1001 cartas para chegar até você escrita por Liliquinha


Capítulo 6
Capítulo 6 – O que você quer dizer com isso?




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Acordou naquela manhã de sábado bem desanimada. Por que ainda pensava na carta? Porque as palavras tristes de uma criatura que não queria mais viver doíam de alguma forma em seu próprio coração. A Fada pediu desculpas pela decisão apressada e até egoísta, mas não se arrependia. Talvez conhecesse melhor o coração da formiga/tigresa para entender que ela queria mais uma chance de ser feliz, de encontrar seu lugar no mundo.

Pensando sobre as cartas, o que o autor queria dizer com elas? Será que o DC queria fazê-la participar mais das aulas de Literatura? Talvez ele só quisesse que ela melhorasse a nota... Seria isso tudo era uma indireta sobre as redações ruins que ela tinha feito ultimamente? Dispersou a raiva, claro que não. Se DC tivesse algo contra suas redações, diria na sua cara, não escreveria cinco cartas como indireta. Continuava sem saber o que o autor pretendia. Não sabia o que significava as coisas que ele colocava na história. E pensar sobre isso por mais estranho que parecesse, deixava-a com uma dor de cabeça daquelas. Nem queria levantar da cama, nem soltar o travesseiro de seu abraço. Quem diria que ela se interessaria por literatura e fantasia...

Decidiu que não podia mais enrolar. Mandou mensagem para Magali, perguntando se podiam estudar juntas para o teste surpresa do Prof. Licurgo. Era sábado, mas essa era a melhor coisa a fazer para tirá-la das reflexões estranhas e desnecessárias. Resposta afirmativa da amiga, Mônica já tinha o que fazer naquela tarde. Não era animador, mas pelo menos passaria um tempo com sua melhor amiga. Depois de estudar, talvez pudessem assistir a um filme, comer brigadeiro... Quem sabe ela também não experimentava uma das incríveis receitas do Quim?

Já era fim de tarde quando voltou da casa de Magali. Não renderam tanto com a matéria, mas a fofoca estava em dia. Mais cedo tinham ido à padaria, com a desculpa de que Magali esquecera lá um livro. Quim ofereceu uns sonhos, que estavam ótimos. Fora um dia bem aproveitado. Olhou para a caixa de correio na entrada. Será que o carteiro do mundo contrário também trabalhava no fim de semana? Deu uma conferida, sem muita pretensão, e lá estava o envelope com seu nome. Um perfume floral subiu imediatamente às suas narinas. Ela riu, qual era o problema dele? Aproveitando a luz do fim do dia e do gramado da frente da casa, Mônica se sentou na soleira para ler:

***

Halam Al-Hakim, filho de Asmar, neto de Salim, mercador de Zenóbia voltou ao Palácio na tarde seguinte. Serviram-lhe pão e chá torrado, dos quais não comeu mais que uma mordida, não bebeu mais do que um gole. Diante da Princesa Layla Al-Jamila e de sua corte, continuou:

A Fada Jandira Al-Nour estava no salão principal a contar ao jovem Farhad sobre as vidas passadas dele. Ela esperava que o jovem a condenasse por impor a nova encarnação à deprimida tigresa, que não pedia mais por nova vida, só a morte. No entanto, ele nada disse, escutando-a atento. A Fada prosseguiu: “Em um vale de lírios, à luz do crepúsculo, encontrei-a pousada em uma flor jovem: pequenina e frágil de cores pálidas. Cumprimentei-a, temendo que não quisesse falar comigo, depois do modo como tomei a decisão. Voou rodeando-me, distraída e brincalhona. Depois pousou em meu ombro. Sua voz era bem baixinha comparada às anteriores. ‘Saudações, Fada Jandira Al-Nour. Se aqui estais, logo minha vida acaba. Aceito o fim.’ Novamente pôs-se a voar inquieta, experimentando o pólen de uma flor. Aproximei-me dela. ‘Diga, borboleta, encontraste nesta vida o que tanto procuravas?’ Ela voou um pouco para cima, voltando à mesma flor, desassossegada. Voou novamente e posou no dedo que lhe ofereci. ‘Nasci do ovo, lagarta cresci. Comi e comi. Muitas luas passaram, a fome não saciava. Cresci.’ Voou novamente em torno de mim. Continuou: ‘Um dia, recolhi. Não tinha mais fome. Queria apenas ficar quietinha... Recolhi. Fiz casulo. Dentro dele, morri.’ Alcançou novo voo, pousando por pouquíssimos segundos foi de uma flor a outra. ‘De manhã, tinha um novo corpo. Sai! Asas amassadas abriram. Vi novo mundo. Que bela estava! O vento me carrega. As flores me convidam... Viestes tão cedo me ver...’”

Voltou a narrar: “Observando-a com um sorriso, respondi: ‘Temo que tua vida será curta... Vim ver-te e perguntar-te se esta forma te apraz... Então, estás satisfeita?’ Supunha que finalmente tinha encontrado a felicidade na forma de borboleta. Enquanto voava em círculos, imaginei que pensava na resposta. Aproximou-se em pleno voo: ‘A metamorfose é igual às várias mortes que vivi... A vida tão curta ensina o desapego. Sendo eu insatisfeita, apreciei a inconstância desta vida.’ Vou para longe, pousando em quatro flores seguidas antes de voltar a mim. Pousada na parte lateral de meus cabelos, continuou: ‘Fui lagarta e não vi a luz da saciedade ainda que vivesse apenas para comer... Morri então no casulo para nascer de asas frágeis. Não tenho paz nem para apreciar as flores. Sou governada pelo vento, inconstante e imponente... Morrer para repetir o ciclo... Oh, Bela Fada, quereis amaldiçoar-me?’ Tomou-me de surpresa e logo afastou-se.” A Fada interrompeu a narrativa por causa de um riso.

Prosseguiu: “Voou para longe, mas prontamente retornou. Pousada em meu ombro, retomou: ‘Por que propõe que eu viva para constantemente morrer? As asas são lindas, não nego, mas a vida é curta demais e há tanto para fazer...’ Talvez aflita, voou um pouco longe e depois pousou em meus cabelos, continuando: ‘E logo morro... Terei de sentir a morte sempre espreitando pelas eras afora?... Ó, não, piedade, por favor!’ Tornou a afastar-se, demorando-se um pouco mais nas flores onde pousava. Aguardava minha resposta.”

               A Fada relembrava tão vividamente que parecia estar no vale naquele momento a conversar com o inseto. Retomou a narrativa: “Aproximei-me da flor onde estava, perguntei-lhe: ‘E o que buscas? Por acaso descobriras a forma ideal?’ Ela ainda voava na minha frente, volátil, respondeu: ‘Ó, Fada Benevolente, nessas muitas vidas, posso não ter encontrado satisfação, porém agradeço pelo tanto que aprendi...’ Pousou em outra flor, para novamente alcançar voo. Reteve-se por uns instantes a mais. Falou: ‘Aprendi duras lições. A pior foi entender que felicidade não é coisa externa para se procurar por aí, tem de ser cultivada no interior. E se não fui feliz, não nego que tive alegrias que me divertiram em meio às tristezas que me consumiram.’ Senti que se ria com suas palavras. Aproximando-se de mim, pousou na ponta de meu nariz e ficou por dois segundos, depois circulou-me e pousou novamente no meu ombro para prosseguir: ‘Meu coração pede por mais. Essas vidas todas não bastaram para o tanto que viver. Não sei a forma exata. Se eu puder escolher, quero crescer, desenvolver... Ser capaz de transformar...’ Alcançou voo novamente, indo mais longe pelo jardim. Vi sua silhueta pousar em diversas flores.”

Prosseguiu: “Sabia que ela me ouviria mesmo longe e por isso lhe disse: ‘Insatisfeita criatura, qual forma poderias ter? Nenhuma até agora satisfez todos os desejos de teu coração caprichoso, nenhuma ilusão consolou-te... És volátil e sedenta... Por sorte, vem-me à mente um ser composto por desejos, e possuidor de meios para alcançá-los. Uma criatura que sabe trabalhar e divertir-se. Inventiva à altura dos sonhos, compensa a falta de recurso com ferramentas... Adapta-se ao lugar onde vive, mutável a ponto de ter vários corpos, ainda que não sofra metamorfose drástica como uma borboleta. Passa por pequenas modificações constantes pelo caminho da vida... Espero que esta nova forma te traga a felicidade que tanto buscas.’ Pousada em meu dedo indicador, dei-lhe um beijo de despedida e deixei que a luz dos novos tempos a levasse-a e envolvesse.” A Fada Jandira Al-Nour pausou por um tempo, analisando as feições de seu convidado.

Farhad Al-Naim ainda absorvia as informações enquanto saboreava seu chá. A Fada logo continuou: “Nessas vidas todas, apenas cresceu o afeto e carinho que cultivei pela aquela que começara os tempos na forma de formiga. Quis certificar-me que um dia encontraria a felicidade que tanto procurou. Na cidade de Omane, nascera a criança chamada de Said Al-Faruk, filho do gentil agricultor. Visitei-o na ocasião de seu nascimento e tornei-me sua Madrinha, de modo que pudesse sempre lhe abençoar os caminhos. Sabia que no seio familiar, o bebê cresceria bem acolhido e amado, seria bem acompanhado e instruído durante a vida toda. Said Al-Faruk cresceu, e quanto mais aprendeu, mais sede de aprender teve. Daria a ele de presente um tesouro quando completasse a maior idade. Para recebê-lo, deveria vir a meu Palácio de Cristal. Cumpriu-se a sina. Quando se tornou um homem bem formado, apresentou-se diante neste mesmo salão, onde dei a Said Al-Faruk o tesouro que lhe correspondia. Agradeceu-me polidamente, mas não me pareceu satisfeito. Perguntei-o o que mais seu coração pedia. De joelhos, prostrou-se. Jurou-me amor eterno, implorava-me que o desposasse, pois ele amar-me-ia como a nenhum outro amara. Recusei seu amor. Não o amava. Lembrei-o que guardávamos um afeto imenso um pelo outro, alimentado por várias eras, mas que isso não era amor. E o sentimento que o tomara de assalto e cegava-o também não era amor: era uma doce ilusão, um capricho do desejo, um deslumbramento.” A Fada rememorava, observando atentamente as reações de Farhad Al-Naim, que naquele instante não esboçava outra reação que não surpresa e leve constrangimento. No entanto, mantinha-se atento ao relato, sem interromper a narradora.

Ela continuou, cautelosa: “Said Al-Faruk tinha se tornado um homem determinado, porém era guiado por suas paixões. Sonhou com o amor e quis tê-lo a qualquer custo... Diante de mim, estava um homem que não parecia se lembrar de suas outras vidas, por isso apaixonou-se perdidamente pela Fada como se fosse uma mulher. Precisava tê-la, mesmo que ela não o quisesse. Insistia em suas promessas e juras. Recusei seu amor, não podia amá-lo jamais, pois ele era um mortal e eu, não. Alertei-o que um romance entre nós seria como a união de uma pedra e uma chama: o segundo há de se extinguir bem antes do primeiro começar a se desgastar. Era uma paixão condenada. Perdoei-o pelo disparate e disse que voltasse para casa com os presentes recebidos e que se esquecesse.” Ela pausou por uns instantes, refletindo. “Talvez tivesse sido melhor não ter deixado que partisse com o coração tão magoado e cheio de rancor. Desprezado e louco por uma paixão fulminante, Said Al-Faruk tomara a pior decisão que poderia: aceitou os conselhos de Muhtal Al-Jinni. Sei disso, pois mais tarde confessou-me arrependido do que fizera. Por hora, saiba que no caminho de vinda até o Palácio de Cristal, o gênio malvado o tentara, como que praguejando uma maldição: ‘Você vai amá-la, vai cair de joelhos por ela, e a Fada de Gelo não vai corresponder seu amor. No entanto, com minha ajuda, terá a mulher que ama nas suas mãos.’ Said Al-Faruk recusara a primeira vez, rechaçando-o com riso debochado e de escárnio. Na segunda, Said Al-Faruk o chamou, implorando perdão e mendigando ajuda, não importava o preço a pagar.”

Com a narrativa, as faces de Farhad Al-Naim pareciam queimar de vergonha, sentia-se como se rememorasse o incidente, deixando-se cobrir pela culpa e o remorso. Engolindo seco, ela continuou a narrar: “Muhtal Al-Jinni bem sabia da impossibilidade dessa união, um amor destinado ao fracasso e sofrimento... Contudo, para o gênio maligno, isso pouco importava. Ensinou ao jovem desesperado que para a concretização de tal casamento, ele, primeiro, deveria unir os nomes dos dois amantes no Livro dos Destinos, assim formando um laço pela eternidade afora. Depois, seria preciso tornar humano o ser imortal, a fim de que os amantes fossem iguais... Para isso, Said Al-Faruk deveria aprisionar-me em uma gaiola mágica, despojar-me de todos meus poderes; em um ritual, matar-me...” A Fada Jandira Al-Nour interrompeu a fala, seu semblante aterrorizado sinalizava que revivia aquela cruel lembrança. Mesmo que Farhad Al-Naim não se recordasse do que fizera em vida passada, sentia enorme pesar por ter sido de alguma forma a causa de tanta dor para a Fada. Prostrou-se de joelhos e curvado perante ela, suplicou seu perdão, desculpando-se pelo ato de vilania.

A Fada Jandira Al-Nour olhando-o com piedade e compreensão voltou a falar: “Farhad Al-Naim, muito me alegra que estejas arrependido e disposto a consertar os erros do passado. Permita-me que antes termine meu relato para que entendas de fato o que pedirei a ti...” Ele voltou a sentar-se e a escutar atento o restante da história: “Seguindo os conselhos malditos de Muhtal Al-Jinni, Said Al-Faruk dirigiu-se à Torre de Um-Carim Tamara Al-Miray, no extremo Norte, no fim do Mundo. Teria de primeiro entrar no Jardim de Mil Portas, passar por seu guardião. Em seguida, deveria subir as escadas da torre, cada degrau um sacrifício e uma chave... No topo, encontraria a deusa do Destino Tamara Al-Miray, que está eternamente a escrever no Livro Infinito das Vidas... A ela, deveria pedir para unir os nomes dos amantes e assim estariam ligados por toda a eternidade... Sei que Said Al-Faruk enfrentou esta difícil viagem e realizou a proeza, porque nossos nomes estão agora escritos juntos pelo sangue da Deusa para sempre... Estamos eternamente condenados a nos encontrar, Farhad Al-Naim... E eu, imortal, tenho que para sempre conviver com a dor de amar-te compulsoriamente e perder para ti um pedaço de mim quando morreres novamente...”

A ampulheta terminou a passagem da areia e Halam Al-Hakim, filho de Asmar, mercador de Zenóbia teve de parar. A princesa Layla Al-Jamilla fez um movimento para frente, elevando-se de seu assento. “Por que interrompes a história justamente agora?” O mercador olhou-a talvez divertindo-se e com suavidade respondeu: “Vossa Alteza, devo parar, porque a areia da ampulheta esvaziou-se. Assim foi acordado, com testemunhas está escrito.”

***

Mônica olhava para as letras do papel, identificando-se muito com o sentimento de indignação da Princesa Layla Al-Jamilla. Por que tinha que parar justo agora? Por que as cartas não continham toda a história? Por que ele queria que a história continuasse se ele não tinha intenção nenhuma de responder as perguntas que ela fazia? Do Contra a confundia e frustrava com a lógica non-sense dele. Era mais sensato escutar o professor Licurgo por 16 horas diretas explicando os tipos de branco do que tentar entender o “plano” daquele adolescente maluco.

Entrando em casa, deparou com a mãe e o pai jogando cartas para passar o tempo. Fazia mais sentido do que as cartas todas reunidas. Decidiu deixá-los jogando na sala, usando a prova como desculpa para ir para o quarto “estudar”. Pegou a pasta que comprou para guardar em ordem as folhas da correspondência e colocou a mais recente em seu devido lugar. Folheando-as todas juntas, não conseguia ter respostas. Só mais perguntas: “Até quando? O que ele quer com isso? Por que eu ainda continuo lendo? E por que eu quero mais?”


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