Up all night I won't quit escrita por Arin Derano


Capítulo 9
[FADREY] - Capítulo 4




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Eu estava em uma floresta de pinheiros. O que me chamava a atenção era que um lado da floresta estava no outono, as folhas alaranjadas e algumas caídas formando um tapete na grama seca. Já do outro lado era inverno, os pinheiros estavam secos e retorcidos e uma camada de neve cobria a grama úmida. Enquanto eu observava os dois opostos, escutei uma voz familiar vindo de dentro da mata.

— Ei, Fay! — Audrey surgiu, e vestia uma roupa de inverno. Uma jaqueta com o forro peluciado, o capuz escondendo o cabelo ruivo. Dava para ver que vestia uma blusa de bola alta marrom por baixo também, além de uma calça jeans e coturnos marrons. — Tenho uma surpresa para você.

— Qual? — perguntei, e antes que eu pudesse me defender, senti algo gelado no topo da minha cabeça. Passei a mão pelo cabelo e um pouco de neve se desfez em meus dedos.

Eu prestei tanta atenção nela que não notei que estava escondendo uma bola de neve. Ela ria de perder o fôlego e não pude conter meu sorriso. Isso teria volta.

Enquanto ela se distraía rindo, fui até uma parte mais elevada do tapete de neve que se acumulava ao meu lado e me estiquei para pegar um pouco e moldar até formar uma bola, a neve indo até embaixo das unhas. Sem pensar duas vezes, joguei a bola e acertei seu ombro. Não foi tão ruim, mas queria que ela tirasse o capuz para que pudesse jogar em seu cabelo também, para ficarmos quites.

Ela instantaneamente parou de rir e me olhou incrédula. Um sorriso travesso apareceu em seu rosto logo depois e ela correu para fazer uma outra bola de neve. Nesse meio tempo, eu já tinha outra em minhas mãos e joguei nela de novo, acertando o braço que ela estendia.

— Nada mal! — elogiou, mas isso não a impediu de continuar seu plano de me acertar de novo. Eu tentei formar outra bola a tempo, porém ela me atingiu no ombro antes que pudesse fazer isso.

Ela sustentava o sorriso como se fosse uma criança brincando, e era como se eu já estivesse acostumada à sua presença assim... como se a gente se conhecesse a muito mais tempo. Como se eu já tivesse visto aquele sorriso inúmeras vezes.

— Ei, não vai revidar? — ela perguntou, os braços abertos, sem temer nada.

— Espera, tem uma coisa no seu cabelo, deixa eu ver! — pedi, fazendo sinal para que se aproximasse. Ela veio, nem um pouco desconfiada. Quando ela se ajoelhou a minha frente para que ficasse na minha altura, eu pensei duas vezes se valia a pena revidar.

E valia sim.

Tirei seu capuz e fingi analisar seus fios ruivos por uns segundos.

— Ah, espera só... — tirei a bola de neve que eu tinha escondido na barra do casaco e joguei em sua cabeça. Não com força, só o suficiente para se espalhar por todo o cabelo e quase tingi-lo de branco.

Ela levantou a cabeça com a mesma expressão de choque de antes. A olhei nos olhos por um breve momento. Suas pupilas estavam dilatadas, e sem conseguir explicar eu tinha certeza de que as minhas estavam também.

— Estamos quites agora. — Anunciei, e ela se deu por vencida. Nós rimos juntas.

— Vem! Quero te mostrar um lugar — Ela foi na frente e eu a segui. Alguns metros à frente, seguindo o caminho de pedras com musgo que separava a floresta de duas estações, tinha um banco de madeira meio gasto. Quando ela se sentou no canto dele e eu fiquei ao seu lado, olhei a vista que ele proporcionava. Estávamos no alto de um relevo, e logo abaixo tinha um lago metade congelado, metade descongelado. Uma parte de mim ainda queria entender o que tudo isso queria dizer.

Eu esperei que ela dissesse algo, mas não disse.

— Por que estamos aqui? — questionei, e ela riu.

— Você e suas perguntas filosóficas — Zah e Villem me diziam a mesma coisa. O paralelo da frase por algum motivo não me despertou curiosidade. É como se eu soubesse como ela iria reagir e estivesse acostumada com isso.

Audrey me olhou, procurando por algo.

— O quê? — perguntei, e ela se aproximou repentinamente, o cheiro de seu perfume me pegando desprevenida. Parecia que ia cochichar algo para mim, sua mão estando apoiada ao lado de sua boca.

Mas o cochicho não veio, e senti algo úmido em minha bochecha em vez disso.

Foi quando eu acordei com um cachorro me lambendo.

Eu me levantei num pulo. O cachorro pareceu satisfeito em ter me acordado e se sentou ao lado da cama. Ele era de porte grande e tinha uma pelagem dourada bonita. Me olhava com seus olhos castanhos e a língua de fora, o rabo abanando atrás de si.

— Jesper! — Escutei Audrey gritar do corredor e passos se aproximando. Quando ela apareceu na porta aberta e seu olhar foi de mim para o cachorro, fiquei sem saber como reagir, meu coração começando a bater estranho. — Desculpa, eu o soltei mas não imaginava que ele fosse sentir o cheiro de alguém novo lá do jardim. — Ela o acariciou na cabeça e ele lambeu sua mão.

Eu lembrei dos boatos de haver um cachorro no castelo. Possivelmente era desse cachorro de que estavam falando.

— Ele é seu? — perguntei mesmo tendo certeza agora.

— É. Eu não imaginava que ele viesse aqui correndo, foi mal. O cachorro latiu, parecendo pedir desculpas também.

— Tá tudo bem, de verdade — olhei o relógio que tinha deixado na mesa da cabeceira e me desesperei. — Droga, eu preciso ir.

Ela empurrou a cadeira para mais perto, e agradeci rapidamente. Saí debaixo das cobertas e me apoiei no colchão para me transferir para a cadeira.

— Jesper me ajudou nessa — eu disse, lembrando de seu nome. O cachorro me cheirava curiosamente e fiz um carinho rápido nele. — Obrigada.

Disparei para fora do castelo e os dois vieram atrás. Me virei para me despedir dos dois e notei que Audrey parecia... nervosa?

— Ei, você pode vir aqui hoje a noite? Queria te mostrar uma coisa — ela perguntou, os dedos inquietos nos braços cruzados.

— Claro — disse automaticamente. Eu devia ter dito não. Por que não consegui?

Seu semblante pareceu mais aliviado.

— Ok, nos vemos depois!

Assenti e comecei meu caminho de volta até a universidade.

***
Cheguei atrasada para a primeira aula. Janna não estava no dormitório, e um nervosismo estranho me deixava preocupada de como ela poderia reagir de eu não ter aparecido no quarto noite passada. Que resposta eu daria? Ela tinha todos os motivos agora para desconfiar de mim.

Ela iria acabar tirando algo de mim uma hora ou outra, e isso tirou todo meu foco para a aula.

No caminho para a segunda classe do dia encontrei Vill. Nós costumávamos pegar o mesmo caminho já que nossas aulas seriam em salas próximas. Quando me viu, ele pareceu preocupado.

— Ei, como você tá? Zah me disse que você não estava no dormitório ontem.

— Eu... não sei. Qual o jornal de hoje?

— Ainda não saiu. Por quê?

Respirei fundo. Pelo visto Zah não tinha contado para ele ainda.

— Eu fui ao castelo na sexta. Encontrei uma garota lá e acabou que fui nas outras noites também. Eu tenho essa nova colega de quarto e acredito que ela esteja tentando descobrir algo de lá através de mim. Ela não me parece muito confiável.

— Isso tudo aconteceu enquanto eu estava fora? Por que essas coisas só acontecem quando não tô perto? —  Ele perguntou brincando. De repente, ficou sério. — Espera. Conheceu alguém lá? E que colega de quarto é essa? O que o jornal tem a ver com isso?

— Não posso deixar que tirem o castelo dela. Eu explico melhor depois! — juntei toda minha força para ir mais rápido com a cadeira.

Quando cheguei na sala do clube de jornalismo, varri meu olhar rapidamente pelas pessoas que estavam ali, e nada da minha colega de quarto. Não sabia se ficava aliviada ou mais nervosa com isso.

— Oi, posso ajudar? — um dos garotos que estavam reunidos ao redor do quadro branco se aproximou. Ele tinha o cabelo preto, e uma mecha azul do mesmo tom dos olhos. Eu já tinha o visto pelos corredores algumas vezes.

— O jornal de hoje já está pronto?

— Ah está sim. Atrasamos na entrega hoje. — Ele estendeu o braço para pegar uma das cópias na mesa e me entregou.

Dei uma olhada rápida e procurei sobre o castelo. Não encontrei nada.

— Se tiver alguma sugestão... — ele pediu, mas eu não tinha. Eu me sentia mais leve agora.

— Está ótimo assim. Escuta, a Janna é minha colega de quarto e...

— Você é a Faith — ele completou. Eu a olhei surpresa para ele. — Foi mal, ela falou de você para a gente. Sou o Ryan, um dos editores do jornal.

— O que ela disse sobre mim? — perguntei, e a expressão dele mudou para preocupação. Ele olhou para os colegas que discutiam sobre alguma matéria e me pediu para segui-lo. Assim o fiz.

Paramos em um dos corredores que dava para os banheiros do térreo, não tinha tanto movimento por ali.

— Ela contou que você foi ao castelo e tem desenhos de lá. Desenhos de coisas que ninguém conseguiu ver antes, e pelo que parecia ela viu sem você deixar. Eu não sei se é verdade, mas eu desenho também e sei como é ruim alguém ver nossos desenhos quando não permitimos. Achei que seria importante você saber.

Digeri o que ele disse, tentando manter a respiração calma.

—  Eu a escutei cochichando com um pessoal de pegar seu caderno e seus desenhos para colocar no jornal. Se não estou enganado ela ia te perguntar isso hoje a noite quando se vissem. Ou pegaria a força... Não dá bem para saber se as intenções dela são boas ou não.

— Algum de vocês já conhecia ela antes?

— Alguns sabiam dela sim. É um prodígio, tem alguns artigos publicados na internet e em livros acadêmicos, além de que ela é mais velha, tem mais experiência. Deve ter trabalhado com jornais antes, por isso ninguém pensou duas vezes em dar o cargo de editora-chefe para ela.

Assenti, minha mente a mil.

— Obrigada por contar.

Eu estava dando a meia volta com a cadeira quando ele me chamou de novo.

— Posso perguntar uma coisa? — afirmei com a cabeça e ele continuou. — O que tem no castelo?

Não consegui responder.

— Foi mal, você tem seus motivos. Vou voltar para o clube. — Ele me estendeu o punho, e demorou um tempo para eu perceber que era um toque. Fiz um punho também e bati no dele, que sorriu. — Até logo.

Acompanhei ele com o olhar até que desaparecesse. Eu tinha mais informações agora, e mais alguém em quem eu podia confiar. Eu acho.

***

No meio-dia me encontrei com Zah e Vill no pátio, em uma das mesas exteriores para contar o que tinha acontecido. Zah escutava calmamente, enquanto Vill não parecia acreditar.

— Então você está dizendo que está apaixonada pela dona do castelo assombrado? E o cachorro realmente existe?

— Eu não estou... — Olhei para a Zah na esperança de algum amparo.

— É verdade. Você tá apaixonada.

— Não, gente! É sério que depois de tudo que contei vocês tão preocupados com isso?

— Sim. — Disseram em uníssono.

— Mas eu ainda não entendi por que ela não pode sair. E se ela for foragida da polícia? Ou pior... — Vill fez uma pausa dramática. — Do FBI?

— Ela pode ser uma alienígena. — Zah comentou, e olhamos para ela incrédulos. — O que? Tá em alta.

— Ela não é nenhuma dessas coisas, tá legal? — defendi. — Eu não posso deixar que vão até o castelo.

— Mas várias pessoas já foram lá e não viram nada. Seja lá o que ela faz, ela dá conta dessa vez também. Deve estar acostumada a sumir sem deixar rastros... É uma coisa que um foragido da polícia faria.

Revirei os olhos.

— Nós podemos ficar de olho por aqui. Te encobrimos para o que precisar — Zah anunciou e Vill a olhou confuso.

— Encobrimos? — Ela o olhou severamente. — Tá, tá bem. Foi mal.

— Obrigada — eu sorri, e logo mudamos de assunto para discutir sobre as últimas provas que tivemos.

Por um breve segundo, era como se tudo tivesse voltado ao normal. Apenas um trio de amigos pondo as novidades em dia e reclamando das mesmas coisas. Sem castelos, nem jornais da faculdade e paixonites. Éramos nós contra o mundo.

***

Quando me dei conta, a semana estava acabando.

Naquele dia, quando voltei ao castelo mais tranquila de que os dois estavam comigo seja lá onde eu tinha me metido, esperei que Audrey me contasse seja lá o que tinha dito que iria mais cedo, mas não aconteceu. Ela agiu como se nada tivesse acontecido, e me mostrou o jardim do castelo, onde brincava com Jesper.

Jesper era brincalhão. Nunca tinha tido um cachorro em casa, então era legal ter contato com um finalmente. Ele trazia seus brinquedos para mim para que eu os arremessasse e ele pegasse, repetindo várias e várias vezes.

Num determinado momento da noite, antes de voltar para casa, perguntei a ela se o que ela queria dizer envolvia o diário que eu tinha visto em seu quarto. Afinal, eu percebi que seu diário ainda estava no mesmo lugar de antes, intocado.

— É... mais ou menos.

— Sabe, nunca consegui ter um diário — comecei, e ela me olhou confusa.

Então comecei a contar sobre não ter a paciência para escrever tudo o que sentia. Em vez disso, eu desenhava. Desenhava como me sentia. A tristeza era de cor fria, galhos secos e chuva. A raiva era quente, deixando em chamas tudo que tocava. Eu via nos desenhos uma forma de me expressar.

Ela me observava atentamente. Não esperei que ela contasse sobre seu diário porque sabia que contaria quando estivesse pronta. Até lá eu poderia contar de mim, de coisas que só meus amigos mais próximos sabiam.

Os dias foram se passando, e estar em meu dormitório não era tão ruim. Janna parecia ocupada com outros assuntos, mas ainda a ouvia repetir aqui e ali que tinha um compromisso importante no fim de semana. Precisei ouvir de Damgaard que estaria tudo bem.

— Não se preocupa, não é a primeira vez que faço isso. É fácil esconder todas as coisas que preciso, quer ver?

Era o meio da semana, e ela estava decidida a me mostrar uma parte do castelo que não conhecia. Quando disse que seria numa espécie de porão, tive que me contentar em ficar em seu colo de novo.

Ela me deixou nos últimos degraus enquanto buscava minha cadeira. Nesse meio tempo, fiquei observando o porão através das velas que ela tinha acendido. Era espaçoso, um longo salão com cheiro de poeira.

Audrey me contou de quanto tempo levava para esconder e levar todas as coisas para cima e para baixo, e quando perguntei sobre o trono logo a frente da porta, me disse de que estava quebrado, e pegava ele aos pedaços para levá-lo.

— Por que você tem um trono se não é de nenhuma monarquia? — perguntei, e ela deu uma risada leve.

— Honestamente, não sei. Acho que gosto da sensação que ele traz de poder. Meio fantasioso se parar para pensar né?

Eu sorri. Ela sorriu também.

— Tem alguns vestidos por aqui. Com eles, o trono e o castelo, podíamos até fingir que somos princesas de algum reino distante — brincou, e eu achei uma ótima ideia.

Com certeza não teria achado uma ótima ideia antes, mas passar o tempo com ela me fez mudar de ideia com muitas coisas. Descobri que adorava cachorros, que era alérgica a cera de velas e que minha futura casa precisava ter uma janela grande no quarto, para observar a paisagem até cair no sono.

Nós fomos a um quarto empoeirado no andar de cima e ela abriu as portas dos armários, fazendo poeira e teia de aranha voar para todo lado. Tossi enquanto tentava afastar a poeira do rosto e ela pegou alguns vestidos que tinha ali. Eram bem antigos, mas ainda sim bonitos.

Eu não era de usar vestidos, e ela muito menos, e iriámos vestir mesmo assim. Seria divertido.

Eu escolhi um vestido que um dia deve ter sido branco, que agora estava num tom bege meio amarelado, as manchas do tempo já bem destacadas na saia. Foi difícil vesti-lo no começo, e precisei da ajuda da Audrey para fechar atrás com laços. Ela vestia um vestido verde escuro, meio parecido com a cor dos olhos. Ele tinha poucos detalhes, e ela ainda tinha feito um rasgo nele para parecer mais “rebelde” nas palavras dela.

Quando terminamos de nos vestir e voltamos para baixo, ela me deixou direto no trono e se afastou, fazendo uma reverência exagerada.

— Majestade... — ela se curvou com os braços abertos e as pernas cruzadas, levantando-se com um sorriso.

Eu revirei os olhos e entrei na brincadeira.

— Que má notícia trazes para mim, minha súdita?

Ela se aproximou, subindo os poucos degraus que destacavam o trono do resto do salão.

— Não é má notícia, a não ser que Vossa Majestade ache, aí sim seria um infortúnio. — Ela procurou algo no rasgo do vestido e de lá pegou uma coroa. Parecia de verdade, prateada e com pedras esverdeadas.

— Onde conseguiu... — comecei, mas ela fez um sinal de silêncio, o indicador a frente da boca. Mantive minha postura.

— Aqui está — ela colocou a coroa em minha cabeça e sorriu, perigosamente perto.

Eu a olhei nos olhos sorrindo também, sem conseguir parar de sorrir.

Ela não desviou o olhar. Pelo contrário, se aproximou ainda mais. As mãos apoiadas no apoio de braços do trono, se inclinando para que seu rosto ficasse na altura do meu. Dava para sentir sua respiração e seu perfume preenchia minhas narinas.

Em um impulso, eu fechei a distância entre nós e a beijei. Não sabia explicar o que se passava na minha mente na hora, só de que eu queria isso. Eu queria beijá-la. Como se ela tivesse um magnetismo que me atraísse mais e mais para ela conforme se aproximava.

E de repente, tudo fez sentido. A vontade repentina de ir ao castelo depois dos boatos e como depois do primeiro dia eu queria vir aqui sempre, por mais que eu tentasse me convencer de que não era uma boa ideia.

E se não fosse uma boa ideia, eu descobriria agora.

A separação que eu esperava não aconteceu. Em vez disso, senti sua mão segurar meu rosto calmamente, quase que com receio. Levantei a minha e apoiei na dela, e foi aí que ela se afastou com um sorriso bobo.

— Não sabia que Vossa Majestade era interessada em camponesas como eu — brincou.

Eu estava sorrindo também e nem tinha notado.

— Audrey, eu...

— Aceita uma dança, Majestade? — ela estendeu sua mão para mim. Eu abri a boca para falar, mas ela foi mais rápida. — Eu te carrego no colo.

Eu pensei com cuidado.

— Se me deixar cair vai ver só!

— Não vou, fica tranquila — ela me segurou da mesma forma quando me carregava para o andar de cima. Eu me perguntava como ela aguentava meu peso, já que ela não parecia ser alguém que malhava.

Uma música em algum lugar distante começou a tocar e ressoou por todo o castelo. Era como um piano tocando uma música clássica. Uma música que eu nunca tinha escutado antes.

— De onde esse som está vindo? — perguntei, a mente dispersa.

— Eu... tenho meus truques — ela respondeu, orgulhosa.

A olhei procurando algo que me explicasse melhor. Eu estava para perguntar mais quando ela começou a cantarolar de acordo com a música, como se fosse familiarizada com o som.

O fato dela me segurar não parecia impedi-la de cantar. Ela cantava alguns versos soltos aqui e ali sem o fôlego falhar, concentrada também nos passos que executava para que combinassem com a melodia. Ela nos girava vez ou outra, imersa no som.

Eu prestava atenção nas letras, mas era difícil reconhecer qual idioma era. De qualquer forma, era lindo ouvi-la cantar. Me perguntava quais outras partes de si ela ainda não tinha me mostrado.

***

Depois do beijo, nosso relacionamento mudou.

Audrey me recebia com um beijo, e se despedia com um também. Era algo novo para mim, e eu adorava. Não que eu nunca tivesse tido um relacionamento amoroso antes, mas tinha algo de diferente nesse.

De verdadeiro, intenso, uma resposta para uma parte de mim que nem sabia que tinha suas próprias questões.

Eu passava mais tempo com Jesper também e brincávamos até tarde da noite. Por uns dias, eu me esquecia completamente das preocupações e problemas. Eu tinha a ela e ao castelo, e para mim isso bastava.

Não contei nada para Zahirah e Villem. Não é como se eles não merecessem saber, mas eu os daria de bandeja tudo que vinha recusando por dias. Eu preferia manter em segredo por orgulho, pelo menos por enquanto. No fundo, eu imaginava que eles já sabiam.

Quando me dei conta, já era sábado. Eu estava em uma palestra e mal via a hora para ir embora, olhando meu relógio de minuto em minuto.

Uma hora se passou, e eu passei apressadamente pela saída do auditório. Assim que saí, os olhares que eu encontrava cruzavam com o meu. Isso era estranho, eu costumava passar despercebida nos corredores.

Uma pessoa cruzou comigo segurando o jornal do dia que tinha atrasado a entrega até onde sabia, e perguntei se podia pegá-lo. Ela me entregou, e a matéria da página da frente me chocou.

Era eu e meus desenhos do castelo logo depois. Na manchete, me elogiavam por darem provas de vida dentro do castelo, provas que ninguém antes tinha dado. E pior: anunciava que a editora-chefe do clube estava indo lá para confirmar suas suspeitas.

Eu não tinha permitido isso.

Me dirigi rapidamente para meu quarto, os braços ficando dormentes e minha respiração pesada. Quando cheguei, duas figuras familiares me esperavam do lado de fora.

— Sentimos muito — Zah começou.

— Tentamos recuperar seu caderno, mas não deixaram — Vill completou.

Olhei em minha escrivaninha, e meu caderno de desenhos não estava lá como sempre o deixava após voltar do castelo. Janna tinha pego.

Como pude ter sido tão burra?

 E então eu desabei. Senti meus olhos arderem e deixei que as lágrimas caíssem. Os dois entraram comigo em meu quarto e deixaram que eu chorasse até não ter mais lágrimas para chorar.

Quando acabei, começaram a contar de suas reações ao verem o jornal e tentarem impedir que os jornais fossem distribuídos. Era tarde demais. A universidade toda tinha lido.

— Estamos com você. O que planeja fazer? — Vill perguntou, a expressão preocupada.

Tentei colocar os pensamentos em ordem.

— Eu achava que o clube todo iria quando as aulas acabassem, e ela...

Por mais que eu tentasse, o nervosismo de que Janna descobrisse a verdade sobre o castelo me atingia em cheio. Dei meia volta e saí do dormitório. Eu iria encontrá-la a tempo.

— Aonde vai? Nós vamos junto — Zah vinha atrás com Vill.

— Não precisa. Eu voltarei logo.

Se eles estavam convencidos ou não, não me importei. Eu precisava ir. Precisava ter certeza de que o pior cenário não aconteceria.

Estava chovendo quando saí do prédio, e mesmo assim isso não me impediu de continuar o caminho que já sabia de cor. Acelerei a cadeira, forçando os braços cansados. Uma adrenalina me preenchia que me impedia sentir mais dor do que já estava sentindo.

Conforme chegava mais perto do castelo, mais forte a chuva ficava. Raios davam uma aparência ainda mais sinistra para a construção antiga, quase que como uma cena de filme.

Quando cheguei na porta de madeira, notei que ela estava semiaberta. A empurrei levemente e o rangido dela ecoou pelo salão vazio. Meu olhar rapidamente correu pelo ambiente, e percebi que as cortinas, candelabros e o próprio trono não estavam mais lá. Era como se eles nunca tivessem existido.

Escutei um barulho de papel. Não demorou para eu ver um jornal voando com o vento alguns metros a minha frente. Consegui recolhê-lo e confirmei que era o da universidade, o que tinha eu como capa.

Continuei meu caminho, procurando no jardim primeiro, e depois indo para os quartos. Se eu tivesse sorte, encontraria ela ainda no primeiro andar.

O silêncio era um companheiro angustiante. Nem mesmo as corujas piavam ou as folhas farfalhavam.

O último cômodo que faltava era o quarto de Audrey. Quando cheguei na porta, a ausência de móveis me deixou uma sensação estranha, desconfortável. Não tinha nada, nem ninguém ali.

Talvez eu estivesse me preocupando demais... né?

Eu estava retornando ao salão quando vi uma... duas silhuetas de costas. Eu quis chamar, mas minha voz falhou. Me aproximei mais, tentando ver melhor tendo apenas a luz do luar para enxergar.

Não demorou para reconhecer os fios ruivos e o perfume amadeirado. Um perfume de cravo e pimenta também se fazia presente. Eu notei também que a pessoa que Audrey estava segurando parecia inconsciente.

— Audrey? — chamei, e quando ela se virou, tudo que achei que sabia sobre ela se esvaeceu.

Sua boca estava sangrando, ou melhor, cheia de sangue. Seus dentes que já eram afiados estavam mais, e ao seu olhar cruzar o meu pareceu que eles diminuíram de tamanho, voltando para como era antes. Suas roupas também estavam cheias de sangue e respingos, e notei que a pessoa que ela segurava estava com o pescoço mordido, quase que dilacerado.

A familiaridade do perfume me bateu de imediato.

Aquela pessoa era Janna.

E Audrey era uma vampira.

Eu estava apaixonada por uma vampira.


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