Um Reino de Monstros Vol. 4 escrita por Caliel Alves
O garoto abriu os olhos. Uma brisa fresca entrou pela janela, balançando as cortinas brancas. Ele se ergueu da cama, sentou-se recostado a cabeceira.
― Ah! A bela adormecida acordou.
― Argh!
Os olhos de Tell se esbugalharam. O servo de Nalab estava sentado ao lado dele. Bebericava uma xícara de café com as pernas cruzadas.
― Saragat!
― Sim, fiquei um dia e uma noite te vigiando. Seu quadro só se estabilizou no entardecer. Todos nós ficamos preocupados. A Letícia chorou muito. E a bola de carne maldita ficou aqui esse tempo todo.
O filho de Taran olhou para os seus pés. O Guardião do Monstronomicom roncava deitado na beirada da cama. O livro estava num criado-mudo ao lado da cama.
― Eu dormi por um dia inteiro?
― Você apagou depois da luta.
O mago-espadachim abaixou a cabeça e apertou as cobertas com firmeza.
― Eu perdi novamente, eu perdi pra ele de novo, Saragat, arg.
― É verdade, mas não se culpe. Metade da derrota veio da sua imprudência. A outra veio de um grave fenômeno que se passa com você.
― Um fenômeno que se passa comigo?
Disse o rapaz apontando para ele mesmo. O interlocutor confirmou com a cabeça. Tell sentia um frescor no corpo e um cheiro de ervas. Havia diversas bandagens em seus braços, pernas e abdômen, elas restabeleciam o seu físico.
― Eu não me lembro do que aconteceu.
Saragat saltou da sua cadeira e jogou a xícara na parede. Parecia furioso.
― Eu lembro, seu moleque idiota. Você quase chegou a um esgotamento de energia mágica, isso mata, sabia?
― Eu sinto muito...
― Sente muito? “Sinto muito”, ele disse! Porque não usou as transmutações, tapado? Assim iria poupar energia para lutar contra Rachid. Gastou 50% de energia mágica num ataque e 50% no outro. Eu achei que com a alquimia você iria aprender a controlar melhor a emissão. Mas foi inteligente ter fingido quebrar o braço na luta. Foi uma finta que ele não esperava.
― Eu peço desculpas, eu não percebi nada disso. Isso significa que eu preciso treinar mais.
O mascarado fez que sim com a cabeça.
― Vamos, levante-se e pegue essa coisa deitada aí. O príncipe nos convidou para um jantar.
― Onde está a Rosicler e a senhorita Letícia?
― Rosicler sumiu depois que você desmaiou. Letícia anda pra cima e pra baixo com o seu mais novo amiguinho.
― Saragat, você não quer dizer...
― Eu não disse nada, vem logo, lesado.
***
Arf-burf, esse som cortava o ambiente. A garota recostou-se à parede. Quando ela pediu a Rachid um lugar para treinar, lhe foi cedido o campo de treinamento de alfarazes. Num boneco feito de palha, com alvo desenhado em papel arroz na altura do peito, havia dezenas de lâminas cravadas. Apenas duas não acertaram o alvo, dentre as cem facas arremessadas.
Seu punhal continuava na cintura. Jurou que com aquela arma ela mataria Anhangá, o general atroz que ficava na Fortaleza do Crepúsculo. Lugar onde dia e noite torturava as pessoas capturadas pela Horda. Assim, quebrava o espírito humano, depois das sessões de tortura, enviava os humanos a Zarastu, onde ele os transformavam em monstros.
Seu irmão estava lá, naquelas celas fétidas. Ela precisava se fortalecer. Os braços doíam. Estava cansada.
Dois erros em cem lançamentos não é algo ruim, Reinaldo.
A ladina lembrou-se do pai e do irmão. Como eles eram parecidos. Rosicler puxou a mãe. Uma mulher de pele negra, de cabelos longos e encaracolados. Usava bandana e jogava cartas em Porto Seguro. Era uma mulher bela e forte, todos a respeitavam.
Mas “O Lobo do Mar” Bartolomeu Cochrane tinha a ousadia suficiente para seduzir aquela mulher. Ele prometera, um dia, levar os seus filhos pelo mar. Fazê-los capitão de seu navio. Mas tudo ficou na promessa. Morrera numa luta contra a Marinha de Guerra da Horda. A mãe morreu logo depois de alguns anos de melancolia.
Não restou muito para os órfãos do que se inserir no mundo do crime. Começaram roubando pão e maçãs. Depois saquearam túmulos, bancos e até mesmo casas de nobres. Para no fim de tudo serem capturados pelos monstros.
― Ah, pai, um dia vou cumprir a nossa promessa. Serei a pirata mais famosa da história de Lashra.
Rosicler já estava se sentindo incomodada com aquela vigília sobre ela. Ela ergueu-se e apontou o dedão em direção aos ocultos assassinos.
― Vão se ferrar, bando de otários, eu vejo vocês.
Não tendo mais como se esconder, a dupla apareceu e saltou para junto dela. A gatuna se armou com o seu punhal. Ela já esperava ser atacada.
― Caí dentro, dessa vez eu estou preparada.
― Não viemos matá-la, se é o que pensa.
― Nosso Qayid Eazim ficou curioso para ver o seu treinamento. Não é comum que uma reles ladra como você possa ter dado conta de dois dos nossos melhores agentes.
― Desculpe te decepcionar “o rei da cocada preta”, mas eu não ia perder pra vocês nunca. Eu tenho um objetivo.
Rosicler deu as costas. Os dois membros dos assassinos continuaram a observá-la.
― Esse objetivo deve ser muito importante para que você tenha arriscado sua própria vida.
― É, digamos que sim. Eu só vou morrer quando eu matar um certo alguém.
― Matar, entendemos bastante disso. Esse é o nosso ofício.
― Não estou falando nesses termos...
― Então se trata de uma vingança?
― Não é da tua conta.
A garota saiu da presença dos homens e caminhou em direção ao castelo do sultão. A liderança dos assassinos foi até o alvo cravejado com as lâminas e observou a alta taxa de acerto.
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