Um Reino de Monstros Vol. 4 escrita por Caliel Alves
Era noite, o estábulo da Cavalaria das Dunas foi fechado por um jovem criado. Os cavalos, no entanto, se puseram a relinchar quando ele saiu. Curioso, ele voltou, pé ante pé, como se já esperasse pelo pior.
— Olá, tem alguém aí?
Ele acendeu o archote e iluminou as paredes de pedra do estábulo. Em meio a uma baia, o alazão de Rachid se deformava em uma horripilante criatura amorfa. O ser disforme se revolvia no chão como um limo negro e escorregadio.
— Por Al Q’enba, o que é isso?
O monstro emergiu do chão esboçando um sorriso assustador. Sua pele viscosa e negra adquiriu uma cor bronzeada e uma textura mais orgânica. Em pouco tempo já reproduzia as características físicas do jovem.
— Oh, não, meu deus...
Tunck, o archote caiu no chão, à palha seca pegou fogo em pouco tempo. Não demorou um minuto para todo o lugar arder em chamas. Centenas de cavalos relinchavam ao mesmo tempo. O döppelganger voltou os seus olhos para o castelo do sultão e ironizou:
— Ora, ora, ora, quem diria que eu a veria tão cedo, minha cara Rosicler...
***
A ordem havia sido dada de modo muito expressivo e assustador: “não saiam do quarto, se forem vistos vagando sozinhos por aí, minha guarda real terá o direito de matá-los”.
Letícia se via num enorme espelho. Por um momento, não se reconheceu. Sua pele estava escurecida, os pêlos dos braços haviam ficado dourados.
— Aí, parece que eu estou com toda a areia do deserto nas minhas roupas. Isso já está me agonizando.
Após tomar um banho numa tina de mármore, a alquimista se lembrou das palavras do barão de Alfonsim. Talvez se o seu desejo de acompanhar o grupo não fosse tão grande, teria renegado a missão.
Ela olhou para o seu dedo, uma simples gota de sangue a havia livrado da morte certa. Repudiara o sultão, tão pouco ele simpatizara com ela.
Após terminar de se enxugar, ela viu que em sua cama havia um lindo vestido tradicional oasiano.
— Hã, espere, quem pôs isso aqui?
Ela tomou uma pistola em suas mãos e vasculhou o seu cômodo com segurança.
— Seja lá quem for, é melhor aparecer. Vamos, não tenho a noite toda.
Voltando para o vestido, ela achou um bilhete ao lado do traje e o leu. Um rubor tomou toda a sua face. Se ela não fosse acordar os outros, ela teria descarregado todo o pente das pistolas.
***
Puxa, mas que chatice, eu estou cansada de ficar trancada aqui nesta masmorra...
E saltando da cama, ela esgueirou-se pelo quarto e foi até a janela. À noite, o vento frio do deserto lançava fortes rajadas no castelo, pois era a construção mais alta da capital.
— Hunf, eles fecharam as janelas com um cadeado e correntes, mas de que adianta isso, veio? Esses sistemas de segurança poderiam talvez impedir a entrada de um grifo, mas não uma mina desembolada como eu!
Usando um pequeno clipe, ela abriu o cadeado e arrastou as pesadas correntes silenciosamente. Depois abriu as janelas suavemente.
Fuuu, o vento soprou os seus cabelos cacheados, se a bandana não estivesse bem amarrada, teria sido lançada longe e nunca mais seria recuperada.
— Bem, agora vamos entrar com o pé direito, ou melhor, a mina aqui vai dar um rolezinho.
A gatuna com muita agilidade, se dependurou na janela e buscou pontos de apoio nas paredes de pedra. Por sorte, as pedras eram irregulares, permitindo que as suas ágeis mãos agarrassem as rochas gastas pelo sol e pelo vento.
— Adoro as construções de pedra bruta, se liga, são as mais fáceis de escalar.
E alcançando uma janela com varanda, a garota subiu até ela e olhou para baixo consternada. Para àquelas horas da noite, a rua em volta da sede do governo estava bem agitada.
— Hihihi, a vida social dos oasianos é bem barulhenta, hein!
A ladra abriu a janela, pelas suas deduções, aquela janela dava num corredor onde ficava o quarto real do sultão. Desde muito cedo ela desconfiava que algo ruim estivesse acontecendo. Do mesmo modo que saíra dos seus aposentos, ela adentrou no novo recinto, silenciosamente.
***
Por questões de segurança, Saragat e Tell foram alojados no mesmo quarto. O conjurador temia que o pente fino dos alfarazes oasianos tivesse deixado escapar algum döppelganger, afinal de contas, eles podiam se transformar em qualquer um.
— Saragat, tá dormindo?
— Você nunca dorme, não é, seu pivete?
— Index voltou...
— E daí?
Ainda cochilando, o servo de Nalab se ergueu e falou com a voz ainda pastosa:
— Uahg, eu espero que seja importante.
— Diz pra ele, Index!
A criatura de orelhas imponentes rodopiou no ar e parou na frente do mascarado.
— Como conjurador, você sabe a dinâmica do fluxo mágico? Todos os seres possuem uma reserva de energia mágica, os humanos conseguiram utilizar a magia de diversas formas, dentre elas: a conjuração, método de canalização de magia divina; e a magia arcana, onde o mago utiliza de sua própria energia mágica pra lançar as magias...
— Sim, eu sei tudo isso. E assim como há uma corrente sanguínea, nós humanos possuímos uma corrente de energia mágica. O que isso tem haver?
O guardião e o mago-espadachim se entreolharam entusiasmados por Saragat não entender o que eles diziam. Armado do Cajado Nebuloso, eles os forçou a falar.
— Escute ele, Saragat, ao menos essa vez.
— Tá bom, fala, vai, bola de carne.
— Pra o Monstronomicom ser usado, Tell precisa ativá-lo com uma fórmula mágica e aplicar um pouco de sua energia mágica. Um processo normal para utilizar artefactos de grande complexidade e de uso contínuo. Entretanto, há uma energia mágica vinda do livro, uma força grande e pulsante, que está emanando de volta pra Tell.
O encapuzado alisou o rosto com as duas mãos e exclamou em alta voz:
— Quer dizer que tem alguma coisa no Monstronomicom retransmitindo magia pro Tell?
Duas cabeças concordaram que sim. Diferente do conjurador, o jovem Lisliboux estava mais excitado que assustado.
— Mas que tipo de energia mágica ela é? Ofensiva, maligna, má?
Afinal de contas o livro coleta a monstruosidade, a essência negativa em estado puro.
— Não, na verdade ela é suave. Quentinha, na verdade, eu a sinto mais quando estou concentrado ou, às vezes, até dormindo.
— Há quanto tempo você vem sentindo ela?
— Desde que saímos de Bashvaia.
O servo de Nalab assumiu uma postura de análise. Infelizmente Letícia estava longe demais para debater sobre este assunto.
Tell e Index se abraçavam, e festejavam, Saragat fez questão de jogar um balde de água fria neles.
— Esperem um pouco, porque estão tão felizes?
— Pode ser uma nova mensagem do meu vovô.
— Como também pode ser algo ruim despertando, Tell. Esse livro é estranho, nunca ouvi dizer que um artefacto pudesse emanar energia mágica para o usuário continuamente, sem necessidade de uma recarga ou uma energia tão neutra...
— Eu confio no meu avô, Saragat, você deveria confiar também.
O garoto estava sério e olhava para o mascarado fixamente, o mesmo deu de ombros.
De repente, a atenção deles se voltou para a porta. Um guarda berrava para outro que se dirigia apressado pelo corredor.
Tap-tap-tap, o encapuzado pediu para que os outros dois ficassem em silêncio, queria entender o que estava acontecendo.
— O quê? Quem invadiu o quarto do adail?
— Não, o do senhor Amir? Foi à ladra?
— Maldita seja essa ladra!
O grupo se dirigiu até a porta. O mascarado a esmurrou firmemente. O mago-espadachim estava com o coração palpitando.
— Aquela idiota ousou roubar o castelo do sultão. Ela colocou todos nós em risco.
— Olha, eu não sei por que, mas acho que dessa vez não foi ela.
— Me diz só o porquê, Tell?
— O irmão já se mostrou ser a coisa mais importante pra ela, e não tem como ela reencontrar o seu irmão mais velho abandonando a gente.
O conjurador olhou para os olhos do jovem guerreiro e confiou nas suas palavras. Com uma das suas magias divinas, ele arrombou a fechadura e o trio se dirigiu para o corredor. Dezenas de guardas se dirigiam para o quarto de Amir.
Não quer ver anúncios?
Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!
Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!