Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 40
Capítulo XL




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12 de junho de 1720

Minha querida irmã, 

Alegro-me em mandar-lhe esta carta de Tantris, não mais da Nova Inglaterra. Retornei há algumas semanas e tranquilizo-a de que todos estão bem. Matilda começa a se recuperar do baque e volta a ser a menina que conhecíamos; Meredith... Bem, Meredith é um pouco mais complicada, como você bem conhece, mas tento ajudá-la como posso. Acredito que você seria melhor nisso do que eu. 

E você e sua família, como estão? E nosso avô? Adapta-se bem à fazenda?

Saul mandou uma carta ao nosso pai, relatando o acontecido com Ana e suas preocupações, e essa é a principal razão para que eu escrevesse esta carta. Sinto muito em ter sido relapso na nossa comunicação, mas há tantas situações que demandam minha atenção desde meu retorno que quase não tenho tempo para sentar e redigir uma carta como gostaria. Os aluguéis atrasados precisam ser cobrados, as brigas de nossas irmãs estão piores do que antes e nosso pai está ocupado demais com os próprios afazeres. Mas não se preocupe, aos poucos tudo voltará ao seu devido lugar.

Apesar da distância que nos separa, mesmo que milhares de vezes menores do que antes, não posso oferecer minha ajuda com a rapidez que gostaria ou estar próximo de você depois de tudo o que aconteceu, mas, lembre-se, sempre terá em mim alguém para conversar sobre o que desejar.

 

Com amor, Matias

 

Betina baixou a carta do irmão da linha de visão e olhou para a escuridão à sua frente. O vento chegava a ser cruel de tão cortante, porém não era nada incomum para aquela época do ano em Mempolis. Nem sua anágua de lã ou o xale faziam seu trabalho devidamente, no entanto, o que esperava ela ao estar exposta na varanda tão tarde da noite?

Vira Saul sair mais cedo e disso tinha certeza. Sua outra certeza é que alguém passara a cavalo um pouco depois, supunha ser Leonardo. Desde então, somente o vento de inverno e escuridão. 

Temia dar um passo em qualquer direção para tentar descobrir o que se passava na fazenda, não conseguindo se esquecer da ameaça do marido. O avô não poderia ir embora dali. 

Para onde ele iria? Sozinho em uma casa qualquer, conseguida às pressas sabe-se lá onde? Não podia deixar aquilo acontecer. E também precisava admitir que não sabia como seria ficar longe dele. 

Por mais que estivesse fugindo de sua presença em momentos onde não houvessem outras companhias junto deles, tê-lo por perto trazia novos ares à fazenda. E era seu único elo com a antiga vida em Tantris. Evitava-o, mas não podia simplesmente deixá-lo partir de uma vez. 

― Tina? ― Ouviu a voz do avô chamá-la ao longe. Enfiou a carta no bolso do vestido e virou a cabeça ao redor, tentando procurá-lo. A porta de vidro que separava a sala da varanda foi aberta, deixando-o passar. ― O que deu em você para estar aqui fora tão tarde? Irá adoecer desse jeito.

― Estou sem sono. ― Afastou-se da amurada, envolvendo o xale ao redor de si. ― Não sinto tanto frio, estou um pouco acostumada. 

Mais uma mentirinha, pois estava quase tremendo de tanto frio. Perdida entre tantos pensamentos, o corpo sequer era uma preocupação. 

― Acostumada a adoecer? Sei como sua saúde funciona e pegar essa friagem é pedir para acordar de cama na manhã seguinte. 

― Eu não irei adoecer ― soltou incomodada, a voz tornando-se levemente mais aguda. Tibério estreitou os olhos na direção dela. ― Preocupo-me é com o senhor aqui fora, ainda não está acostumado com o inverno de Mempolis. É melhor entrarmos. 

A Sra. Tremonti abriu novamente a porta de vidro que separava os ambientes. 

― Não acha que já está da hora de parar de fugir de mim, minha querida? ― O Sr. Salazarte sequer se mexeu, ainda parado no meio da varanda. Na penumbra, Betina mal podia enxergar seus olhos graves, mas podia muito bem senti-los. ― Evita-me para falar sobre seu marido, evita-me para falar sobre sua doença e evita até mesmo estar sozinha comigo... O que anda acontecendo com você?

― Eu não estou doente! ― Ela se descontrolou, quase gritando no meio da noite. 

Aquilo seria uma surpresa para qualquer um de Tantris que a conhecesse, Tibério, porém, somente caminhou em sua direção. Mal processando as próprias reações, Betina avançou um passo para dentro da sala. O avô ainda a alcançou e colocou uma mão quente sobre seu ombro. Para quem planejava não deixá-la escapar, seu toque era afetuoso e gentil demais. 

― Não está? Como eu posso ter certeza disso se não consigo conversar sozinho com você por meia hora que seja para saber, hm? ― Ele sorriu, a luz prateada da lua iluminando suas costas. No rosto, o sorriso ainda era visível entre as sombras da casa. ― Venha, irei preparar um chá para nós dois. Fará bem para esquentá-la. ― Tocou uma mão em sua bochecha antes de se afastar. ― Você está gelada. 

Betina continuou parada no mesmo lugar. Podia inventar uma desculpa qualquer e subir para o quarto, adiando aquela conversa em mais um dia. 

Há quanto tempo estava adicionando mais um dia a uma conversa que precisava acontecer? Algumas semanas. Perdera completamente a conta, mas que diferença fazia, se estava há muito perdida no tempo?

Um dia a mais, um dia a menos, aquele dia iria chegar. 

— Eu posso trazer uma xícara para você quando o chá ficar pronto, se não quiser me acompanhar — o avô disse para ela, quase saindo do cômodo. 

Obrigou os próprios pés a darem os passos que precisava e seguiu-o pelo corredor em direção à cozinha. 

— Fui até meu quarto para pegar o que restava de camomila em minhas coisas e acabei me esquecendo de levar a vela que deixei na cozinha — Tibério riu enquanto caminhavam no escuro. — São coisas pequenas, mas parece que a idade finalmente está começando a afetar minha memória.

— É perigoso que o senhor saia andando pelo escuro, pode cair e se machucar — ela opinou e chegaram ao cômodo que possuía uma porta que dava em direção ao pátio. 

A cozinha era um ambiente que parecia feito de madeira. Os balcões eram marrons, a prateleira sobre eles era marrom e os potes e panelas acobreados; a mesa no centro do ambiente era mogno, o fogão ao lado da entrada era o marrom mais escuro de todos e ainda havia a lenha em um canto.

― Poderia tirar a água do fogo para mim? Acho que passou do ponto ― o Sr. Salazarte pediu e entregou a camomila para ela, saindo por um instante.

Betina guardou suas perguntas sobre como o avô conseguira acender o fogo, afinal, sabia que nem sempre ele tivera alguém para fazer aquela tarefa. Pelo visto, aquilo era uma das coisas que sua memória conseguia recordar.

Colocou a camomila na xícara sobre a mesa e saiu em busca de uma outra para si mesma. Ao conseguir achar, Tibério havia retornado em posse de duas cadeiras, que colocou ao redor da mesa.

― Eu e sua avó costumávamos fazer isso muitas vezes, quando éramos mais novos ― ele relembrou, pegando o bule de uma das bocas do fogão. Não comentou sobre seu pedido não ter sido cumprido e somente despejou a água nas xícaras. Betina acabara de colocar a nova ao lado da outra. ― Infelizmente o tempo acaba matando alguns hábitos.

O senhor deixou o bule fumegante sobre a mesa e abandonou o fogo queimando, pois o calor tornava o ambiente agradável. Cada um se sentou em uma cadeira e Betina deixou o xale sobre o colo.

― Já que você parece que quer que eu conduza essa conversa, minha querida, e não quer falar, que façamos assim. ― Ele passou um lábio sobre o outro, encarando a neta por entre a fumaça que as duas xícaras lançavam para o ar. ― Vamos começar por seu marido. Eu te disse que não deixaria a história da família Tremonti descansar e você sabe como eu sempre cumpro o que digo.

― São boatos ― Betina rebateu de imediato. Estavam em terreno perigoso e, para seu pavor, não tinha nada que pudesse fazer para impedir o avô de procurar pelo que quisesse. O único que poderia fazer aquilo era Saul, e se ele descobrisse... ― Os bruxos de Mempolis são piores do que os de Tantris para criarem fofocas.

― Algumas fofocas nascem de fatos, que são distorcidos conforme passam por várias bocas, mas parece que há uma linha tênue entre os fatos e boatos nessa história, Tina. ― Ela baixou o rosto e tomou a xícara quente nas mãos. O vapor subiu e tomou um gole, que desceu queimando tudo. ― Os Tremonti eram pessoas terríveis...

― Eles não mataram a irmã! ― a Sra. Tremonti o interrompeu mal pensando no que falava. Sem querer, e sentindo o calor começar a queimar suas palmas, acabou derramando metade do chá sobre a mesa e sobre os dedos. Sua pele quase se queimou. ― São boatos, apenas isso. 

Tibério soltou um “hum” para si mesmo e ela se levantou, tentando procurar um pano qualquer para secar as mãos e a mesa. 

― Você me disse não saber nada sobre os Tremonti...

― Margarida me contou recentemente. ― Betina pegou um pano velho abandonado na prateleira e, após secar a mão, voltou para seu lugar. ― Ela tem influência e esperteza para criar e espalhar uma fofoca. 

― Fofocas foram o que mais ouvi nessas últimas semanas, Tina. Ou acha que eu traria até você a possibilidade de seu marido esconder um tesouro em suas terras para algo que não fosse rir? ― ele devolveu ríspido e a dona da casa passou o pano sobre a madeira de qualquer jeito, somente para secar o líquido. Mesmo sem querer, deixou-o de lado e voltou a se sentar. ― Essa informação que transmito a você foi passada pela Sra. Flores. Com tanto custo para sair que põe-me em dúvida se ela estaria tentando me enganar com mentiras ou não. 

Helen? Helen Flores? A mesma Helen que tentara por anos se aproximar dela? E que ainda tentava, se bem se recordava da ocasião na casa dos Gusmão. 

― Helen é uma jovem ingênua. Ela pode não ser alguém que aprecie participar de rodas de fofocas, mas é inocente o suficiente para acreditar em uma — Betina rebateu, contendo a vontade de tomar outro gole de chá fumegante. 

― Você sabia que a Sra. Flores e a irmã de Saul foram melhores amigas? ― Tibério soltou a informação, claramente querendo usá-la como cartada para dar crédito ao argumento. Betina não disse uma única palavra. Não fazia a mínima ideia daquilo. ― Fico tentado a acreditar que a Srta. Tremonti era uma das criaturas mais agradáveis a pisar na face da terra, pelas palavras dela. Talvez a bondade tenha sido reservada toda para ela na família e ficado em falta para os irmãos. ― Quando a frase terminou, ouvia-se somente o estalar do fogo na cozinha. ― Suponho que Saul nunca tenha te contado sobre ela, ou sobre as fadas que viviam na fazenda.

― Não há fadas na fazenda. 

― Você está certa, não há fadas na fazenda. Não há porque os irmãos de Saul mataram ou tentaram matar todas que viviam aqui. ― O fogo continuava a estalar e Betina não conseguia ter outra reação que não fosse piscar enquanto ouvia o relato do avô. Não, Saul nunca teria feito parte daquilo. ― A Srta. Tremonti talvez fosse não somente a única a ter alguma bondade na família, mas o mínimo de inteligência também. Enquanto os irmãos disputavam território com as fadas, ela fazia amizade com elas. 

― Isso... ― ela gaguejou, tentando pôr os pensamentos para fora em palavras. ― Saul não odeia fadas, ele...

― Que o seu marido não odeia fadas eu tenho certeza, ou não teria feito um acordo com elas. ― Ele riu e, com a confusão estampada na face da neta, esclareceu em seguida. ― Ora, Tina, você não sentiu o cheiro de açúcar queimado no preparado que os trabalhadores aplicaram nas vinhas antes do inverno começar? Meu nariz reconhece obra de fadas!

Realmente sentira, porém simplesmente ignorara o pensamento. E Tibério parecia ter traçado um esquema completo do passado de seu próprio marido, enquanto ela perdera todas as oportunidades por preferir ignorar. 

― Ele não tem culpa pelo que os irmãos fizeram! Eles odiavam fadas, não ele! — Ela usou como saída, sem argumento nenhum para defendê-lo. O medo pela ameaça de Saul estava mais fresco ainda na memória. 

Tibério tomou para si alguns segundos de análise da neta. Uma lasca de lenha pipocou na lareira e Betina quase se sobressaltou na cadeira.

― Pergunto-me como você poderia amar um homem que te faz tão mal, Tina, mas creio que sentimentos nem sempre são algo que se pode explicar. ― O Sr. Salazarte finalmente bebeu um gole de seu chá, a bebida tendo esfriado àquela altura, sequer soltava vapor. ― Saul pode não ter se juntado aos irmãos no ataque às fadas da fazenda, mas, se ele esteve presente e se recusou a interferir, convenhamos que seria culpado igualmente, não acha? ― ele continuou após engolir. ― E não tente dar desculpas de que não temos como saber se ele estava presente no momento ou não. Essa é a ocasião da morte da Srta. Tremonti e Saul esteve presente no funeral, dois dias depois, viajando ele não estava. Se estivesse na cidade, saberia muito bem da intenção dos irmãos. 

― A morte de Isabella foi um acidente ― Betina argumentou em uma voz fraca e sem coragem. Era o único argumento que tinha e sequer sabia se era verdade ou não. 

― Bem, quanto a isso, a única pessoa que poderá contar a história verdadeira é seu marido. Tudo o que temos por enquanto são as suposições da Sra. Flores de que a Srta. Tremonti poderia ter se ferido tentando impedir o ataque às fadas. Uma teoria bastante provável, eu diria. ― Ele bebeu mais um longo gole do chá. ― Você pode acreditar que a Sra. Flores é ingênua, minha querida, mas um fato é que essa jovem tem uma mente um tanto perspicaz. 

― Não... ― Betina amassou o xale que estava em seu colo, as mãos trêmulas. ― Como eles poderiam saber sobre esse ataque?

― Ora, minha querida, o que os empregados iriam pensar dos patrões saindo por aí em posse de fogo e machados? Mundanos têm suas limitações, mas não são burros! ― ele rebateu um tanto ríspido, sem nem pensar duas vezes, no entanto, parou. Pôs-se de pé e atravessou até o outro lado da mesa, tocando as mãos da neta entre as suas. ― Mãe poderosa... Eu preocupado com sua palidez e você ainda está gelada! ― Betina encenou fazer um movimento para se levantar, contudo, Tibério continuou segurando suas mãos, impedindo-a de se mexer. ― O que esse homem está fazendo com você, Tina, hm? Eu sei que você não costuma dar sua opinião, mas você está apavorada! Percebi que estava tremendo. 

― Isso não pode ser verdade! O que fariam com Saul se fosse verdade? ― Ela quase chorou, sentindo a respiração se tornar mais curta.

Se suspeitavam aquilo por tanto tempo e nunca fizeram nada contra os Tremonti, o que mudaria? Nada. Seu pavor era seu marido e sua ameaça explícita. O perigo real era o que poderia acontecer a seu avô e a todos eles naquela fazenda, com Saul envolvendo-se em magia sombria.

Um perigo que ela, como senhora daquela casa, deveria tentar parar, no entanto, encontrava-se paralisada. O medo parecia se tornar maior do que deveria ser. 

O que era se impor?

― Tina, se acalme ― Tibério levou uma mão até as costas dela, fazendo carinhos circulares ―, nós não estamos em Tantris. Não há outros clãs para cobrar por justiça e não há nada que eles possam fazer contra nós. Eu estou apenas tentando ajudá-la. Você precisa interagir com os nossos e eles se recusam a aceitá-la, por quê?

― Isso não importa...

― Importa quando isso está te deixando doente ― ele a interrompeu. ― Você precisa de pessoas, Tina! Você precisa de amigos ao seu redor! Precisa da sua família.

Um rangido agudo misturou-se com outro pipocar na lenha do fogão e a porta da cozinha foi aberta, revelando a figura do dono da fazenda. Saul Tremonti parou com metade do corpo para dentro, a face de alguém pego no flagra.

― Não conseguiram dormir? ― ele questionou, retomando os movimentos e mantendo a voz em um tom habitual. Entrou, fechou a porta atrás de si e virou-se para passar os trincos.

Betina apertou a mão do avô que estava entre as suas.

― Estava comentando com Tina que estávamos revivendo um hábito que eu costumava ter com a avó dela. ― O Sr. Salazarte riu, o rosto o total oposto de uma conversa casual, os olhos azuis faiscando uma fúria contida na direção do marido da neta. ― Boa noite, Saul.

Tremonti olhou para a cena disposta à sua frente e somente assentiu, retirando-se com outro “boa noite”. Os dois assistiram-no sumir para o coração da casa.

― Esta será a última vez que irei deixar isso passar, porque sei que há algo de muito errado acontecendo aqui. ― Tibério começou, pegando uma das xícaras de chá e entregando-a para a neta. ― Beba um pouco para conseguir dormir essa noite, porque amanhã precisamos conversar.

Vendo a xícara quase dançar em suas mãos, Betina forçou-se a terminar o chá de camomila. 


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