TARTARÚ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 3
Capítulo 3




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—  Sacino, não dá mais pra deitar com bêbados! Partir pro sacrifício fiado? Não fazemos caridade com o nosso corpo! Ou ganhamos um fixo a partir de hoje ou as nossas pernas não abrirão pra mais ninguém! – Safira rosnava, tendo a sua idade mais avançada como outorga para falar em nome das outras. O amputado pulava num pé só, buscando o encosto de uma cadeira para se equilibrar.

— Tenha calma mulher, que o patrão resolve isso – Dito isso, ele entra furioso no recinto, acuando um pouco as quengas mais novas, mas sem intimidar Safira.

— Que bom que o senhor chegou. Na sua ausência uma das meninas pegou gonorreia e tá mal lá atrás. Não tem dinheiro nem pra chamar o boticão! 

— No escritório, Safira, agora! – Passou que nem um furacão sem nem olhar para a cara da mulher. O resto da trupe se entreolhou com os olhos arregalados sem saber qual o seu futuro quando aquela reunião acabasse. Sacino que não era besta, ficou saltando de um lado pro outro, abraçando uma e outra, falando coisas bestas para consolar as mais novas.

— O que vocês foram fazer na porta da minha casa? – Inquiriu o chefe, tirando o revólver da cintura e colocando em cima da mesa de mogno, cheia de livros que ele não leu e papéis com algumas contas a pagar que ele tinha medo de ler. Aquele gesto não diminuiu a fúria da marafona de cabeleira cacheada que já passara dos quarenta anos, idade limite para uma mulher da vida se aposentar naquele estabelecimento.

— Estamos a uma semana sem notícias suas. A comida tá no fim, estamos sem remédios, ao Deus dará. Foi um ato de desespero. 

— Fale por você Safira. As quenguinhas novas ainda estão apetitosas, mas você já não desperta muito desejo com essas tetas caídas e essas celulites tomando conta das suas coxas.

A mulher respirou fundo para não dizer coisas que podiam fazer com que ele a jogasse na rua naquele momento, e ponderou.

— Eu sei o que o espelho me diz. Entendo que estou acabada nesse ramo. Mas tenho muito pra ensinar aquelas meninas.

Conde olhou para a gaiola vazia, lembrando que tinha que mandar Sacino buscar no carro as rolinhas vivas que tinha trazido de Amparo. Aquilo era o seu calmante natural. Ouviu o que a mulher dissera e talvez ela tivesse razão. Quando não tinha quem ensinasse, ele tivera que gastar uma grana com uma cafetina só pra dar umas aulas as suas franguinhas. Safira poderia lhe custar a metade do preço.

— A partir de hoje você tá fora do palco. Vai orientar as meninas pra fazer exatamente do jeito que eu gosto. Dançar misturando ingenuidade com safadeza. Mostrar que atrás daqueles rostinhos de anjo tem uma diaba doida pra espetar o tridente na carteira de um. É a isca do anzol pra pescar dinheiro dos trouxas. Pra elas tudo continua como tá. Vou mandar melhorar a comida e pronto. Pra você, darei uma comissão sobre cada cliente que as meninas conseguirem.

Ela pareceu satisfeita, dado o esboço de sorriso que Conde divisou na boca sapecada de batom barato.

— O que vamos comer de diferente a partir de hoje?

— Coisa que dê sustança pra trabalharem a noite toda. Quem é que tá doente?

— É a Cândida.

— A menina mais nova da casa? A minha galinha dos ovos de ouro? Vixe, mande Nego Tito vim cá ligeiro!

Conde mandou chamar o boticão, um velho com aparência de tuberculoso, cujas costelas aparentes fazia com que as pessoas sentissem vontade de conta-las o tempo todo, já que tinha o hábito de andar com a camisa aberta, por ser calorento.

— Meu amigo, estou falando com você. O que a menina têm? Posso vê-la? – Insistiu ao amigo de velha data, já acostumado a vê-lo contando os seus ossos – Tenho treze pares, uma a mais que o normal. Parece que você não se conforma não é mesmo? – Ralhou, num riso que parecia um grunhido de porco.

Como se acordasse de um torpor, forçando-se a levar os olhos na altura dos do outro, ele apontou a direção do quarto.

— Vamos lá, que a minha menina precisa de ajuda. Têm penicilina aí nessa malinha?

— Aqui dentro tenho coisas que podem curar de espinhela caída até peste bubônica.

— Deus me livre dessas coisas – Retrucou, beijando o crucifixo pendurado no peito, e abrindo a porta do quartinho que tinha um ranço de pus. A moça virou o rosto com dificuldade para a porta e deu um gemido como cumprimento.

— Safira diz que é gonorreia – Informou, tapando o nariz

O boticão levantou o lençol para ver as partes da moça e confirmou o diagnóstico. Não porque fosse um especialista, mas apenas para sair logo dali. Abriu a bolsa de couro branco com uma cruz vermelha na aba e pegou uma ampola e a seringa de vidro que dava arrepios na enferma. Quando o líquido esguichou a penicilina pela ponta da agulha, Conde foi embora. 

Antes de constatar a volta à normalidade no salão, com as garotas ensaiando passos com Safira, viu Juninho fazendo um escândalo na porta do bar, segurando Félix desfalecido nos braços. O bichinho vinha a ser um mico-de-cheiro, que Donana encontrou no sítio e levara pra casa com a desculpa de que poderia ser bom para acalmar o filho. Mas descobriu-se que o macaco tinha uma prática reprovável, própria da raça. Urinava no rabo e depois esfregava nos pelos do corpo. Juninho começara a fazer parecido. Mijava na mão e jogava o líquido na cabeça, tendo sido difícil explicar para ele que o animal era irracional e seria difícil mandar ele parar com a maluquice. O macaco aparentava ter morrido de velho. O menino em corpo de homem se contorcia num choro convulso de fazer dó até aos corações mais gélidos. Se perguntou se o filho faria um escândalo parecido quando ele morresse.

— Que foi menino?

— Félix..Félix...Félix..morreu painho – Engasgou, levantando o animal nas mãos, e já fedendo. Conde achou que aquele dia estava sendo difícil para o seu olfato, e ainda teria que enfrentar o almoço em casa.

— Vamos arranjar uma caixa de papelão e enterrar.

— Não, não mesmo! O senhor tem uma fábrica de caixões.

— Mas filho, ele é só um macaco.

— Eu quero um caixão pra Félix, um enterro, uma cova, uma cruz! – Exigiu, embalando o símio defunto

Como ele queria acabar logo com aquele furdunço, concordou com tudo e mandou Sacino levar o bicho pra colocar numa geladeira da funerária. Para o menino não ficar sem fazer nada, deu dinheiro pra ir encomendar uma corbélia de flores no sítio de Dona Mocinha.

Entrou em casa morrendo de fome, mas deu uma marcha a ré quando o seu nariz foi agredido mais uma vez.

— Você que reclama tanto que só como camarão, encontrei outra coisa que me agrada.

Ele ficou com receio de perguntar se era o que tava na panela exalando pela casa. Donana foi até a geladeira e trouxe o pior dos pesadelos do marido.

— Mas isso é um camarão gigante Donana!

— Não. Isso é um pitu. Prazer em conhecê-lo!

— E come que parte dessa criatura cascuda?

— O que tem dentro é claro!

— Você fez o que pra mim?

— Fiz um feijão tropeiro.

— Pois bote num prato e amarre num pano que vou comer no escritório – Pediu, querendo sair dali o quanto antes.

Varou a porta agarrado no prato segurando a respiração que só soltou quando entrou no carro. Comeu ali mesmo sentado no banco, quando Nego Tito veio lhe dá um recado.

— Patrão, parece que chegou um telegrama pro senhor lá na agência.

— Tô indo – Aquiesceu, ligando o carro e passando a língua nos dentes pra limpar a farinha grudada e entregando o prato vazio e a colher pela janela para o homem dar um destino.

Além dos negócios não irem como antes, ainda tinha que tirar um caixão de anjinho do estoque pra enterrar um macaco. Juninho que não pedisse pra ele chamar o padre, aí lhe daria uma surra. Entrou na agência de telégrafos e assinou o recebimento do telegrama. Desde que a mãe de Tuti morrera, ainda não tinha feito nenhuma amizade por ali. Era necessário ter alguns contatos em lugares estratégicos, mas parecia que a exigência para se trabalhar no lugar era resumidamente ser carola e solteirona. Olhavam para ele com aquele ar de superioridade. Um dia entraria ali com uns conhaques na cabeça e diria onde aquelas encalhadas poderiam enfiar seus narizes empoados.

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— Êita que o maior rabo que essa cidade já conheceu bateu as botas! E parece que deixou uma coisinha pra mim! – Pensou alto, navegando nas reminiscências de uma época em que fora devoto das nádegas que tinha vida própria e levava os meninos do colégio a dispensar a hora do recreio pra ir pro banheiro. Namoraram por pouco tempo, mas foi o suficiente para ele explorar em minúcias os meandros mais misteriosos daquela caverna escura. A parte ruim da cópula era o que vinha depois. Tinha que fazer os glúteos portentosos caberem novamente dentro da calça de brim. Se ficavam juntos por meia hora, vinte minutos era nessa ginástica. Talvez por todo aquele esforço ela tivesse querendo recompensá-lo. A outra opção é que talvez fosse uma maneira de aplacar a dor que a sua irmã louca, Carmelita tinha causado na sua vida. Ainda bem que aquela desgraçada estava internada num manicômio, bem longe dali.

Estaria no dia seguinte logo cedo no escritório à espera do advogado. Não era uma raça de gente que ele apreciava, mas quem sabe não ouviria uma boa notícia vinda da boca de um deles.

Precisava ter notícias de Cândida, sua maior fonte de receita no bar. Aquela rapariga precisava ficar boa para a apresentação do dia seguinte. Com umas cinco daquelas montaria um puteiro nômade, como um circo ao contrário. Os palhaços seriam a plateia que o faria dar boas gargalhadas contando dinheiro. Por falar em sacanagem, ele tinha esquecido que era o dia do cio de Donana. Que merda! Justo quando ele estava saciado de sexo por muito tempo. Pediria que ao menos fosse no escuro, afinal a imagem de Rosa despida ainda estava muito fresca na sua mente. Ainda tinha o cheiro das intimidades dela na virilha. Os peitos da sua esposa já tinham se despedido da rigidez há muito tempo. Quando a conhecera, os mamilos dialogavam com as axilas e hoje já estavam brigando pra não chegar no umbigo. Metade dos seus dentes tinham ficado num consultório odontológico na capital depois que pariu Juninho, deixando-a com uma boca mais murcha que um jenipapo maduro, e no quesito bunda, Deus o tinha castigado por já ter recebido sua cota com Benedita. Ela tentava sutiãs apertados, mas uma hora ele teria que mamar o recheio. Colocava uma dentadura que tirava à noite com discrição. Mas não tinha sido uma vez só que acordara de ressaca e bebera daquela água. Quanto a bunda miúda, nada poderia ser feito. Por isso evitava a região do furico. Entrou em casa pronto para a batalha, mas Donana lhe deu uma notícia que parecia ótima a princípio.

— Estou nas regras.

— De bode? – Perguntou numa tristeza mal disfarçada

— Mas o cio veio do mesmo jeito.

— Que miséria mulher. Como vamos fazer com você sangrando que nem uma vaca no matadouro?

— No banheiro.

— Assim num quero não Donana. Isso num tá certo mulher.

— Você têm que respeitar o meu cio! – Bradou irritada, vendo a possibilidade de ter que botar uma bexiga de boi no cabo da enxada.

— Tá bom, tá bom – Deu-se por vencido, já que não podia alegar que não estava acostumado a ver sangue. Ajudava Tuti a maquiar os defuntos que chegavam todo estropiado na funerária.

A mulher tirou a calçola e dentro havia uma fralda que sobrara da infância de Juninho empapada de sangue aos pedaços. Ele que estava de cueca, tentava manter com firmeza a lembrança de Rosa em pelo. Mas a sinhá teimava em sumir de fininho, numa tentativa de evitar a visão das cenas que viriam. Com filetes vermelhos a escorrer pelas pernas ela puxou o marido para o banheiro, no corredor, não sem antes confirmar que o filho estaria ausente buscando as flores para o enterro do macaco. Aquele pensamento o fez perder o pouco de ereção que estava conseguindo. Entraram na casa de banho como adolescentes traquinos. Fechou os olhos como um condenado com a cabeça presa na guilhotina, e se deixou levar, resignado pela tarefa doméstica que cumpria com afinco durante o tempo em que eram casados. Para a sua sorte, ela estava mais incomodada com a hemorragia do que ele, e a missão fora executada em pouco tempo. Embaixo do chuveiro mais parecia o local de uma chacina. Se alguém morresse naquela casa e a polícia chegasse, teriam muito trabalho para descobrir que o cu nada tinha a ver com as calças.

Quando voltou ao bar, era quase noite e o cheiro de sangue permanecia nas suas ventas. Queria notícias da sua cabrita.

— Acho que vai ficar boa logo – Se antecipou Safira, metida num traje de banho diminuto que usava para ensaiar com mais realismo. Pena que o estofo já estava derretendo. Ela e sua esposa, era como trocar seis por meia dúzia.

— O que foi que Turíbio disse?

— Que ela não pode trepar por uma semana.

— Ele tá doido? Sabe o que deixa de entrar no meu caixa em sete dias?

— Não sei, só sei que a casinha tem que ficar fechada nesse tempo aí.

— Que miséria! Parece que agora toda notícia que chega é ruim! – Praguejou, virando-se para ver quem entrava esbaforido no salão. Sacino vinha aos pulos, suando as bicas em direção ao chefe.

— Patrão! Patrão!

— Pelo amor que você tem a sua mãe, se da sua boca sair alguma coisa ruim eu juro que mando lhe arrancar a perna que lhe resta!

— Não é isso patrão, escute, é coisa boa! Ouvi o padre conversando com uma beata lá na praça dizendo que se a sua promessa dos bancos for cumprida, ele vai batizar Juninho!

— Até que enfim um negócio bom pra enfeitar meu dia com lantejoulas douradas, meu Deus! – Correu pra buscar uma vela atrás do balcão e acender a Nossa Senhora. Durante o dia a imagem da santa ficava de frente pro salão e à noite, quando o movimento começava, ele a virava de costas para não presenciar certas coisas.

— Minha santinha quero tanto que Juninho cresça temente a Deus! Não quero um herdeiro para os meus negócios. Quando ele crescer...- Lembrou que o rapaz já era maior de idade e mais alto que ele - ...quer dizer, a mente amadurecer como a de um homem feito, vou mandar estudar na capital. Vai ser inteligente que nem o Professor Natalino. Se benzeu e voltou pra ver o ensaio das suas cabritas.

— Patrão me desculpe a curiosidade, mas o senhor quer que o menino estude o que?

— Ora, o que ele quiser. Mas só depois que aprender a ler direito.

Esmeralda, que era uma das moças mais novas do grupo, pensava enquanto rebolava seu corpo rijo na frente do patrão, se seria muito difícil embuchar de Juninho, no momento em que se ouviu um barulho de tiro vindo da rua. Por instinto, Conde se jogou no chão, sendo imitado por todos. Foi até a porta rastejando, ainda cauteloso, e notou que era apenas a descarga furada de um carro velho que acabara de encostar em frente. Dele, saiu uma das mulas que estava aguardando há muito tempo.

— Doutor Conde, como tem passado? – Esticou o braço, um homem todo na pinta. Boca de ouro fazia jus à alcunha. Quando arreganhava os dentes, cegava qualquer um que olhasse fixo naquela direção. O homem carregava um relógio no braço que poderia lhe dar um desvio de coluna com o tempo, dado o peso do objeto. Usava um óculos maior que o para brisas da veraneio, e o sapato enorme era de couro de jacaré legítimo, ele dizia. Eram duas canoas com um bico fino que lembrava o de um urubu. A fivela do cinto dava um cinzeiro pra Conde bater as bitucas de uma caixa de charutos. O cabelo armado brilhava inerte, ensopado de gomalina, e mesmo assim ele tirava um pente do bolso e ficava dando retoques.

— Achando que você não vinha mais. Já tava querendo outro parceiro pro transporte.

— Imagina, olha eu aqui. Antes que você pergunte como um homem bem sucedido como eu viaja nessa Variant velha, te digo que é pra manter o negócio longe dos olhos das autoridades.

— Eu num ia perguntar nada, só me interessa as coisas do nosso trato – Afirmou irritado com aquela arrogância. Ele poderia ter todo o dinheiro do mundo, mas continuaria sendo conhecido como uma mula. Não tinha intenção de comentar aquilo, mas não gostava de perder muito tempo com aqueles tipos da cidade grande.

— Então, vamos negociar?

— Trouxe a bufunfa?

— Uma nota em cima da outra, contadas e conferidas – Respondeu estalando os dedos para que um brutamontes que viera dirigindo a lata velha trouxesse uma maleta preta.

— Quanto vai ser dessa vez?

— Quero tudo o que você tiver

— Tudo? – Perguntou, arregalando os olhos quando a maleta foi aberta. Ele teria que raspar até a última folha da Fazenda Amparo.

— Quanto tempo veio passar aqui?

— O mínimo possível. Mas posso esperar uns dias pra carregar tudo.

Conde lançou um olhar para o carro velho como a perguntar se ia caber tudo ali.

— Não, não. Assim que você me disser que tá tudo pronto eu já tenho um caminhão aqui perto.

— Bom então vamos acomodar vocês! – Afirmou exultante, olhando de soslaio para Safira, que interrompera o ensaio logo após o “tiro”, compreendendo que era para arrumar os aposentos das personalidades. Um quarto com banheiro dentro, com almofadas de pelúcia roxa jogados por cima das duas camas de casal feitas de jacarandá, com um tapete de trama intrincada que achara num brechó de Cabrueira e uns quadros surrealistas pendurados na parede, pintados por Félix, o macaco morto.


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