Um Reino de Monstros Vol. 4 escrita por Caliel Alves
Entre o atacante e Zarastu, estava Sirius. O general atroz havia parado o estoque da rapieira do inimigo com a própria mão direita. A lâmina atravessou a sua palma e foi desviada há alguns centímetros da cabeça do mago.
O chefe da Horda respirou aliviado. Provavelmente, não teria conseguido se desviar de um ataque à queima-roupa como aquele. O assassino se utilizou da distração do monstro para se aproximar e esperou o momento certo para atacar.
Como conjurador, não foi possível notar a sua energia mágica. Maldito!
O espadachim retirou a lâmina candente e deu um saltou para trás. A lâmina perdeu o seu brilho abrasivo. Flamas roxas crepitavam dentro da cabeça do adversário.
O lobisomem continuou como escudo vivo na frente de Zarastu.
— General Sirius...
— Não se preocupe, Vossa Majestade, será muito fácil curar este ferimento.
O licantropo ergueu sua garra. O ferimento era um círculo avermelhado, como uma brasa alimentada pelo fogo. O anel rubro consumia a sua carne. Em volta da ferida, uma macha de necrose se estendia com o dobro do raio da ferida. O monstro conjurou a energia divina de Enug, mas ela não curou a ferida.
Ele tentou de novo, e de novo... foram várias as tentativas. Aos poucos, o ato foi ficando desesperador. Sirius sentia a monstruosidade escorrer até o seu braço, mas não conseguia adentrar a sua mão. Era a primeira vez que não conseguia usar a Cura Divina. Não admitia a hipótese da apostasia, não havia descrença em seu coração.
Tão pouco tinha medo do outro monstro, ou mesmo de morrer. Era um general atroz.
— NÃO! Eu não consigo curar essa maldita ferida...
— General atroz Sirius. Eu bem conheço o seu desprezo pelos outros batalhões da Horda e o ódio contra os demais generais atrozes, mas não reconhece o monstro a sua frente?
— Não, deve ser alguém que esqueci de matar?
O interlocutor sorriu. Era muita ira e orgulho constituindo um mesmo ser.
— Esse é O’lantern. Era capitão do Batalhão Espectral e servia ao general atroz Anhangá. Entretanto, se rebelou contra mim. Após uma frustrada tentativa de assassinato, se tornou um monstro renegado. Embora domine muito bem a monstruosidade, ele evita usar conjurações, pois não se considera digno de servir-se do poder de deus Enug. Por isso ele se serve da esgrima.
— O que vai acontecer com a minha mão?
— A ferida é incurável!
— O que? Como isso é possível?
— O golpe se utiliza de força e velocidades descomunais. É conhecido como a “Investida Indefensável”. Ele destrói as células e cauteriza os veios de fluxo mágico. Logo, é impossível até mesmo para a Cura Divina curar tal ferimento. Onde a energia não alcança, não pode promover um evento. Como a ferida não pode ser curada, ela continuará expandindo o seu diâmetro até consumir todo o corpo do alvo.
O lobisomem olhou mais uma vez para à sua mão em estado de putrefação. Zinsh, o sangue esguichou da ferida irrigando a areia. Com um golpe da sua mão esquerda, Sirius decepou a mão direita, na altura do meio do antebraço.
O ser lupino ficou de cabeça baixa por alguns segundos. Quando a ergueu, encarou O’lantern. O general atroz parecia uma besta selvagem, prestes avançar. O espadachim continuava a sua frente, com a postura elegante dos esgrimistas. Se não fosse pelo seu aspecto horripilante, poder-se-á dizer que ele estava sereno.
Ruoruoruo, eu deveria matá-lo agora. São inúteis assim que provocam cisões dentro dos exércitos.
— Eu vou matar você!
— General Sirius, pare!
O licantropo parou sua marcha. Virou-se para Sua Majestade. O mesmo concentrava a monstruosidade emanada pelo Colar de Enug. A energia divina do deus dos monstros tornava a atmosfera sufocante.
Perder uma peça de xadrez tão importante quanto você numa partida dessas seria um erro, meu caro Sirius. Nesse jogo, sacrificamos primeiro os peões, depois o cavalo...
— Não o trouxe aqui para morrer em batalha. Você é o general atroz do Batalhão Furioso, a tropa de elite da Horda, a Guarda Real do Castelo Gólgota. Temos um exército aqui. Vamos nos retirar e fazer com que esse herege prove do seu próprio veneno... eu convoco toda a Horda, destruam O’lantern e só avancem sobre Oásis quando esmagarmos esse cabeça de abóbora.
Todos os monstros enfileirados para a batalha deram um rugido de guerra uníssono. Tikbalangues, centauros, goblins e os demais avançaram sobre o monstro renegado.
Zarastu e Sirius se teleportaram para longe da batalha que se desenvolveria.
O’lantern brandiu a lâmina. Abriu a sua bocarra e a enfiou dentro, só a retirando de lá com as chamas roxas a arder o aço.
— Oh, senhor Enug, porque divide a tua glória com os irracionais e covardes? Conceda-me poder para aplicar a tua justiça. Fazei de mim receptáculo do teu poder. Que a chama de teu Espírito Santo consuma essas almas pecaminosas.
A sua frente, milhões de monstros trotavam em sua direção. Uma marcha de barbarismo, prontos a provocarem uma hecatombe. Ele fechou os olhos. Apurou os ouvidos, e em seu íntimo, continuou a orar.
Os monstros desciam as dunas. Os pés que marcavam o ritmo da violência. Os predadores que haviam a pouco abandonado a racionalidade. Moviam-se pelo instinto.
Quando O’lantern abriu os olhos, o tikbalang teve a rapieira trespassada em sua testa. O monstro caiu morto no solo. Outro tentou atacá-lo, mas ele se esquivou, fazendo com que o outro se se chocasse com as dunas.
— A vergonha de estar entre vocês me consome os ossos. Seres boçais...
Um centauro tentou escoiceá-lo, mas o monstro se desviou, e com um corte vertical, dividiu o ser híbrido no meio. As chamas consumiram o monstro, que teve o seu corpo equino dividido em dois.
Nesse momento, para sua surpresa, algo agarrou sua perna. Ele chutou a criatura verde-musgo, mas outras surgiram a sua volta. E como todas saltaram sobre ele ao mesmo tempo, o lançaram ao chão. Mais e mais goblins saltaram sobre ele. Todos munidos de punhais. O golpearam com força. Era uma montanha de seres esverdeados cobrindo o monstro adversário.
Mas com um único movimento, O’lantern incinerou todos eles de modo instantâneo. Enquanto chovia as cinzas de goblins, ele ergueu-se limpando a lapela de sua casaca com as mãozorras.
— Oh, ignoras! Vos que temeis a um e só verdadeiro deus, renega ao falso ídolo que chama de rei dos monstros. Oh, reis de Lashra, povos da terra, reconhecem a beleza da natureza e não quem a pode destruir com um sopro? Voltem-se para Enug!
Os monstros continuavam a avançar no ataque. O’lantern meneou a cabeça. Para ele, a ignorância do espírito só era vencida com o suplício do corpo. Brandiu a espada, zash!
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