Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 13
Capítulo XIII




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Saul passou novamente os olhos sobre a carta do sogro, sequer precisando disso, pois tivera tempo o suficiente para memorizar o conteúdo dela desde que a recebera, três dias antes. A luz da lua cheia banhava seu rosto completamente, tornando-o um pouco mais pálido à luz prateada.

Ele baixou o braço, segurando o papel por entre os dedos e observando o exterior através da janela. Somente enxergava as formas das árvores contra a escuridão naquele lado do casarão e o céu escurecido e nublado. Talvez chovesse ou talvez esfriasse ainda mais. De qualquer forma, não importava, pois todos aqueles anos provaram que chuva nenhuma poderia curar o que castigava aquelas terras.

A Mãe Terra havia se esquecido dele. Ou talvez fosse ela quem estivesse deixando que aquilo acontecesse com ele como punição. No fim, tudo se fechava em torno de sua própria culpa.

O bruxo desencostou-se da parede ao lado da janela e deu alguns passos para aproximar-se de sua escrivaninha, onde deixou a carta de Leônidas junto da desordem de papéis que ainda não tinha jogado fora desde que a esposa o pegara lendo aquelas missivas, duas noites antes daquela. 

Naquele meio tempo, Anastácia recuperara-se completamente da febre, graças aos cuidados da mãe e do bisavô, e agora dormia serenamente em seu bercinho. Ela estava dormindo um pouco mais do que o normal, mas, segundo Betina, aquilo melhoraria ao longo dos dias.

Também segundo Betina, aquilo nada mais fora do que uma febre, coisa que costumava acontecer com todas as crianças pequenas, que adoecem com facilidade até que se tornem mais fortes em certa idade. Saul queria muito acreditar que a esposa estava certa ― fora dali com certeza estaria ―, porém, seu medo que a situação se repetisse era grande demais. 

E se o próximo afetado fosse a própria Betina? Ou Tibério? Por mais que não suportasse o homem, não desejava que aquele mal o afetasse. Nem a ele e nem a ninguém.

Tremonti abriu uma das gavetas da escrivaninha, tateando por dentro dela na escuridão. O escritório era um total breu, com exceção do quadrado de chão iluminado pela luz da lua que penetrava pelo vidro da janela. Ele encontrou um frasco e envolveu-o na mão, decidido a metê-lo no bolso de seu casaco assim que o encontrasse também.

 

 

O cavalo trotava em uma velocidade constante e Saul aproveitava da pelagem escura para misturar-se ainda mais com a noite. Deixara o lampião em casa por esquecimento e porque queria passar despercebido. Pelo som que chegava aos seus ouvidos, sabia que alguns dos empregados se reuniram em uma roda em volta da fogueira para contar histórias e divertir-se com canções folclóricas. O melhor mesmo seria que tivessem ficado em casa naquela noite de lua cheia, mas que desculpa poderia usar para convencê-los, além do frio? Nada que uma dose de aguardente não resolvesse, segundo eles.

O som foi se aproximando e o bruxo não mudou de rota, pois estava um tanto longe para que fosse percebido pelos empregados, que deviam estar um pouco altos àquela altura.

Continuou no ritmo constante por mais alguns minutos, quando finalmente começou a ouvir barulho de água corrente. Aquele era o rio que marcava o limite oeste da propriedade.

Saul desmontou do animal e amarrou-o em uma das árvores. Sua respiração condensava-se no ar e sentia ainda mais frio ali, mesmo com o casaco abotoado até o último botão em torno do pescoço. Caminhou por entre algumas árvores e parou em frente a uma em específico, a lâmina do machado atrelado às suas costas reluzindo vez ou outra. Dentre as árvores ao redor, era a maior, velha e com sinal de podridão no tronco. Não seria nem um pouco difícil derrubá-la.

― Fada! Fada! Apareça de uma vez, mentirosa! ― Saul gritou para o nada e se aproximou da árvore decrépita, tentando olhar para dentro de um dos buracos no tronco, mesmo no escuro. ― Apareça, maldita! Não conseguiu me deixar desesperado como queria? Apareça! ― ele socou o tronco apodrecido com força, fazendo uma lasca de madeira voar junto e quase machucar a mão.

Rodeou a árvore, procurando por alguma presença luminosa e não encontrando nada. Socou a madeira novamente.

― Resolveu se esconder dessa vez?!

Enquanto o bruxo gritava para o vento, um uivo soou a alguma distância, sequer sendo percebido por ele. Em alguns piscares de olhos, um ponto luminoso voou sobre o rio, vindo do outro lado da margem, e transformou-se numa forma de mulher.

A fada, como todas as demais de seu clã, era de uma beleza estonteante. Os cabelos loiros pálidos escorriam pelos ombros e eram adornados com uma coroa feita de vinhas e apenas três petúnias. Os olhos azul-celeste brilhavam junto do desdém do sorriso de seus lábios finos.

― Salve, Saul Tremonti! Salve o senhor que gentilmente permite que eu continue a habitar em suas terras! O que o traz até mim tão perto do início das horas sombrias da noite?

― Você mentiu sobre o feitiço que me passou ― ele rugiu, aproximando-se dela em poucos passos e amassando o mato sob suas botas pesadas. ― Eu fiz um papel de idiota com algo que não mudou absolutamente nada! ― O bruxo soava ameaçador com toda sua altura e porte físico. Botaria medo em quase em quase qualquer um, enquanto ela somente o assistia parecendo satisfeita, ainda com seu sorriso.

― Eu fui muito generosa quando tudo o que recebi em troca foi uma promessa de não cortar minha árvore.

Saul soltou uma respiração pesada, encarando-a carregado de ódio. Segurou consigo as pragas que queria soltar sobre ela e se virou, afastando-se e tirando o machado que estava atrelado em suas costas.

― Era uma tentativa inútil e você sempre soube disso ― ela alertou, vendo-o começar a bater a lâmina contra o tronco de sua árvore. Ela estremeceu e grunhiu, correndo até ele. ― Eu o alertei desde o início que seria uma tentativa frustrada. Você não me deu ouvidos por sua própria teimosia.

Saul parou o que fazia e voltou o rosto para ela, suas feições transformadas do ódio para o desespero.

― É a minha filha que está em risco! Uma criança que pode morrer enquanto você me faz perder tempo com suas brincadeiras inúteis! Ainda não está satisfeita por me ver sofrer?

Sob a luz da lua, o bruxo viu o rosto da fada tornar-se sério, sem nem sombra do sorriso zombeteiro e desdenhoso que carregava instantes atrás. Seus olhos o fitavam graves.

― Você sabe que, se isso acontecer, a culpa será inteiramente sua. ― A mão do bruxo se fechou mais contra a madeira do cabo e ele pressionou os dentes, chegando a doer. ― A Terra está cobrando a vida que devia pertencer a ela e a Sombra ainda não está satisfeita. A alma corrompida não pode continuar a viver.

― E meus irmãos não foram o suficiente? ― a voz de Tremonti vacilou. ― Uma vida por outra, está pago. Já está mais do que pago, não há mais o que cobrar de mim!

― Tem certeza que está? Ainda há algo pendente e você sabe disso. Você sabe tão bem por ainda conservar a alma corrompida. ― Ele deu novamente as costas para ela e atirou o machado no chão. Pressionou um punho fechado contra a boca, deixando-a ver somente o mover de seus ombros nas respirações pesadas. ― Há uma aura de morte o envolvendo, Saul Tremonti. Uma aura que irá envolver tudo ao seu redor, até encontrar aquilo que deseja. ― Não houve resposta, mesmo se passando alguns segundos. ― O que começou com sangue terminará com sangue e não há feitiço ou encantamento algum que possa enganar a Terra ou a Sombra. A Terra é justa e a Sombra traiçoeira, não se esqueça.

― E seria justo punir uma criança inocente pelo pecado do pai? ― ele jogou a pergunta em um lamento, abaixando a mão de perto da boca.

― Diga-me você o que seria justo, Saul Tremonti. Você sabe o que fez, então pergunte a si mesmo qual punição seria justa. ― Saul virou-se novamente para ela, as narinas movimentando-se pelas respirações profundas e pesadas, que lançavam fumaça para o ar. ― Você sabe que tudo o que fazemos tem um preço e o que você fez ainda não foi pago. A Terra e a Sombra ainda têm suas dívidas com você.

A fada atirou-lhe um último olhar carregado de gravidade e transformou-se para sua forma diminuta, sendo somente um ponto brilhante voando para longe no escuro da noite de lua cheia. Saul correu, tentando alcançá-la, porém foi obrigado a parar na margem do rio enquanto ela atravessava para o outro lado.

― Desgraçada! ― ele berrou a plenos pulmões, vendo-a sumir na escuridão.

O bruxo andou com seus passos pesados até o ponto em que o machado caiu no mato e pegou-o, envolvendo o cabo com tanta força que os nós de seus dedos embranqueceram. Ruídos de cascos de cavalo tornaram-se audíveis e ele sequer percebeu, batendo a lâmina do machado contra o tronco podre da árvore.

― Patrão! O que o senhor está fazendo? ― Um de seus empregados aproximou-se em cima de um cavalo e em posse de um lampião. Com o braço estendido, a luz amarelada se projetou sobre as feições transtornadas do dono da fazenda.  ― Eu nem acreditei quando disseram ter visto o senhor passar num cavalo. 

Saul o encarou e piscou algumas vezes, tentando fazer a mente processar o que estava acontecendo. Sua respiração saia ruidosa e sentia o corpo tremer. Duvidava que fosse o frio.

― O que está fazendo aqui?! ― ele questionou para o homem, que era um senhor perto da meia idade, a pergunta soando um tanto mais ameaçadora do que planejava.

O empregado moveu o braço, para que o lampião iluminasse um pouco mais. Não viu nada além de algumas árvores e do patrão sozinho, em posse do machado. O tronco às suas costas estava um tanto lascado, além de podre. Um uivo soou novamente e aquela foi a primeira vez que Saul o percebeu, arregalando os olhos cinzentos e fazendo o senhor encará-lo ainda mais confuso.

― Volte para casa imediatamente! ― o bruxo demandou, aproximando-se do cavalo onde o outro continuava montado. ― Diga aos outros para fazerem o mesmo, precisam ir embora.

― Mas, patrão...

― Vá! ― ele berrou, chegando a assustar seu empregado.

O homem o encarou por mais alguns instantes, sendo fitado pelos olhos graves de Tremonti. Por fim, fez o cavalo dar meia volta e tomou o mesmo caminho pelo qual viera. Saul ouviu o uivo novamente, ainda pressionando a madeira do cabo do machado.

O bruxo olhou para o céu, vendo que algumas nuvens finas começavam a deixar as estrelas e a lua cheia aparecerem. Fechou os olhos e soltou uma respiração pela boca, lançando um pouco de fumaça para cima. Que ele conseguisse se controlar, pois tinha problemas demais para encherem sua cabeça. E ainda precisava colher um pouco de terra no frasco e enviá-la para Leônidas, era sua última esperança, porque a Mãe Terra parecia estar totalmente contra os Tremonti. 

 


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