Um Reino de Monstros Vol. 4 escrita por Caliel Alves


Capítulo 27
Epílogo: A proposta tentadora




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Parte 1

Meses depois...

O Monstronomicom é um artefacto mágico que purifica a monstruosidade nos seres animados, mas não em seres inanimados, e as registra nas páginas do livro através de magia rúnica. São codificados através de uma imagem. A magia rúnica pode ser ativada com emissão de energia mágica do usuário do livro.

Isso provoca uma Invocação. O monstro contido nas páginas do livro é materializado. A sua personalidade é igual a personalidade do mago. Sua permanência fora do livro depende do nível de experiência e poder de emissão de energia mágica do usuário.

Caso o mago fique desacordado ou o monstro seja destruído, ele retorna ao livro. A única forma de destruir a Invocação em definitivo ou impedir que ela seja executada é destruir a página onde o monstro está catalogado. Tudo que acontecer a página do livro, acontecerá com o monstro.

Quando Tell de Lisliboux terminou de contar tudo que sabia aos presentes, todos ficaram chocados. Saragat não se aguentou e disse:

— Mas isso é uma nova forma de artes mágica! Taala criou isso?

— Meu avô era especialista em magia rúnica.

O conjurador Amir estava surpreso com aquela notícia. Os Lisliboux mais uma vez surpreendiam com a sua astúcia.

— O treinamento o ajudou a aprender isso na prática, não foi, Tell?

— Na verdade, senhor Amir, o treinamento só reforçou o que eu já sabia. Minha relação com esse livro é estranha, sabe? Quase intuitiva. Seus poderes se revelam a mim quando tenho a experiência e a sabedoria necessária para usá-los.

— Seu avô era um homem muito sagaz, não à toa, Lashra o reconhece como um herói.

O mago-espadachim estava feliz com os resultados de seu treinamento. Ao longo dos meses, sua evolução em magia e esgrima foram tamanhos que até seu companheiro de treino, Rachid, tinha dificuldades em acompanhar os seus movimentos.

Embora tivesse avançado no controle de energia mágica, transmutações de fogo e terra, ele não havia dominado a Lâmina Astral. O alfaraz justificou que aquilo não era culpa do jovem. A técnica só era dominada durante muitos anos de treino. Era necessário um corpo maduro, com musculatura rija. Os alfarazes eram treinados desde a tenra infância para dominar a arte marcial sem efeitos colaterais.

Seus companheiros não ficaram para atrás. Letícia criou novos projéteis com transmutações embutidas.

Saragat passou muito tempo meditando e orando no deserto, tentando se reconciliar com a sua deusa depois do fiasco na batalha contra Zarastu. Pela primeira vez em sua vida de conjurador, não conseguira realizar uma magia divina!

Rosicler era a mais misteriosa. Sumiu durante meses. Ninguém sabia onde estava e o que fazia, até que voltou. As feições haviam mudado um pouco. Estava mais irritadiça. Usava uma roupa semelhante à dos assassinos: um macacão preto com um cinturão de lâminas na cintura, e uma braçadeira de facas no braço. A bolsa guardava uma série de armas, como uma zarabatana retrátil e porções alquímicas.

Havia um certo clima de comemoração naquela reunião quando um alfaraz entrou correndo na sala.

— Meu adail, Vossa Alteza, um falcão vindo do Sudeste de Lashra traz uma mensagem.

Sudeste de Lashra? O que acontece na terra dos tauamãs?

— Vamos lá. Precisamos saber do que se trata.

Amir conduziu os outros até o setor de correspondência do castelo. Chegando lá, eles encontraram um enorme falcão-vermelho. Ao seu lado, havia uma bolsa de couro. Com cuidado, o conjurador de Al Q’enba abriu a bolsa e retirou o seu conteúdo. Era um telemago de projeção holomágica em forma de um retângulo de meio metro por quarenta centímetros feito em cristal obsidiano.

— Ele projetará imagens em três dimensões com áudio. É melhor que prestem bem atenção e tomem nota.

— Meu adail, pode ser uma armadilha.

— A vida é uma armadilha, príncipe Rachid.

Então o velho acionou o telemago. As imagens eram escurecidas, e apresentava borrões em algum momento, impedindo uma visão mais claras da cena. Ao fundo, com os braços estendidos em forma de cruz e acorrentados pelos pulsos, estava um casal, um homem negro e barbudo de cabelo crespo, e uma mulher de pele cor de bronze, de cabelo liso e longo.

O lugar parecia uma masmorra, com parede e piso de pedra bruta. De repente, surgiu uma estranha criatura logo abaixo do casal de prisioneiros.

Sua pele era verde e escamosa. Tinha uma cabeça grande, como a de um crocodilo. Um cabelo longo e desgrenhado. As costas, surgiam duas asas de morcego. Uma cauda de serpente balouçava no ar. As pernas eram finas e amarronzadas, como as dos insetos, mal encobertas por uma saia balão.

— Tell de Lisliboux, você reconhece essas pessoas?

De repente, o casal encarou o projetor nos olhos. O coração do garoto bateu descompassado. Eram eles! Não lhes restava dúvida.

— Pai! Mãe!

— Tell, não escute o que essa bruxa tem a dizer...

— Tell, meu querido, nós te amamos...

— Chega de pieguice! Eu sou a general atroz Cuca do Batalhão Místico. Serei breve, ouviu? Venha ao Arquipélago Vitória-Régia se quiser ver os seus pais de volta. Você me dará o Monstronomicom em troca da vida de seus pais. Mas venha o mais rápido possível, ou as correntes mágicas irão consumir a vida de seus pais até a morte.

— Não caía nessa chantagem, meu filho...

— O Monstronomicom é mais importante...

— Adeus, Tell de Lisliboux, nos vemos na Itaoca.

Então a transmissão acabou. O jovem ficou desesperado, pela primeira vez em anos, ele via o rosto de seu pai Taran e de sua mãe Crala. O garoto caiu no chão, de joelhos. Botou as mãos no rosto e deixou que as lágrimas rolassem. Letícia se aproximou e pousou a mão no ombro dele.

— Eles estavam vivos esse tempo todo! Vivos!

— Tell, não fique assim...

Saragat tinha estreitado os olhos. Era engraçado como dois heróis da Segunda Grande Guerra estavam vivos e ninguém sabia onde estavam. E de repente, eles aparecem prisioneiros no calabouço de uma bruxa? Infelizmente o conjurador era bastante cético.

— Tell... eu sinto muito por tudo isso. Mas, acha mesmo que sejam os seus pais verdadeiros?

O garoto se levantou, e as lágrimas, empurrou o mascarado. Ninguém sabia o que fazer.

— Acha que eu não reconheceria os meus pais?

O rapaz enxugava as lágrimas, o nariz escorria. O albino sentiu pena dele.

— Não foi isso que eu quis dizer. Pode ser uma armadilha. Sabe muito bem como os monstros são traiçoeiros. Seus pais foram dados como desaparecidos...

— DESAPARECIDOS! Eles não foram dados como mortos. Eu irei ao Arquipélago Vitória-Régia com ou sem vocês.

O jovem saiu pela porta sem cumprimentar ninguém. Index e Letícia saíram atrás dele. Saragat não entrou em discussão com o mago-espadachim. O servo de Nalab tomou o telemago em mãos e tentou acioná-lo de novo, mas as imagens não foram transmitidas. A gravação se autodestruíra.

Rachid e Rosicler o olhavam decepcionados. Rachid saiu pela porta, atrás do flandino também. A ladina caminhou à porta, depois, virou a cabeça e disse:

— Você não sabe como é perder alguém, Saragat...

— Você que pensa.

— Mas ele ainda tem esperanças de revê-los. Isso torna o processo ainda mais doloroso, sacou? Não tira isso dele não, é cruel demais.

E também saiu da sala de correspondência. Amir veio até o conjurador e apertou seus ombros com força, demonstrando alguma empatia. Se foi deixando o mascarado a sós com suas reticências.

Parte 2

Ele estava sentado no trono real do Castelo Gólgota. Admirando a decoração gótica com suas cores fúnebres. Antes o Castelo Real dos Habsburgos era um local encantador, onde a luz e a beleza eram constantes. Quando o castelo foi destruído e a família real foi enforcada em praça pública, aquele local se tonou símbolo de medo e morte.

O povo foi escravizado, e durante anos, construíram um castelo em forma de um crânio demoníaco. Designer do próprio Zarastu. Era nessa residência oficial do senhor absolutista governava as vastas extensões do seu reino.

Um arauto anunciou a chegada dos seus dois conselheiros. Sua simples presença já trazia um peso à atmosfera. O primeiro era o conselheiro Baphomet, um fauno com cornos espiralados, tinha uma barbicha e usava um colete de couro e braceletes de ferro.

Sua companheira era Isis, a mais poderosa das harpias, suas pernas eram as garras de um gavião, seu corpo era emplumado nas costas e cabeça com face humana, de onde pendia um penacho de chamas, os braços eram asas retráteis.

O rei fez um sinal com os dedos, entediado. A campanha contra Oásis havia trazido enormes baixas a Horda, e para piorar, trouxe novo fôlego ao Exército da Aliança Internacional. A dupla de conselheiros se ajoelhou.

— Toda vez que veem até mim, tenho a impressão que é para trazer notícias desagradáveis.

Os dois se levantaram. Baphomet tomou a permissão da palavra e disse:

— Fizemos um novo censo no Reino dos Monstros. A horda vem perdendo seu contingente em massa. A coalização entre flandinos e alfonsinos que lideram a aliança expandiram os territórios dos revoltosos. Wa-no-Kuni já declarou guerra a Vossa Majestade, e nosso enclave sob liderança do mononoke Onimaru já caiu nas mãos dos samurais. Yojimbo retornou a sua nação, provavelmente, foi importante nessa tomada de decisão, afinal, ele é filho primogênito do xogum.

— O que vocês acham que devo fazer?

Isis fez um sinal com suas asas e tomou um telemago em mãos. O telemago projetou imagem dos Generais Atrozes: Labatut, Cuca, Vicious, Anhangá e Sirius.

— O nosso exército está defasado em monstros. Nossas peças de reposição já acabaram. Com os territórios conquistados, os humanos purificados e a perda de Oásis causaram um saldo negativo na Horda de 53%. O equilíbrio foi reconquistado com os elementais, monstros surgidos de porções de fogo, terra, água, vento etc.; os tsukomogami, monstros nascidos de artefactos; e as selvagens quimeras, monstros originados de animais. Porém, todos eles de menor potencial ofensivo, comparado com os monstros nascidos de humanos transformados. Se não mantermos o território do Arquipélago de Vitória-Régia sobre controle e continuar a remessa de humanos para cá, teremos que ceder cada vez mais terreno, e diminuir a linha de avanço das tropas.

— Concordo com a conselheira Isis, Vossa Majestade. As linhas de suprimento estão muito avançadas para a atual logística da Horda. Rebeliões estouram a todo o momento nos baronatos e ducados do Reino dos Monstros. A perca de controle das minas da Federação de Comércio do Norte na Cordilheira de Bashvaia foi um duro golpe para o Tesouro Real. O suborno entre os humanos está ficando oneroso! Não podemos de nenhuma forma perder o Arquipélago de Vitória-Régia, praticamente todo o nosso ouro e prata para cunhagens de moedas vem das minas de lá, onde o povo tauamã é feito de escravo pela general atroz Cuca.

A imagem da bruxa se tornou destaque na projeção, ficando duas vezes maior que a dos outros. A imagem de Labatut estava escurecida, indicando sua morte.

— E como está o nosso general atroz Sirius? Não o tenho visto a dias.

Isis pôs a imagem do lobisomem em destaque com um sinal com o dedo.

— O general atroz Sirius está se adaptando ao uso do Braço Demoníaco, artefacto criado pelo anão siamês Somatópago. Treina exaustivamente em isolamento no intuito de melhor servir a Vossa Majestade.

— O Batalhão Espectral conseguiu achar o paradeiro do louco do O’lantern?

— Não, Meu Rei. Batidas foram feitas pelo Batalhão Amaldiçoado em todo o Reinado, mas não encontraram o monstro renegado.

— Muito bem. Estão dispensados por hoje.

O rei ficou circunspecto, eram notícias ruins. O cerco parecia se fechar. Meneou a cabeça. Tinha estado em situações piores e mais desesperadoras. Por pouco não havia morrido na campanha contra os oasianos. Expirou o ar gélido do Castelo Gólgota.

Parte 3

Alisou o cabelo crespo. Fechou os olhos e respirou fundo. Entardecia. O sol se escondia atrás das dunas, com um brilho tímido e alaranjado. Apoiou as mãos na amurada do castelo, sentiu a textura firme das rochas, a segurança das formas. Index estava so seu lado, e em silêncio respeitoso.

Era como se o peso do mundo estivesse sobre os seus ombros! Para completar, descobriu que seus pais estavam vivos. Estavam perto o suficiente para ter esperança de revê-los e distante o suficiente para temer por nunca mais reencontrá-los.

Cerrou os punhos. Index observou, era apenas uma criança. O Guardião do Monstronomicom sabia mais do que ninguém o que se passava dentro daquele coração.

— Tell...

O jovem não se virou, o outro expirou o ar profundamente e continuou:

— Eu acredito que isso é um erro e que provavelmente iremos nos arrepender dessa viagem. Mas, mesmo assim, nós gostaríamos de dizer que você não irá só até o Arquipélago Vitória-Régia.

O rapaz se virou. Seu semblante fechado se desfez em um sorriso simpático. Atrás de si, estavam Saragat, Rosicler Cochrane, Letícia Dumont e o príncipe Rachid al Názir. Essa era a atual formação da Companhia de Libertadores, liderada pelo conjurador de Nalab.

O portador do Monstronomicom contemplou os seus amigos. Aquela gente se uniu a sua causa, o protegeu e lutou com ele enfrentando poderosos inimigos, arriscando suas próprias vidas. No início ele só queria encontrar o avô, Taala de Lisliboux. Agora, desejava não apenas isso, mas salvar a todos daquele tirano chamado Zarastu.

Tell mais uma vez mirou o horizonte. O sol lançava os seus últimos raios de luz nas areias do deserto. Por um momento o jovem viu o reflexo do avô nas nuvens. Fechou os olhos e sentiu um sentimento bom: era esperança.

***

A cada passo em direção ao quarto real, os guardas descruzavam as lanças afiadas. Ao diminuir a distância, seu coração pesava. Nunca havia sentido uma angústia tão grande. Tinha responsabilidades com sua pátria, mas uma ainda maior com a humanidade.

Ao abrir a porta, o quarto estava tomado de várias mulheres, dentre elas, suas três esposas, as dezenas de filhas que eram princesas e várias concubinas. Há um canto, o adail Amir. No leito, com olhos encovados e feição petrificada, o sultão Zared al Názir.

Quando estava nas muralhas de Oásis, temeu tanto pela vida do filho que entrou em choque. Desfaleceu e só acordou horas depois, emudecido. Mexia apenas os olhos. Não se sustentava sobre as pernas. De acordo o conjurador, entrara em catatonia. O príncipe sentou-se a beirada da cama, as mulheres choravam soluçantes.

— Por favor, minhas senhoras, deixem-me a sós com meu pai.

Todas saíram. Amir veio e lhe deu um tapinha no ombro. Parou e disse:

— Se você for, o estado de saúde dele pode se agravar...

— Como um conjurador de tamanha fé como a sua não pôde curá-lo?

— Sua moléstia não lhe aflige o corpo nem a mente, mas o seu espírito. Você mais que ninguém sabe o motivo de ele se encontrar assim. O sultão sempre soube que iria perdê-lo em algum momento para essa guerra. Quando ele teve certeza disso, não aguentou. Seu espírito sofre, príncipe Rachid. Vá, cumpra o seu papel, mas lembre-se, não morra ou a segurança do seu povo e a estabilidade política de Oásis estará em risco.

— Voltarei são e salvo, honrando meu ancestrais e facultando glória ao meu povo.

— Que Al Q’enba e sua glória permita, da sua boca aos ouvidos de nosso deus.

O velho saiu. O nobre se voltou para o seu pai. O homem tinha as feições tortas. A boca despejava um filete de baba. Os olhos vítreos, olhando para o nada. O príncipe pegou um lenço e limpou a boca do pai. O jovem oasiano conteve as lágrimas que rompiam pelos seus olhos. Sentia um misto de sentimentos que afligiam o seu coração.

Era a primeira vez que se afastava de Oásis sozinho e por conta própria. Todas as outras vezes, ou foi em campanhas militares, ou em viagens diplomáticas. Tomou a mão do velho monarca e disse com voz suave:

— Pai, eu sei que o senhor deseja que eu me torne um sultão respeitado. Um governante honrado que protege o seu povo. Sei também que sou sua última semente... mas, os tempos estão diferentes, meu pai. Vede, que nos importa ter uma nação para depois disso vê-la destruída pela Horda. Eu quero que a dignidade humana e a esperança sejam um bem de todos. Então, meu pai, se estiverdes ouvindo, concede-me tua benção, para quando eu irdes a essa guerra, estar protegido de todo o mal.

E segurando firme a mão do pai. Rachid esperou, mas os lábios não se mexiam. As mãos do príncipe tremeram e as lágrimas rolaram. Mas seu interlocutor não esboçou reação alguma. Não conteve mais o choro. Tremendo pelo soluço, o aristocrata se ergueu e caminhou até a porta. Quando girou a maçaneta, ouviu uma voz rouca e grave:

— Que os Deuses Virtuosos te abençoem, meu filho.

O jovem virou-se para o pai. O velho continuava em mesmo estado. Rachid saiu, chorava ainda, mas de alegria. Um milagre havia sido realizado ali.


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