Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 22
Capítulo XXII




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― As árvores têm desfolhado um pouco mais cedo por aqui? ― Inácio questionou, movendo a cabeça para os lados, enquanto os olhos escuros esquadrinhavam o terreno. ― Ainda é começo de junho, é um pouco cedo para as folhas caírem todas de uma vez...

― Não há muito mais para vermos além daqui ― Saul o interrompeu, seu cavalo caminhando emparelhado com o de Gusmão e o do Sr. Salazarte do outro lado, pois fizera questão de acompanhá-los assim que viu o visitante na fazenda. ― A maioria dos empregados está trabalhando a essa hora e há apenas algumas mulheres por aqui.

Em linhas ao redor dos três havia casebres com algum espaçamento entre si e, comprovando a afirmação do dono da fazenda, os arredores estavam completamente vazios. O sol frio batia na copa cinzenta das árvores e uma brisa fazia as janelas da maioria dos casebres permanecerem fechadas, mesmo com a possibilidade de aproveitar um pouco de luz solar. Ouvia-se apenas o trotar dos cavalos, com o som de seus cascos um pouco abafados pela lama.

― Há a floresta ao redor ― Gusmão retorquiu. ― Sua propriedade é vasta, Saul, há muito terreno onde um lobisomem poderia se esconder.

Saul respirou fundo, sentindo os músculos dos ombros começarem a tensionar. Moveu-os, sem largar as rédeas do cavalo por um único instante e apertando-as cada vez mais. Seu corpo sempre o traía para denunciar o que estava sentindo.

― Não há lugar em minha propriedade onde esse lobisomem poderia estar escondido. ― Ele desviou os olhos do caminho à frente para o bruxo ao seu lado, vendo-o acabar com suas próprias distrações em dois segundos. ― Eu tenho total controle sobre meus empregados e saberia se algum estranho entrasse em minhas terras.

― Mas... Mas... ― Inácio hesitou por um instante e limpou a garganta, para que a voz saísse um pouco mais profunda em seguida. ― O senhor estava fora por alguns dias quando o ataque ocorreu, então...

― Se permite a minha opinião, Inácio ― o Sr. Salazarte interveio, após subitamente ter se calado com o fim de sua exposição sobre a organização do Submundo de Tantris para o convidado uns bons minutos antes ―, um lobisomem não é um ser animalesco o tempo inteiro. Desconheço o quanto você pode ter tido contato com um, mas eu conheço alguns tão cavalheiros quanto eu e você. A não ser que algum deles mantenha os gostos de sua forma lupina, é claro, e prefira viver no meio do mato e consumir carne crua — ele soltou uma risada um pouco engasgada por baixo da respiração. — A não ser que os lobisomens de Mempolis sejam um tanto diferentes dos de Tantris…

Saul estranhou ver o avô da esposa tentando defendê-lo, pois, desde o início, esperava que o homem fosse apoiar Inácio. Entretanto, após uma breve discussão que tiveram quando retornou de viagem ― e onde Tibério esmiuçou os motivos pelos quais Ana e Betina poderiam estar em perigo com sua falta de cuidado ―, o homem parecia surpreendentemente calmo. 

― Não é isso ― Inácio retomou, ainda um tanto vacilante. ― O que eu quero dizer é que há a possibilidade de esse lobisomem ter se escondido em algum lugar da fazenda, o terreno...

― Eu saberia se houvesse intrusos durante minha ausência ― Saul cortou as tentativas de argumentação do outro. Ele fez um movimento com as rédeas e, junto de um relincho, o cavalo subitamente parou de trotar. Os outros dois se viram obrigados a fazer o mesmo, pois, à frente, via-se apenas terra seca e árvores nuas. ― Tenho plena confiança em meus empregados e domínio sobre minhas terras. Não há nada que aconteça aqui sem que eu saiba. ― Tremonti fixou seus olhos cinzentos em Gusmão, que empertigou as costas. A aura ameaçadora de Saul poderia ser captada por qualquer um que estivesse por perto. Era algo que estava fora de seu controle. ― Não há nenhum lobisomem na minha fazenda. 

As feições suaves de Inácio foram perdendo os ares de gentileza que ele carregava por todos os lados. Estava conseguindo irritá-lo sem precisar fazer esforço algum. Pois bem, era melhor que estivesse o mais longe possível. 

― Não há como entrarmos em contato com o Clã dos Lobisomens? Ao menos em Tantris, todos os clãs possuíam um pouco de noção do número de seus membros... ― o Sr. Salazarte interveio outra vez, o ar irônico usando instantes atrás ficando perdido no meio do caminho. Saul conseguira sobrecarregar o ar daquela conversa de uma vez. 

― Ele passou para os nossos domínios, Sr. Salazarte, é nossa responsabilidade...

― Eu estou perfeitamente ciente das leis do Submundo de sua cidade, meu rapaz ― Tibério o interrompeu, soltando as rédeas de seu cavalo para ajeitar as lapelas de seu casaco azul-escuro. Pelo pouco que Tremonti conhecia do avô de sua esposa, até mesmo ele estava ficando incomodado, mesmo que provavelmente por outros motivos. ― O que eu quero apontar aqui é como uma colaboração entre os dois clãs poderia ser vantajoso, afinal, se houvesse algum tipo de comunicação entre os lobisomens, poderíamos ao menos saber por quem estamos procurando e não sair caçando um homem a esmo entre mundanos.

― Infelizmente não é assim que as coisas funcionam por aqui, Sr. Salazarte. As nossas leis são assim desde que o Submundo de Mempolis tomou forma e não sou eu sozinho quem irá mudá-las ― Gusmão retorquiu ao argumento do outro e virou-se para o dono da fazenda, ignorando o bruxo mais velho ao seu lado. ― Poderíamos voltar, Saul? Sem a sua colaboração, creio não haver mais nada que eu possa fazer aqui.

Saul assentiu com a cabeça, agradecendo internamente por finalmente poder ver-se livre das incomodações de seu visitante. Sua recusa em ajudar nas investigações certamente seria mal vista pelos demais bruxos do quadrante, contudo, de que importava? Em breve aquilo terminaria e o acontecido seria apenas mais um à sua conta.

― Se ainda posso acrescentar mais uma opinião antes que vá, Inácio... ― Tibério continuou, enquanto os três faziam seus cavalos darem meia volta e seguirem pelo mesmo caminho enlameado pelo qual vieram. ― Não quero dizer que você sozinho poderá mudar as leis de sua cidade, pedir isso seria muita responsabilidade para um homem sozinho, hm? ― Gusmão sequer respondeu, encarando a natureza como se estivesse intimamente chateado. ― Mas, lembre-se, meu caro, que um bom político é aquele que melhor sabe jogar com as peças à sua disposição. E um rei sem aliados é o primeiro a cair.

Inácio permaneceu em silêncio, fazendo Salazarte ver que teria que se dar por vencido. Saul pouco se importou, contanto que terminassem aquela visita de uma vez.

 

 

Saul observou o fogo-fátuo que emanava das paredes de pedra. Aquele local nunca recebera um único raio de sol, porém, a iluminação mágica simulava a luz natural. Trabalho de fadas, que bruxos nunca compreenderiam completamente.

Os arredores saíram do foco de seu campo de visão, ignorando os móveis rústicos do lugar, que praticamente nem eram usados. Mas não custava tentar oferecer algum conforto, se é que era possível. Sentiu a garganta começar a fechar, com as palavras que mais uma vez o fariam parecer um idiota. Sentia-se como um desde que aceitara participar daquilo tantos anos atrás e ainda mais quando resolvera continuar mesmo após o fim que Ela deu aos seus irmãos. Alguns sentimentos tornavam as pessoas idiotas.

― Eu estou sacrificando tudo por você, será que nada te fará me perdoar?

Silêncio. As unhas raspavam pela pedra da parede. 

A aura mortífera exalada quase o deixava tonto. Sabia que não aguentaria ficar lá por mais do que alguns minutos, mas não podia não tentar. Idiota.

A angústia queimava por dentro, depois das palavras que o faziam se sentir como um idiota terem sido ditas. Sabia qual a resposta, então, por que ainda tentava? Por que não desistir de tudo de uma vez?

Não era capaz de deixar ir. E talvez nunca seria.

Levantou-se do chão e tirou a pedra com o símbolo gravado, usando-a para fazer uma das paredes deslizar. Atravessou rápido para o frio da noite, sabendo que a pedra voltaria a silenciosamente se fechar às suas costas e tornar-se nada além de um pequeno monólito. 

Do lado de fora, Tremonti viu Leonardo encostado contra uma das árvores nuas e em companhia dos grilos. O vento gelado torturava qualquer um e a lua minguante não iluminava quase nada e enxergavam graças a uma lamparina que Saul trouxera e estava abandonada ao pé do monólito. Ao pegá-la, foi o sinal de que iriam retornar da parte mais solitária da fazenda.

Não havia problema nenhum que mundanos quisessem atravessar algumas árvores ao em vez de contorná-las para chegar mais rápido ao rio, no entanto, com seres do Submundo a história era outra. Não à toa sempre iria preferir os mundanos, eram menos perguntas para responder.

― Teremos problemas por termos trocado a terra apenas hoje? ― Leonardo questionou e os dois foram caminhando para longe do monólito. Ao redor dele, uma linha de terra um tom mais escura que o restante era quase imperceptível. Para narizes de membros do Submundo, cheirava a açúcar queimado.

― Se nada aconteceu durante a lua cheia, a resposta é não ― Saul respondeu, erguendo o braço com a lamparina para iluminar o caminho adiante. Mais para ele do que para o próprio Leonardo. ― Daqui em diante, mudaremos a troca da terra para a lua crescente, será melhor para nós.

O outro assentiu e ambos apressaram ainda mais o passo, pois devia ser quase uma hora da manhã e Saul sabia que o empregado precisava dormir.

― Eu sinto muito pelo que fiz quando o senhor estava fora...

― Basta ― Tremonti interrompeu. ― Está tudo sob controle e desculpas não consertarão o que você fez. ― Leonardo abaixou a cabeça e encolheu os ombros, resignando-se. As árvores foram ficando para trás e a linha de casebres abriu-se à frente dos dois. Nenhum som além dos grilos. ― Aumentarei os preparados com sândalo no próximo ciclo.

― E quanto aos bruxos?

Os dois homens chegaram ao mesmo caminho pelo qual os três cavalos trotaram horas antes. Dali, cada um seguiria em uma direção diferente.

― Nada com que precise se preocupar.

 

 

Saul lentamente empurrou a porta da cozinha, não ouvindo um ruído sequer para denunciar seu retorno para dentro de casa.

― Gostaria de uma xícara de chá, Saul? ― Tibério questionou, encostado contra uma das paredes do cômodo e em posse de uma xícara solitária. A janela em frente lançava a luz prateada para seus pés. ― Alguns de nós prefeririam Banksiae para dormir, mas eu prefiro apostar em algo mais leve. ― Ele riu baixinho e Tremonti fechou a porta atrás de si sem muito cuidado, produzindo um barulho na casa silenciosa. ― No seu caso, gostaria que eu preparasse um pouco de Banksiae para você? Acredito que será mais efetivo para sua insônia do que caminhar.

― Não preciso de poções para dormir ― respondeu seco, passando os trincos na porta.

― Então devo supor que você mesmo decidiu fazer uma ronda pela fazenda em busca do lobisomem? Preciso avisá-lo que lobisomens costumam se encontrar em sua forma humana durante a lua minguante...

― Boa noite, Sr. Salazarte. ― Saul começou a atravessar o cômodo, pouco se importando em parar para conversar.

― Boa noite, meu jovem, tenha bons sonhos. Espero que, diferente de mim, você consiga não ter pesadelos com a consciência pesada. ― Ele bebeu um gole de chá e o dono da fazenda estacou. ― A culpa pela negligência é algo que sempre irá assombrar os sonhos aqui e ali. Apenas uma consciência cauterizada pelo tempo será capaz de detê-los.

Saul girou nos calcanhares para encarar o avô de sua esposa a observá-lo com um sorriso por trás da xícara. Ele tomou mais um gole. Tremonti retomou seu caminhar, sabendo que, diferente do que afirmara para Leonardo, ainda haveria algo com o que se preocupar.


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