Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 28
Capítulo XXVIII




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Passava das onze da noite e Betina ia para frente e para trás na cadeira de balanço do berçário. A babá à sua frente remendava uma meia à luz da vela, recusando-se a dormir e oferecendo a cada cinco minutos para pegar Anastácia para que a patroa pudesse se retirar. 

A Sra. Tremonti precisava dizer que sentia que quem estava prestes a fechar os olhos e cair para a terra dos sonhos era ela própria, enquanto a filha brincava com o coelhinho de pano como se tivesse guardado toda sua energia para a noite.

Betina estava aos poucos se retirando do próprio quarto, desta vez cuidando da filha no berçário e passando a maior parte do dia em companhia dela e da babá. 

Anastácia fora um brilho de alegria na sua vida, ela diria para qualquer um que lhe perguntasse. Quando olhava para a filha, enxergava alguém que precisava dela e por quem faria questão de enfrentar seus piores dias. Mesmo que nem sempre conseguisse sair vencedora, lutaria contra o próprio corpo se fosse preciso. 

― A senhora não quer que eu tente fazê-la dormir? ― a babá ofereceu outra vez, rompendo a linha após terminar o conserto da meia. ― Quem sabe...

― Não acho que eu vá conseguir enquanto ela não dormir, Maria ― a Sra. Tremonti retrucou e se pôs de pé, começando a dar pequenos passos curtos pelo quarto. ― Eu viria aqui a cada dez minutos para ver se Ana adormeceu.

A empregada riu, guardando meia e objetos de costura em um pequeno gaveteiro ao lado de sua cama, onde ela estava sentada. Betina caminhou até perto da janela, vendo a noite estrelada, o firmamento pintado de negro pela pouca luz da lua nova. 

Junto de um rangido, a porta do berçário foi aberta lentamente, como se para certificar-se de que poderia entrar. A cabeça de uma das empregadas da cozinha apareceu pela greta.

― Débora, a mulher do Leonardo dos estábulos, está lá embaixo e quer falar com a senhora. Diz que é urgente.

Apesar do tom da informação, a mulher se preocupou mais em olhar para dentro do quarto e passar o recado como se dissesse que precisavam comprar mais farinha. Betina suspirou e viu-se obrigada a ceder aos pedidos da babá e entregou a filha, conseguindo ver os olhos escuros da criança reluzindo feito a lua nova após depositar um beijo suave nos cabelos dela.

― Ela não disse o que precisa? ― a Sra. Tremonti questionou para a empregada da cozinha após sair do berçário e encostar a porta com delicadeza. 

― Disse que só diria para a senhora e mais ninguém. Falamos pra ela que a essa hora a senhora devia estar dormindo, mas ela disse que não sabia se conseguiria esperar até amanhã.

A vela que a mulher segurava iluminava os degraus para que as duas descessem, a casa já totalmente silenciosa e adormecida. 

― Céus... ― a senhora da casa murmurou, apertando contra si as pontas de seu xale. 

Fizeram o caminho oposto da sala de estar, onde as enormes portas de vidro iluminavam o cômodo inteiro e o brasão de armas com a face do javali assistia o vazio silenciosamente, e seguiram guiando-se com a luz da vela pela cozinha. Lá, Débora andava de um lado para o outro, uma mão nas costas indicando o incômodo na coluna, e mechas de cabelo preto e cacheado escapando do coque firme. Ela virou o rosto instantaneamente ao ver as duas mulheres chegarem.

A outra empregada estendeu o braço com a vela, iluminando os olhos tomados por pavor da esposa de Leonardo. 

― Poderia nos deixar a sós, por favor? ― Betina pediu para a funcionária da cozinha e, após deixar a vela, partiu junto de uma mesura. ― O que aconteceu com você, querida? ― questionou, se aproximando da outra e tocando-lhe o ombro com a mão livre. 

― É meu marido, Sra. Tremonti ― Débora anunciou e, após morder o lábio, parecendo incerta, e de Betina perceber como a mulher estava trêmula, continuou. ― Meu marido está morrendo e eu preciso da sua ajuda.

A bruxa arregalou os olhos, a mão parando os carinhos circulares que fazia nas costas da outra no mesmo instante.

― Nós precisamos chamar um médico agora mesmo. ― Apenas com a mera menção do que iriam fazer, Débora segurou-lhe a manga do vestido. 

― Médicos mundanos não poderão fazer nada pelo meu marido, Sra. Tremonti, por favor... ― ela sussurrou com as palavras atrapalhadas, agarrando-se ainda mais à patroa. ― Eu preciso que a senhora vá até lá. Por todos os deuses ou o que vocês considerem sagrados, Sra. Tremonti.

Betina aproximou a vela do rosto da outra, tendo certeza que ia empalidecendo feito uma lua cheia. Abriu e fechou a boca, quase rasgando o casaco de Débora pela força com que o segurou. Vendo o desespero nos olhos dela, engoliu os próprios medos e perguntas.

― Espere enquanto pego algumas coisas, vamos partir juntas.

 

 

As duas partiram a pé no meio da noite, na intenção de evitar chamar atenção pegando um carro de boi ou o que fosse para irem mais rápido. Tiveram que se contentar com a demora de vinte minutos para chegarem até o casebre do casal Alves, tendo que parar vez ou outra para Débora recuperar o fôlego. Em uma dessas vezes, Betina sentiu que precisava tirar a dúvida que a corroía por dentro. A mulher estava desesperada, mas também não podia se enfiar numa jornada quase de madrugada para cuidar de sabe-se lá o que.

― Meu marido se machucou, eu não sei como ― a empregada explicou, retomando a caminhada junto da bruxa. ― Eu sei que Leo às vezes sai no meio da madrugada.

― Você já chegou a perguntar por quê? ― Betina inquiriu, a mão estendida com o lampião para iluminar o caminho.

― Uma vez... Ele diz que é uma tarefa para o Sr. Tremonti, mas insiste em não dizer o que é. Eu... ― Ela soltou o ar pela boca, não apenas para tomar mais fôlego. ― Leo e eu sempre fomos tão abertos um com o outro que... ― Balançou a cabeça. ― Eu não sei por que ele está escondendo isso de mim.

A Sra. Tremonti guardou para si as próprias considerações e continuou a guiar o caminho. Saul sempre fora rodeado de segredos que, diferente de Débora, ela nunca tentou de fato descobrir. 

O relacionamento entre os dois sempre foi raso, não por falta de tentativa dela, pois, no começo do casamento, tentara de todas as formas agradar o marido, como a mãe lhe ensinara. No entanto, ao ver como Saul parecia fechado demais em si mesmo, percebeu que seria tempo perdido.

Mas manter empregados membros do Submundo era algo que ela ao menos esperava saber.

― Bruxos ou lobisomens? ― Betina questionou de repente, fazendo a outra virar o rosto em sua direção.

A próxima linha de casebres tornava-se visível e mais um pouco e estariam lá, tendo o cuidado de evitar algumas pedras da trilha descendente, pois a garoa recente a deixara escorregadia.

― Você e seu marido, são bruxos ou lobisomens? ― Viu a mulher soltar um “ah” e continuou. ― Lobisomens, certo? Suponho que em algum momento eu teria sentido uma energia mágica vinda de você, mesmo que tentasse escondê-la.

― Oh não, eu não sou uma de vocês. Leo é um lobisomem, eu sou uma mundana, como vocês chamam.

Betina guardou seu "ah" de entendimento para si, finalmente alcançando a segunda casa da fila de casebres. Débora empurrou a porta e deixou que a bruxa entrasse na frente. 

Ainda tinha muitas perguntas pairando ao redor daquela mulher, contudo, deixou-as cair assim que viu o cômodo iluminado por uma única vela sobre a mesa onde ela e Débora beberam chá algumas semanas antes. Na cama do casal, encostada contra a parede ao lado da porta, o corpo do tratador dos cavalos estava abandonado sobre o colchão. Ao se aproximar junto da luz alaranjada do lampião, teve a breve impressão de que ele poderia estar morto, contudo, parou sua observação ao perceber que ainda tinha uma respiração curta.

Débora puxou uma das cadeiras para o lado da cama e a bruxa se sentou, deixando o lampião no chão e analisando o braço que estava caído para fora do colchão. Tinha uma ferida escura, que nem era tão grande assim, no entanto, a pele ao redor começava a escurecer feito cinzas, como se o membro estivesse morrendo. A esposa se aproximou e colocou um pano úmido sobre a testa do marido. Ao considerar o tanto de suor e a temperatura ao tocar a pele, percebeu que ele estava ardendo em febre.

― Como ele conseguiu isso? ― a Sra. Tremonti murmurou a pergunta, tirando a bolsa de pano do ombro e colocando-a no chão.

― Leo disse que foi mordido por um animal, mas... Que tipo de animal faria isso?! ― a empregada elevou a voz e levou as palmas das mãos para cobrir as laterais do rosto, o desespero despontando ainda mais. ― Ele apareceu com essa ferida na madrugada de sexta e na manhã seguinte o Sr. Tremonti veio para cuidar dela, mas além das recomendações para usar aquele preparado, poção ou o que seja ― Apontou para um frasco que estava sobre a mesa, junto da vela ―, ele não disse mais nada. Voltou no domingo e repetiu o que tinha dito, mas Leo só piorou desde então e hoje quando fui atrás de seu marido, ele tinha sumido!

― Saul precisou viajar de última hora ― Betina informou, pegando um pote com ervas amassadas de dentro da bolsa. A viagem pegou até mesmo ela de surpresa, que soubera sobre a partida do marido porque ouvira a informação dos empregados. ― Pegue um outro recipiente com água, por favor.

Débora quase correu para cumprir o pedido e a bruxa pegou novamente o braço do lobisomem, aproximando o lampião da beira da cama. Ao analisar melhor, percebeu que a ferida não era funda, apesar de ter tirado um pedaço da pele, excluindo alguns animais da lista de suspeitos. O que intrigava, porém, eram as enormes manchas pretas que iam tomando conta da pele marrom. Aquilo definitivamente não fora mordida nenhuma, pois bicho algum faria aquele estrago em questão de poucos dias. 

Tinha certeza de apenas uma única coisa: aquilo envolvia magia sombria. A grande questão era como? Como Leonardo se ferira?

― Aqui.

A dona do casebre entregou-lhe um potinho com água, onde Betina atirou as ervas de pontas estreladas do saquinho que acabara de abrir. Ergueu-o para o alto, dizendo em voz alta as palavras que aprendera com seu pai.

Oh, Terra Mater! Benedic manus meas et dirige me in sapientia tua.

Débora, que se aproximou da bruxa, afastou-se ao ver as íris dos olhos dela brilharem e optou por assisti-la aplicar a água no braço de seu marido em silêncio.

― Tentarei ao menos impedir que o que quer que seja isso se alastre mais ― Betina informou, terminando seu trabalho e colocando o potinho no chão. ― Você precisará banhar a ferida de hora em hora, pois a magia da Terra estará em conflito com a magia sombria, que quer tomar conta do corpo do seu marido. O que quer que o tenha ferido, envolve magia sombria.

Débora assentiu, parecendo temerosa, e a Sra. Tremonti olhou mais uma vez para o homem imóvel sobre a cama. 

― E isso não é magia de vocês?

Betina pensou por um instante.

Em hipótese alguma ela deveria compartilhar aquele tipo de informação com alguém de outro clã e principalmente com alguém de fora do Submundo, não apenas por mais uma de tantas leis, mas pela própria segurança de quem estaria envolvido.

No entanto, considerando a situação, não tinha outra escolha. Era algo que as leis mais básicas não poderiam prever.  

― A magia sombria... ― Betina começou, porém mudou de ideia no meio da explicação, optando por outro caminho. A parte mística talvez fosse de mais fácil compreensão do que a lógica por trás. ― A magia que envolve a nós, bruxos, e fadas, é uma dádiva da mãe Terra para nós, seus filhos. A Mãe Terra, segundo nossas lendas, possuía três irmãs: Noite, Sombra e Luz. 

Débora assentiu lentamente, mesmo que estivesse com a atenção fixa no marido. Agora que tinha começado, Betina resolveu continuar. 

— Com exceção da Luz, a irmã mais velha e mais sábia, Sombra e Noite invejaram as criações da Mãe Terra. Enquanto a Noite criou seus próprios filhos, Sombra escolheu seduzir alguns dos filhos da Terra para longe dos limites permitidos pela Mãe. Essa é a magia sombria. 

Débora se aproximou e sentou-se aos pés da cama, oferecendo um pano para que a Sra. Tremonti limpasse as mãos. 

— Ela não vem naturalmente através de nossos dons dados pela Terra e somente pode ser acessada através de um contato, ou normalmente uma barganha, com a Sombra — Betina continuou, enquanto passava o pano para tirar as ervas de entre os dedos. — E todos nós sabemos que a magia sempre cobrará um preço. No caso de uma magia obtida com a Sombra, nunca sairá barato, pois seu ódio pelos filhos da Terra sempre falará mais alto.

― Isso significa que Leo está usando essa magia sombria?! ― Débora exclamou, quase se engasgando.

― Não. Os Filhos da Noite não podem utilizar nenhum tipo de magia, não por si só. ― Betina continuava a olhar fixamente para Leonardo na cama, não vendo nenhuma alteração a não ser um grunhido solto no meio do coma febril. Ele teria sorte se conseguisse sobreviver até o amanhecer... ― Saul é quem deve estar manipulando magia sombria. E o seu marido... Apenas ele poderá dizer como está envolvido nisso.

A Sra. Tremonti deixou para si própria a gravidade do estado de Leonardo e assistiu Débora levantar-se e se aproximar do marido para umedecer novamente o pano sobre sua testa. Rezava à Mãe Terra para que a sua magia fosse capaz de ajudar aquele lobisomem. 

Que ela tivesse piedade daquele Filho da Noite.


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