TARTARÚ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 2
Capítulo 2




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A primeira vez que colocou os pés na Fazenda Borborema, se deparou com a decrepitude de um imóvel promissor. A vassoura de bruxa havia varrido toda a plantação de cacau que o pai da Sinhá Rosa cultivara desde sempre. O velho morrera testemunhando o fungo se espalhar e tomar conta da cultura antes que os seus frutos pudessem viajar para as fábricas de chocolate do velho continente. – Foi de desgosto – Dizia a bela moça, ainda na casa dos trinta anos, dona de um corpo curvilíneo e de negras madeixas encaracoladas, que ganhara o nome da mãe, que cultivava rosas numa estufa. Pereceu envenenada aos poucos pela manipulação descuidada dos pesticidas que usava nas flores.

Com a morte do pai, ela entrou em desespero pela falência iminente dos negócios, passando vários dias sentada sem comer, numa cadeira de balanço na varanda da casa senhorial, esperando os credores para penhorar a propriedade, com o filho de nove anos a lhe trazer alguma fruta tirada do pé. Após onze dias de inércia, entrou em casa, se olhou por um longo tempo no espelho, fez duas malas, uma para ela e outra para o menino, entregando-o no caminho para a esposa do capataz de maior confiança do seu pai.

— Das Dores, eu volto logo pra buscar ele.

— Fique sossegada Sinhazinha, que pro menino Nicolau não vai faltar nada – Disse, vendo a moça de viva beleza e inteligência arguta partir na charrete com destino ignorado.

Ao cair da noite do mesmo dia, ela passou pela porta do estabelecimento. Arrastava com esforço uma mala de couro, e Conde logo viu que ela era diferente. Os seus gestos delicados, a voz baixa e o caminhar dócil de um membro da realeza.

— Me disseram que o senhor é o dono.

— Quem pergunta?

— Meu nome é Rosa e procuro emprego. Algo que dê pro meu sustento e que sobre algum pra mandar pra família – Explicou, desviando o olhar para as dançarinas que ensaiavam no palco.

A raposa velha saiu de trás do balcão e olhou-a de cima a baixo. Era bonita demais para aquilo ali. Além do mais, poderia ser uma esposa fugindo do marido, uma filha fugindo de um cárcere paterno, ou poderia ter aprontado em algum lugar e estava procurando guarida. Tinha que saber mais coisas a respeito daquela Cleópatra, para saber onde estava se metendo.

Com meia hora de conversa ele desenhou o passado, o presente e o futuro de Rosa Borborema, filha do maior cacauicultor do estado, atualmente falido. E morto, também.

— Mas eu sei dançar.

— É que as minhas meninas além de dançar, precisam fazer companhia aos cavalheiros depois do espetáculo. Algumas gostam de conversar com mais privacidade e levam seus novos amigos pros quartinhos lá no fundo – Observou, sempre atento as reações daquelas jabuticabas que expressavam ao mesmo tempo hesitação e coragem. A moça era dona de um corpo anguloso, cultivado a base de leite de cabra, e o seu estabelecimento ainda não tinha categoria suficiente para empregar uma mulher daquelas dançando em cima do palco para um bando de bêbados sem dinheiro o bastante para pagar o que ela valia. Não. Ela seria dele por gratidão e não por apelo estético que ele não possuía. Podia até ser um cabra feio, mas não era burro.

No mesmo dia, inventou uma viagem de negócios para Donana e a levara de volta para a fazenda dizendo que retornaria no dia posterior. Voltou quase uma semana depois, caído de amores. Entre planos e as primeiras providências para transformar aquela terra lucrativa outra vez, foram pra cama. Descobriu que a moça só tivera um homem na vida, o contador da família, que logo se foi quando ela perdeu a mãe e passou a cuidar do pai doente. Conde era um coroa acostumado a lidar com Donana que tinha quase a sua idade. Não estava preparado para o ritmo infernal de uma garota de trinta com jeito de vinte.

Pela manhã, passava meia hora no banheiro do casarão, se olhando no espelho para ver se os doloridos correspondiam a alguma fratura. Faziam as refeições juntos, com Bira a lhe trazer de Cabrueira a lista de compras. A moça era prendada.

— Hoje eu cozinhei um mangalô com carne sêca e abóbora.

O cheiro que vinha da cozinha da fazenda era bem diferente do que exalava do fogão da sua casa. A fedentina de camarão lhe dava engulhos. A rotina era prazerosa, mas as sementes de epadu já tinham chegado. Precisava pôr os seus homens pra trabalhar. Falaram de valores, da colheita, de como repartiriam o dinheiro. Ele só não disse a ela quando voltaria para vê-la. No instante em que a veraneio entrava pela cancela, ela suspirava feliz achando que poderia ser ele. Mas era sempre um dos seus capangas trazendo insumos, homens para carpir o mato, ou recados do seu amigo íntimo. Era assim que ele queria que ela o visse. Aceitou o acordo sem pestanejar. Poderia trazer Nicolau de volta. Agora que tinha dinheiro outra vez, a sua alma passava a sentir falta de outra coisa. Da companhia dele. Alguns anos se passaram e ela foi se acostumando com a solidão, alimentando os seus dias com o milagre da aparição do homem que tinha salvo a sua vida e a do seu filho.

Foi numa manhã fresca que ela viu o carro amarelo. Era o mesmo de quase cinco anos atrás. Já não ficava sobressaltada. Devia ser Bira trazendo as compras que lhe pedira na semana anterior. Estava com uma caneca de leite colada aos lábios quando percebeu a silhueta de quem estava ao volante. Tossiu um pouco, engasgando com um pedaço de nata.

— Bom dia moça bonita – Saudou com brandura o homem mais temido daquelas bandas. Apesar de ter ouvido vários episódios de violência a respeito dele, através dos homens que trabalhavam ali sob o seu jugo, romantizava aqueles causos quase como se fossem contos da carochinha.

— Olá cavalheiro! – Modulou a voz para não demonstrar a ansiedade que lhe apertava as entranhas. Desceu a pequena escada que dava acesso ao gramado onde o carro estava estacionado e abriu os braços. Certificando-se de que estavam a sós num raio de centenas de metros, beijaram-se. Mas havia se esquecido de um detalhe. O filho. Àquela altura, era um adolescente que gostava de ouvir radionovelas e folhear revistas de fofocas, que a mãe mandava comprar.

— Nicolau! – Conde fez um sinal com o dedo e chamou-o para perto do carro. Era um rapaz magro, de pernas finas e compridas, com um rosto de querubim. Havia algo simbiótico no seu rosto, que dependendo do ângulo fazia-lhe tanto parecer com um rapaz ou uma moça, lhe conferindo um aspecto andrógino. Seus gestos eram copiados da mãe, delicados. Sua voz era um pouco anasalada. Conde o analisou e viu que ele era diferente. Era o oposto de Juninho que possuía quase a mesma idade, mas em se tratando do seu filho, que tinha uma personalidade desregrada e esquizofrênica, nada saía como o esperado. Já Nicolau, parecia um animal domesticado.

— Trouxe isso de presente pra você – Disse apontando uma caixa no porta malas

— Um televisor! – Gritou, batendo as mãos e dando pulinhos – Vou poder assistir as cenas das novelas que ouço no rádio.

Conde não sabia muito bem como lidar com aquele ser humano. Ficou sem jeito quando Nicolau lhe deu um abraço de agradecimento. Seu rosto cheio de crateras enrubesceu. Só havia sentido vergonha daquele jeito uma vez, quando Donana se deitou na cama para cumprir suas obrigações matrimoniais e não teve jeito de ele fazer a estrovenga endurecer. Culpa do forte hálito de alho que ela exalava, por conta do camarão frito naquele tempero.

Ele deu uns tapinhas desajeitados nas costas do rapaz e viu como estava ficando mole. Em outros tempos tinha arrebentado o maxilar daquele frango pra transformar aquela voz de clarinete em um trombone de vara. Ao pensar no instrumento, ficou difícil disfarçar o volume na sua calça de tergal. Seguiram para o quarto, enquanto Nicolau tentava instalar uma antena. A curiosidade que tinha a respeito da imagem dos galãs era quase uma comichão que lhe consumia as entranhas diariamente. Aquele homem era bom para a sua mãe. Ele sabia, que tinha livrado a fazenda da falência. Mesmo que não soubesse para que serviam as folhas daqueles arbustos plantados ali, e levados com frequência para a capital por jovens mancebos que tinham um linguajar esquisito.

Ela não perguntou porque ele havia demorado tanto de voltar. Tampouco revelou na cama o resultado da sua abstinência. Lhe fez parecer que ele estava deitado ali ontem. Ele parece ter gostado de tal atitude.

— Já te olhei até cansar as vistas, mas ainda não sei o que você tem de diferente das outras mulheres.

— Você sabe sim. Desde o dia que me viu entrando no seu bar e concluindo que eu não fazia parte dali – Explicou, vestindo um penhoar por cima da camisola.

— Vi que têm muita rolinha por aqui – Desviou o assunto e o rosto do corpo perfeito da mulher que lhe apetecia, para a janela.

— Quer que eu mande um dos homens caçar algumas? Posso assar no braseiro. Ficam uma delícia com farofa de manteiga de garrafa.

— Deixe que eu mesmo mando. Seu homem tá aqui pra não te dar trabalho nenhum – Disse, pensando em comer umas seis no almoço e levar um dúzia de exemplares vivos para a sua distração.

Juntaram-se a noite na sala, em frente ao televisor para ver o noticiário. Conde hesitava em comprar aquele trambolho para a sua casa. Tinha medo das coisas que aquela caixa ia soltando aos poucos. Tinha medo dos milicos lhe pegarem e ele ficar preso ali dentro, com Juninho vendo e ouvindo o repórter dissecar os seus malfeitos.  Talvez ficasse ali dentro para sempre. Cada dia contariam uma história sua. E ele tinha muitas coisas a lhe pesar nos ombros. Enquanto Nicolau e Rosa se divertiam com a novela, ele lembrou da única vez que tivera medo dos milicos, e achava que conheceria o xilindró por dentro. Ou uma das urnas funerárias vagabundas que fabricava.

Foi logo no início, quando se deu conta que o curso de datilografia, que fez por insistência de Donana, ainda sua prometida, não levaria ele a lugar algum. Ao menos aos lugares que ele gostaria. Junto com o seu amigo de infância Tuti, tiveram a ideia de abrir um bar. Não um bar qualquer. Um lugar que abrisse à noite e varasse a madrugada vendendo bebidas, jogatina e mulheres. Reformaram uma velha quitanda, com o dinheiro arrecadado por Conde vendendo revistas pornográficas que ele comprava com o dinheiro das aulas de tiro, que dava as escondidas a menores de idade, que também eram clientes das tais revistas. Por sua vez, Tuti, fazia do muro do quintal da sua casa, uma tela de cinema, projetando filmes super oito de Charles Bronson, que a sua mãe, telegrafista à época, fazia questão de comprar para que ele não crescesse traumatizado com a sua aparência nada hirsuta. Conde era o mais fora da lei dos dois e Tuti funcionava como a luz no fim do túnel quando tudo dava errado. Esse foi o caso em que os homens de verde oliva estiveram muito perto deles, quando o grau de ambição dos dois subira dois traços e foram pra Cabrueira atrás de moças de má reputação para trabalharem para eles em Robledo.

— Mas ainda acho que temos que ter uma virgem – Dizia o jovem Conde, embolando a língua pelo efeito do conhaque, sentado na mesa de uma bodega que ficava exatamente em frente ao Convento das Carmelitas – Podíamos leiloar o cabaço dela.

— Mas como a gente ia provar isso? Que ela era moça?

Conde coçou a cabeça e concluiu que ainda não tinha deitado com uma menina com o cabaço encaixado no lugar. Na verdade, antes de Donana, só Benedita. Mais rodada que trator velho – Dizem que é como roupa nova comprada em loja, tem uma etiqueta. Ainda não tem aquele cheiro forte de bacalhau salgado.

— Não sei. Acho perigoso enganar esses homens que tão acostumados com mulheres da vida. Têm experiência pra saber. Ainda mais se tiver uma doença. Aí a gente tá lascado.

Conde observava a entrada do convento no exato momento em que duas noviças ganharam a rua. Com o álcool a lhe roubar o bom senso, saiu do bar sem dizer nada ao amigo, atravessou a rua calçada com paralelepípedos, e abordou as freirinhas.

— Moças, tenho uma curiosidade febril sobre um assunto que está consumindo a minha cabeça – As moças riram nervosas, ao serem surpreendidas pelo jovem de nariz pronunciado e cheio de espinhas no rosto e claramente alcoolizado – O que faz uma mulher virgem ser diferente das outras? Não me venham com esse papo de pureza. Quero saber é na estética da coisa. Têm algo a lhes tampar o negócio lá embaixo? – Perguntou, baixando o tom de voz, e apontando o lugar, enquanto cambaleava um pouco.

As noviças não se sentiram constrangidas, afinal aquilo era motivo de orgulho para elas. Dentro das suas bolhas de ingenuidade e com vidas de miséria até serem admitidas ali, sentiam-se superiores por terem aquela condição.

— Sim, temos algo de diferente sim – Respondeu a mais assanhada das duas.

— O quê pelo amor de Deus?

— Uma......pele. Uma pele fina que atesta que somos puras. Nunca tivemos conjunção carnal. E agora não podemos pecar contra a nossa castidade, somos casadas com Jesus – Concluiu já sendo puxada pela outra noviça mais tímida.

— Como uma tampinha na garrafa de coca cola?

— Não. É como uma pele de salsicha.

Ele cambaleou um pouco tentando juntar as informações. Aspirou o ar próximo das moças, tentando perceber se havia um cheiro diferente nas moças com cabaço, mas só conseguia sentir um aroma do suco de manga que tinham bebido no almoço. Por um instante, se deixou levar pelo seu lado violento, e chegou a tocar a coronha do seu revólver escondido no cós da calça. Queria leva-las para algum lugar e arrancar seus hábitos, fazerem-nas abrir suas pernas e analisar por si mesmo. Quando viu Tuti se aproximar, recuou das suas intenções.

— Obrigado irmãs. E desculpa pelo incômodo – Bateu na aba do chapéu, passou a mão pelos ombros do amigo, levando-o de volta pro bar.

— Conseguiremos umas putas em início de carreira e compramos uns cinco quilos de salsicha - Tuti não havia entendido nada daquilo, mas não queria fazer perguntas. Às suas costas, passava uma viatura com milicos que pareciam perguntar as noviças se haviam sido importunadas.

 

Olhava o telejornal sem nenhum interesse. Estava preocupado com a demora das mulas em vir buscar o próximo carregamento, com a falta de defuntos para vender caixões, com o preço do camarão, com a escassez de rolinhas a lhe cercear a diversão, com o padre que não queria batizar Juninho e com as putas do seu cabaré que estavam ficando velhas para atrair clientes. Mesmo com tudo aquilo a lhe cobrar providências, sentia-se em paz ali. Uma sensação de pertencimento. Uma harmonia que não tinha dentro da sua própria casa. Estava amolecendo com a idade. Já não tinha muita vontade de apertar o gatilho por qualquer motivo besta. 

Sentiu um cheiro de rolinha assada no fogão a lenha e cochilou um pouco nas almofadas do sofá. Teve sonhos fragmentados com Juninho andando num rebolado farsesco, falando fino e com as munhecas quebradas, enquanto Donana vomitava camarões vivos dentro da banheira que ele estava tomando banho. Foi quando a coisa toda chegou no seu pesadelo recorrente, onde testemunhava o seu pai matar a sua mãe, enquanto estava no quintal se lavando, esfregando uma bucha na pele para tirar o cheiro do crustáceo.

 

Saiu da cama à francesa, antes do sol raiar e sem tomar café, e deu ordens aos homens que já trabalhavam na colheita do epadu. Entrou no carro e pegou a estrada, planejando passar nas suas terras para ver como andava a extração das jaqueiras velhas. Levaria a madeira para a serraria de Damião pra fazer os bancos novos da igreja. Quem sabe se com aquele mimo ele conseguia convencer o padre a batizar o seu menino. A sua relutância era pelas fofocas que faziam ao seu respeito, as mortes violentas que botavam na sua conta. Não era ruim ser temido, o que não gostava era que esse fato lhe impedisse de fazer algo. Juninho precisava daquele sacramento. Quem sabe Deus acalmava o coração nervoso do filho, que vinha ficando cada vez mais violento e sem controle. Tinha que batizá-lo antes que o padre sugerisse um exorcismo, ou ele tivesse que interna-lo num hospício. Donana queria levar ele pra capital, num médico de cabeça, mas já tinha ouvido falar coisas do arco da velha, inclusive sobre choques elétricos, cirurgias que lhe abriam o crânio e arrancavam um pedaço dos miolos. A criatura podia ficar abestalhada, babando, com o olhar perdido. Seu filho não era candidato pra esse tipo de tortura que eles chamavam de cura. Não era a merda de uma tomada para eles enfiarem fios elétricos no seu rabo.

Viu o carregamento de madeira no caminhão ser concluído e completou o seu trajeto até a porta de casa.

— Cadê Juninho, mulher?

— Cadê você primeiro, né homem? Onde você está quando eu mais preciso?

— O que é que foi dessa vez? Quer que eu troque alguma lâmpada queimada? Porque isso já é horrível demais pra você.

— As vagabundas que trabalham pra você no seu bar, vieram aqui dizer que se o salário não aumentar esse mês elas vão fazer greve.

— Rebanho de raparigas! Eu mesmo mato uma por uma se isso acontecer! Vir na porta da minha casa me ameaçar?! – Peraí que vou dar um jeito nisso é agora mesmo – Vociferou, completando de balas o tambor da sua arma, subindo as calças num gesto de irritação e crispando a boca. Saiu marchando e girando os pneus da veraneio em falso no cascalho da rua, enquanto Juninho gargalhava na janela do andar de cima.

— Agora as putas vão ver o que é fogo de verdade! – Gritou, enquanto escovava a boca pra tirar os cacos de unha roídas, presos nos dentes.


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