de cumprir sua sina. A morte não o quis, mesmo que a chamasse em momentos de fraqueza. Na subida da Montanha de Salamandras de Fogo, a cada passo orava. A cada degrau da subida, um demônio o atormentava. Venceu o sol escaldante, o terreno íngreme e traiçoeiro, a fome e a sede... Demorou dois anos de escalada, mas chegou ao topo, onde eu aguardava-o, debaixo de uma tenda onde um tapete se estendia para descansar. Trazia uma jarra de água fresca e um banquete delicioso, em sinal de absolvição. Said Al-Faruk manteve-se à distância, ajoelhou-se e fez uma reza em solo sagrado. Dirigindo-se a mim, falou: ‘Ó Fada Louvada, eis-me aqui para suplicar vosso perdão. Se soubesse antes o preço que pagaria pela insolência – punindo principalmente os inocentes que um dia amei – não teria feito. Agora entendo que não era amor. Capricho, loucura, paixão, tão arrebatadores e imponentes que me tornei escravo de tais senhores... Arrependo-me amargamente do crime que cometi em nome daquela obsessão terrível. Perdoai-me.’ Sorri, apaziguadora, convidei- para perto, oferecendo-lhe água, comida e abrigo do sol como sinal de sua redenção. O homem deu graças, mas não aceitou sair do lugar onde prostrara, alegando não merecer pisar em solo santo, também não aceitou comer nem beber, sentindo-se indigno. Decretou: ‘O erro que cometi fora tão grave que só me sinto no direito de vos pedir por uma nova oportunidade, Fada Jandira Al-Nour. Nesta vida, não conseguirei expurgar todo o mal que causei. Permiti-me que nasça outra vida para não carregar mais os mortos desta. Faze-me conhecer o amor e a abnegação verdadeiros, a fim de que eu não caia nas ilusões da paixão... Ó, Fada Adorada, ensinai-me com uma nova vida, para que assim eu possa verdadeiramente merecer vosso perdão e recuperar o afeto que por mim tivera desde eras distantes.’ Concordei com o pedido, mas antes insisti que comesse ou bebesse. Said Al-Faruk não se moveu, deixando-se levar pelas asas da morte. Parecia finalmente em paz.” Interrompeu a fala.

Tal como a Fada Jandira Al-Nour, Halam Al-Hakim interrompeu a fala, respeitando a ampulheta mais uma vez. Princesa Layla Al-Jamilla, a curiosa estrela do Oriente cogita virar a manipular o tempo uma terceira vez, mas o olhar grave de seus conselheiros a impediram. Ela sorriu cúmplice para o mercador, que se despediu com a promessa de retorno no dia seguinte.

***

Ainda extasiada com a história, como se suspensa no ar. Mônica ficou um tempo parada olhando para o papel datilografado. Said Al-Faruk cometera uma falta gravíssima e conseguiu ser perdoado ao final. E ainda assim queria ter mais uma oportunidade para mostrar seu arrependimento. A Fada parecia gostar dele novamente. O nome dos dois estava escrito no Livro Infinito das Vidas... Se tal livro existisse, qual nome estaria junto do dela?

Decidiu ir tomar banho a fim de não pensar mais sobre isso. Com a água quente descendo pelo corpo, o pensamento voltou a atormentá-la. Pela lógica... O nome que está junto ao dela, isso é algo que ela soube desde que era pequeninha, desde sempre: Mônica estava destinada a ficar com Cebolinha. Não importava como, os dois ficariam juntos no final. Estavam destinados um para o outro. Era inevitável. Tão inevitável como o fim do mundo. Contudo, o Cascão falou que mudanças são inevitáveis... Como os dois poderiam ser verdade ao mesmo tempo? Tudo era tão confuso... No fundo, sabia que não tinha um Livro dos Destinos, porque isso foi invenção literária de DC. Mas se ele pudesse, escreveria o nome dos dois juntos? De olhos fechados, Mônica conseguia imaginar o rosto dele se formando com um sorriso de sabe-tudo, conseguia até escutá-lo dizer: “se eu pudesse, não escreveria. Prefiro que você me escolha sem truques ou armadilhas.” Abriu os olhos. Precisava sair do chuveiro. Ou de onde estava indo com sua cabeça.


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Notas finais do capítulo

E aí? Tem alguém lendo essa fic? O que estão achando? Melodramática?



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