Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 15
Capítulo XV




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Irina esticou o braço para alcançar a tinta sobre a mesa. Para evitar acidentes, optara por deixá-la junto dos demais papéis com suas anotações sobre oniromancia em cima da mesa de centro da sala de visitas. No mesmo lugar estava um encadernado feito a mão e entregue a ela pela Srta. Salazarte, através de um empregado, e com uma mensagem de desculpas por não terem conseguido retornar à biblioteca do avô, junto do último exemplar separado que não conseguiram analisar.

Àquela altura, Irina estava começando a se afeiçoar um pouco pela garota, não apenas contagiada pelo irmão mais novo, que corava adoravelmente toda vez que mencionavam o nome de Meredith Salazarte perto dele, mas também porque ia percebendo que ela poderia, sim, ter algo além daquele interesse “científico” por ele. Acreditava que dificilmente Meredith corresponderia aos sentimentos românticos de Ezequiel, no entanto, era perceptível um pouco de afeto dela por ele. Efeito de se conhecer um pouco melhor alguém.

Para seu infortúnio, contudo, o livro recebido não passava de anotações de algum antepassado dos Salazarte sobre a descrição de sonhos para profecias na mitologia greco-romana, usando como base uma comparação entre as descrições de Hesíodo, Homero e Ovídio. Talvez o entregasse para Ezequiel, já que Meredith dissera que não tinha pressa para que o devolvessem e ele se interessava pelo assunto. 

A bruxa tentou retomar o foco para o que estava fazendo. A única coisa marcada sobre a página que virara em seu diário era a data, 04 de junho. Fora isso, perdera-se totalmente nos pensamentos sobre as anotações que estivera analisando até poucos minutos antes. 

Além das informações que eram de conhecimento geral da maioria dos bruxos ― e levada com certa desconfiança ―, sobre como funcionava a oniromancia e a dificuldade de se interpretar corretamente os significados de sonhos e de que não era uma magia que deveria ser praticada, não havia mais nada de interessante. Duvidava que aquilo se encaixasse a Ezequiel e retornavam ao ponto de não terem ideia de como interpretar o sonho repetitivo. 

Ouviu passos no ambiente e sentiu-se um pouco aliviada ao perceber que se tratava do mordomo, pois escolhera a sala de visitas para poder ficar sozinha. Junto de uma reverência com a cabeça, ele anunciou o que o trouxera ali:

― O Sr. Salazarte gostaria de falar com a senhorita.

Irina baixou os olhos para ver sua situação: os sapatos abandonados à beira do sofá e os pés sobre o móvel, metade das pernas envoltas pelas meias aparecendo do meio da confusão de saia e anáguas pela posição em que estava para poder apoiar o diário sobre as pernas. Definitivamente não era uma posição respeitável para uma dama. Deixou os objetos sobre a mesa e voltou os pés para o chão.

― Deixe-o entrar.

Com a ordem sucinta, o mordomo se retirou e ela tentou afivelar os sapatos rapidamente, não conseguindo encaixar o furo certo. Ao ouvir novamente o barulho de passos, enfiou os pés de qualquer jeito sobre eles, tentando se levantar como dava.

― Sr. Salazarte, que surpresa vê-lo ― ela cumprimentou, vendo-o se aproximar em posse de quatro livros. Estendeu a mão e sentiu-o depositar um beijo sobre os nós de seus dedos, em um gesto educado. ― Gostaria que eu pedisse para que trouxessem um pouco de chá?

― Não se preocupe com isso. ― O bruxo parou ao lado do sofá, enquanto a anfitriã caminhava até ele tentando se equilibrar sobre os sapatos. ― É apenas uma visita para lhe entregar os livros que a senhorita mencionou. Espero que eu tenha pego corretamente. 

Irina recebeu os quatro exemplares da mão do visitante e analisou brevemente os títulos. Um era em um idioma que não conseguia reconhecer à primeira vista e os outros em latim, sendo um deles o que lhe chamara atenção na biblioteca: Corpora Maledicta.

Parou com os dedos sobre ele, sentindo a capa de couro envelhecido. Talvez fosse uma besteira o pensamento, mas conseguia sentir o peso negativo que aquelas páginas deveriam conter. Definitivamente não combinava com ela conservar aquela ideia, contudo...

― Eram exatamente esses. ― A bruxa conseguiu retomar a clareza em sua mente e respondeu a pergunta após alguns segundos de espera do outro lado. ― Desconheço qual o limite que o senhor e seu pai colocariam às leituras de suas irmãs, mas, a julgar pelo título, não seria algo que eu aprovaria que Ezequiel lesse. Despertaria alguns pensamentos que não nos levariam a lugar nenhum.

A verdade é que, se aquelas páginas contivessem o que estava pensando, traria mais desalento do que esperança para ele, coisa que Ezequiel não merecia, com o tanto que já tinha para lidar. Quanto a si mesma, ansiava por descobrir qual era o real problema do irmão. Independente do quão desesperançoso pudesse ser.

― Dei uma breve lida em cada um desses livros e concordo ― o Sr. Salazarte retrucou, fazendo com que ela saísse de vez das próprias considerações. ― Acredita mesmo que a doença de seu irmão possa ter algo relacionado a uma maldição?

― Todas as possibilidades devem ser testadas, Sr. Salazarte. ― Ela o encarou, envolvendo as capas de couro com ainda mais firmeza entre os dedos. ― Nossas pesquisas sobre sonhos ainda tem se mostrado um tanto infrutíferas, então decidi recorrer a outra abordagem, já que encontramos esse livro...

― Meredith esteve aqui? ― o bruxo questionou, desviando o olhar para a mesa de centro, onde o exemplar que Irina estudava estava aberto.

― Um empregado de vocês esteve, a pedido dela. ― Ainda tentando se equilibrar sobre os saltos e arrastando os pés para poder caminhar, Irina aproximou-se do sofá e colocou seu diário, pena e tinta sobre a mesa. ― É mais um estudo mitológico do que prático, mas creio que Ezequiel se divertirá com a leitura. Gostaria de se sentar?

Com a proposta, o Sr. Salazarte se aproximou e ambos ocuparam assentos no sofá. A anfitriã tocou a sineta e o mordomo retornou, recebendo um pedido para que trouxesse chá. Aproximava-se das quatro e meia da tarde e Irina estava seguindo seus horários habituais, resolvendo estender o convite, mais uma vez, para o bruxo ao seu lado. Dessa vez, ele aceitou.

― A senhorita conseguiu fazer algum progresso na interpretação dos sonhos de seu irmão?

― Como eu disse, estamos caminhando mais na mitologia do que em algo realmente prático. ― Ela balançou a cabeça e comprimiu um lábio contra o outro, encarando os objetos sobre a mesa. Fechou o diário que estava aberto, mesmo que não houvesse nada visível além da data. Ao seu lado, o visitante observava-lhe os gestos. ― Acredito que a melhor forma de encontrarmos respostas seria buscando uma interpretação para o sonho em si...

― Algo difícil de se encontrar. A oniromancia é uma magia ainda bastante misteriosa para nós e algumas informações acabam se misturando com a cultura mundana.

― Mundanos parecem ter um pouco de gosto por tentar interpretar os próprios sonhos. ― A Srta. Gutiérrez acabou o interrompendo, voltando os olhos para o convidado, que continuava a observá-la. Em todas as conversas que tiveram, era como se tivesse algo de chamativo em seu rosto, por tantas vezes que o pegara fazendo a mesma coisa. Em alguns casos, aquilo poderia ser falta de decoro; em outros, constrangedor; mas, naquele, tinha de confessar que lhe despertava certa curiosidade. O que havia nela? ― Pela minha experiência com alguns de nossos empregados mundanos, é um tanto comum terem um simples sonho e tentarem interpretar os detalhes como se aquilo fosse uma previsão do futuro.

Na tentativa de se manterem o mais longe possível de mundanos, o mais comum era que famílias abastadas de bruxos contratassem empregados de outros clãs para evitar problemas com serem descobertos, contudo, algumas famílias, como os Gutiérrez, preferiam correr o risco. Independente de qual fosse sua opinião sobre o fato, o Sr. Salazarte decidiu se ater ao tópico da conversa:

― A senhorita acredita que algum deles seria capaz de oferecer alguma interpretação para o sonho de Ezequiel?

Mesmo com a possibilidade de recorrerem à sabedoria mundana para resolver um problema, a pergunta não saiu contendo o mínimo de ironia, pelo que Irina pôde perceber. Ele estava realmente falando sério.

― Se algum deles for capaz de trazer alguma interpretação útil... Como eu disse, todas as possibilidades devem ser testadas e, se algum mundano pode tentar trazer alguma luz a isso, para sabermos onde olhar, então eu iria atrás dessa pessoa sem nem pensar.

O bruxo continuava a observá-la, porém, dessa vez, um breve sorriso tomou forma nos segundos em que ele levou para se manifestar novamente.

― Admiro a determinação que tem, Srta. Gutiérrez. É um amor bastante profundo pelo seu irmão.

Irina sentiu os lábios vacilarem por um sorriso, pega de surpresa pela afirmação. Olhou para o próprio colo e ouviu o mordomo retornar para a sala de visitas. A bandeja com bule e xícaras foi deixada sobre um espaço vago na mesa e o Sr. Salazarte fez questão de passar uma xícara para a mulher ao seu lado e ficar com a outra.

― Há um intervalo curto de apenas onze anos entre mim e Ezequiel, em comparação com meus outros irmãos... ― Irina começou a resposta ainda um pouco incerta de como formular as frases e, de canto de olho, percebeu a atenção do convidado sobre si, enquanto bebia um gole do chá de framboesa. Tentou se recompor e continuar sem mostrar hesitação. ― Ezequiel sempre foi uma criança um tanto frágil... Foi difícil não ser... Um tanto protetora com ele.

Sua fala não foi organizada como esperava, no entanto, o bruxo ao seu lado assentiu com a cabeça.

A verdade era que Beatriz nunca deu uma real atenção a nenhum de seus filhos, com exceção de Isaac. Estevão, quatorze anos mais jovem do que o primogênito dos Gutiérrez, sempre se ressentiu em relação à mãe, fato que deixava às claras sem vergonha alguma. Quanto a ela própria, Beatriz parecia somente querer exibi-la como um objeto e nada além. Agora, com Ezequiel... Irina sentia o sangue ferver com a mera lembrança de que a mãe o via como um defeituoso.

Se dependesse de Beatriz, a existência de Ezequiel seria completamente esquecida, se aquilo não pudesse ser usado como algo útil para a dança social. Pena e compaixão poderiam levar alguém longe, ela dizia e Irina sentia a vontade de pegar o irmão e levá-lo para bem longe dali.  

― É tocante como está disposta a passar por cima de suas próprias convicções pelo amor a Ezequiel ― o bruxo ao seu lado elogiou e Irina bebeu um gole de chá, adiando a réplica. ― Me deixa com ainda mais vontade de ajudá-los.

A bruxa afastou a xícara da boca e sorriu na direção do Sr. Salazarte. Pelo que conhecia das pessoas, a maioria não estaria disposta a ajudar daquela forma uma pessoa que mal conhecia. 

Pena e compaixão. Sua mãe estava certa, exceto que não faria uso daquilo como ela. 

― Sua gentileza é encantadora, Sr. Salazarte. Espero conseguir retribuí-la algum dia.

Ele somente abaixou a cabeça e a meneou, fitando os olhos azuis no líquido dentro da porcelana.

― Não se preocupe com isso. ― Ainda de cabeça baixa, bebericou um gole de chá. ― Devo parabenizar sua mãe, esse chá é delicioso.

― Minha mãe nunca deve ter feito um chá em toda a sua vida. ― Irina viu-o voltar o rosto de sobrancelhas erguidas em sua direção e teve que segurar o riso ao perceber que a mentira que sua mãe contara na última visita dos Salazarte fora por água abaixo. ― O chá é obra de nossa cozinheira, todos os elogios devem ser dirigidos a ela.

― Nesse caso, deixo meus cumprimentos à cozinheira de vocês. ― Junto do erguer da xícara, os dois se permitiram rir um pouco.

O silêncio foi caindo sobre eles lentamente e Irina encarou os objetos sobre a mesa, o raio de sol do final da tarde entrando pela janela e aquecendo metade da sala de visitas naquele dia frio do final do outono. O tempo de silêncio tornou-se um tanto mais longo, com Irina não sabendo exatamente por onde conduzir a conversa. Ela era uma pessoa sociável, contudo, estar sozinha com um homem que não fosse da família era algo fora do habitual. Mesmo que os bruxos não seguissem totalmente à risca as regras de etiqueta mundana, em alguns pontos ainda concordavam um pouco.

― Sr. Salazarte, que surpresa vê-lo novamente! ― Beatriz exclamou em uma voz que ia se tornando mais aguda a cada sílaba e, não bastasse a exclamação, o farfalhar dos tecidos de seu vestido anunciou sua aproximação. ― Como pôde oferecer somente chá a ele, querida? Devia ter perdido que Xavier trouxesse ao menos alguns biscoitinhos.

As duas cabeças se voltaram para o lado, vendo a dona da casa vir se aproximando com as palmas das mãos envolvendo as laterais do rosto. Irina podia jurar que a mãe estava fora em mais uma de suas tantas “visitas sociais” e precisou conter a surpresa ao vê-la surgir tão de repente na sala de visitas. Podia jurar que os únicos Gutiérrez na casa eram ela e Ezequiel, que dormia, caso contrário...

― Ouvi de nosso mordomo que o senhor tinha passado para uma visita e ainda estava aqui, que surpresa! ― Beatriz se sentou no lugar vago à direita do bruxo, encurralando-o entre as saias volumosas das mulheres em cada lado. ― Como está sua irmã? Ou suas irmãs, devo dizer, pois me recordo dos dois terem mencionado outra na última visita que fizeram...

― As duas estão bem, Sra. Gutiérrez ― ele respondeu antes de dar um último longo gole em seu chá e colocar a xícara sobre a mesa. ― E devo pedir que perdoe minha indiscrição, mas preciso ir. Minha intenção era apenas fazer uma visita rápida para entregar alguns livros à sua filha. ― Irina pôde apenas piscar os olhos enquanto via-o se erguer do sofá e afastar-se alguns passos, prestes a fazer uma reverência para se despedir da dona da casa. ― Espero poder fazer uma nova visita mais longa para a senhora em breve.

O Sr. Salazarte sorriu, mas, a julgar pela rapidez em que ele decidiu retornar para sua ideia inicial de ir e voltar rápido, Irina podia concluir que nem mesmo ele queria aturar uma longa conversa com sua mãe. Talvez a visita que fizera alguns dias atrás tivesse sido o suficiente.

― Saiba que tanto o senhor quanto suas irmãs são convidados para nos visitar quando quiserem. ― A Sra. Gutiérrez se levantou para as despedidas e foi seguida pela filha, que teve que voltar a se equilibrar sobre os sapatos desafivelados enquanto se curvava para deixar sua xícara junto da outra sobre a mesa. ― Mande meus cumprimentos ao seu pai, por favor.

Junto de um largo sorriso, Beatriz tocou a sineta e chamou o mordomo para guiar o convidado até a saída. Se não fossem seus sapatos, Irina teria o acompanhado até a porta com todo o prazer. No lugar disso, sentou-se novamente e tentou afivelar seus sapatos no furo certo, ainda querendo se retirar rapidamente para o próprio quarto.

― Ora ora, querida, não esperava vê-la sozinha com um homem, do jeito que a conheço... Mas parece que você ainda possui algumas facetas para surpreender a sua própria mãe.

― Eu estava oferecendo a educação que a senhora me ensinou a ter. Ou não teria feito o mesmo se estivesse em meu lugar? ― Ela apertou com força a fivela do sapato esquerdo, pouco se importando que estava frouxo. Soltou uma longa respiração pelo nariz e esticou-se para começar a recolher suas coisas sobre a mesa.

― Exceto, querida, que eu sou uma mulher casada e você não é.

O mordomo retornou para recolher os utensílios que trouxera e Beatriz sentou-se outra vez, começando a tagarelar sobre mais uma de suas visitas à Denise. Pouco se importando com a própria mãe, Irina pegou suas coisas e saiu da sala de visitas junto do empregado.


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Notas finais do capítulo

Dia de capítulo duplo ♥



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