Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 10
Capítulo X




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Betina deixava os pés escorregarem de um lado para o outro sobre o piso acarpetado do berçário. Com a filha quase adormecida nos braços, assistia a luz da lua entrando no cômodo e iluminando o móvel que servia como um trocador para a criança.

Na última manhã, Saul a acordara lívido e com uma expressão que ela nunca vira antes no rosto do marido, mas que agora decorara: desespero. Não sendo novidade que ela e o Sr. Salazarte vinham de uma família com aptidão para trabalhar com poções ― e ambos decidiram estudar melhor o tópico ―, o Sr. Tremonti sabia a quem deveria recorrer primeiro.

O casal disfarçou, dizendo que chamariam um médico mundano para a criança, e enquanto um dos empregados saía para cumprir a ordem, Betina e Tibério aproveitaram o intervalo para tentarem entender o que se passava com Anastácia. Tibério desvendou o mistério em não mais do que dois minutos e logo correu para ordenar ao marido da neta que conseguisse as ervas das quais precisava.

O médico mundano foi recebido, examinou a criança e chegou à mesma conclusão que o Sr. Salazarte. Mais tarde, o tratamento prescrito pelo homem foi ignorado e o substituíram pela poção preparada por Betina e Tibério e, cerca de trinta e seis horas depois, a febre de Anastácia havia cedido quase por inteiro.

― Eu ainda me recordo da primeira febre que você e seu irmão tiveram ― Tibério começou de repente, quebrando o silêncio que reinara por uns bons momentos. O senhor estava sentado na beira da cama que pertencia à babá e uma vela na mesa de cabeceira iluminava seus traços enrugados e os olhos azuis voltados para neta em uma mistura de ternura e reminiscência. ― Sua mãe mal dormiu naquela noite e seu pai tentou trazê-la à razão. Mesmo sabendo que é perfeitamente normal as crianças terem alguns tipos de doenças até ficarem mais fortes em certa idade, nem o grande  ― destacou a palavra, um pouco de ar escapando e denunciando o deboche ― doutor Leônidas Salazarte estava imune às preocupações de um homem que é pai pela primeira vez. ― Ele sorriu, olhando para a neta e a bisneta a alguns passos de distância. ― Acabei dormindo por lá naquela noite, minha velha que me perdoasse depois, eles precisavam de mim. Mesmo que seu pai não fosse admitir.

A bruxa parou de ir de um lado para o outro e encarou Tibério, mesmo que ela estivesse na penumbra e pouco pudesse ser vista por ele.

― Eu vi acontecer o mesmo com os meus três irmãos, sei que é normal ― ela respondeu, percebendo que o bebê em seus braços estava adormecido. ― Matilda era quem mais costumava adoecer.

― É o que eu disse, Tina: é diferente quando a criança doente é a sua filha. ― Tibério soltou um sorriso que exalava sua aura de quem sabia estar certo e a neta deu as costas, dando alguns passos para se aproximar do berço. ― Ao menos fico um pouco mais aliviado de ver que Saul parece não ser um mau pai, como eu imaginava. Era de dar pena vê-lo tão desesperado.

― Saul é um bom homem. ― Betina deitou a filha sobre o berço e puxou o lado com as grades para cima, dando um último olhar mais demorado para ela. ― Ele é apenas um tanto reservado e de poucas palavras. Talvez o senhor mudasse de opinião sobre ele se deixasse de lado suas primeiras impressões para conhecê-lo melhor.

― Pelos céus, você deve gostar mesmo desse homem para ser agressiva com seu próprio avô para defendê-lo.

Ela voltou o rosto para ele, vendo-o a observá-la de sobrancelhas erguidas. Betina costumava ser um ótimo contraponto ao irmão gêmeo no quesito raiva. Enquanto Bernardo obrigava-se a se refrear o tempo inteiro até ter um rompante de raiva e assombrar a todos, ela continha os próprios sentimentos com tanta facilidade quanto respirar, deixando-os escapar daquela forma, com frases um tanto passivo-agressivas.

Levando em conta a dinâmica familiar em que crescera, onde Bernardo ficava com a atenção completamente para si, Betina acostumou-se a ser relegada às sombras e, quando os irmãos mais novos nasceram, ajudar a mãe no que fosse preciso, até para mostrar-se útil de alguma forma, afinal, tinha já seus quinze anos viera Matias, não era mais tão garota.

― O que eu quero dizer é que Saul é alguém extremamente reservado e acostumado a viver assim. Cutucá-lo em busca de respostas trará confusões desnecessárias ― ela respondeu em um quase murmúrio, tom que estavam usando no berçário para não acordar Anastácia, que finalmente caíra no sono.

Betina pegou a vela de sobre a mesa de cabeceira e fez um gesto com a cabeça em direção à porta, indicando que deveriam sair. Tibério a seguiu, imitando a neta e pisando suavemente sobre o piso para conservar o silêncio. Os dois saíram e a porta foi fechada devagarinho pela mãe da criança, para que pudesse dar uma última olhada no cômodo.

― Saul precisa entender que você é a esposa dele, não deveria ser deixada no escuro sobre certas coisas. ― Tibério parou em frente à Betina, a vela na mão dela lançando uma luz um tanto avermelhada para o rosto de ambos. ― Segredos podem destruir uma relação e você deveria saber disso ao ver como o casamento de seus pais se deteriorou ao longo dos anos.

Betina mordeu o lábio por dentro, incomodada pelo rumo da conversa. Não somente por ter que se recordar da mãe mais uma vez em um curto intervalo de tempo, mas principalmente pela menção ao casamento dos pais. 

Em uma de suas últimas visitas a Tantris antes de Anastácia nascer, Betina percebeu e sentiu muito bem a geleira que pareceu ter se posto entre os dois. Leônidas passava cada vez menos tempo em casa e mal olhava no rosto da esposa, enquanto ela fazia o mesmo. Por quê? Era uma pergunta que pairava no ar e ninguém se atrevia a fazer em voz alta. 

Pelas insinuações, Tibério parecia saber de algo. Ou talvez fosse apenas sua forma de julgar cada uma das ações do filho, o que não seria algo de se estranhar.

― Devemos nos preparar para o jantar. Saul com certeza estará à mesa e não seria de bom tom deixá-lo esperando por nós ― Betina afirmou, ainda mantendo o tom que usara dentro do berçário. No rosto, a luz da vela iluminava as feições sérias.

O Sr. Salazarte afastou-se alguns passos para trás, deixando claro que compreendia a vontade da neta em não continuar no assunto. Por ora, ele dava um passo para trás, no entanto, a Sra. Tremonti sabia que não demoraria muito para que a cena se repetisse.

― Espero que saiba que falo isso porque me preocupo com você, Tina. ― A bruxa começava a se afastar no corredor e parou ao ouvir a voz do avô, finalmente de volta ao tom habitual, mas sem censura. Ele não havia saído do lugar. ― Ignorar as memórias do passado não ajuda a superar a dor da perda e ignorar sua própria tristeza não a fará passar.

Betina interrompeu os próprios passos na direção de seu quarto e voltou parte do rosto para trás, vendo o avô agora na penumbra e parecendo mal ter se mexido. Ele a encarava com gravidade.

Os olhos azuis de ambos se cruzaram na pouca distância entre eles e, parecendo satisfazer-se com a mensagem que tentava passar, Tibério foi em direção ao próprio quarto no fim do corredor.

 

 

Para infortúnio de Betina, Saul não compareceu à mesa naquela noite. Ela sabia que aquela quebra de rotina devia-se à presença do avô na fazenda, pois, antes disso, poucas foram as vezes em que teve de fazer uma refeição sozinha quando o marido estava em casa.

Saul aceitou receber o Sr. Salazarte a extremo contragosto, ela sabia, e perguntava-se por quanto tempo mais ele suportaria a convivência.

A bruxa abriu a porta do escritório sem nem sequer bater, sabendo que o marido estava lá. Do lado de dentro, foi recebida pela visão dos móveis na penumbra e o círculo de luz da vela iluminando somente um ponto na escrivaninha coberta de papéis e onde o Sr. Tremonti estava debruçado. A janela às suas costas tinha as cortinas cerradas, bloqueando a entrada da luz da lua cheia. Ela andou alguns passos para dentro do ambiente, vendo-o tão absorto que sequer percebera sua presença.

― Resolvi eu mesma trazer o seu jantar, e lhe dar notícias de Ana ― Betina anunciou, assistindo o marido tomar um susto e encará-la com espanto nos olhos cinzentos. Mesmo sem olhar para a madeira, ele começou a ajuntar todas as cartas e envelopes sobre a escrivaninha de forma desajeitada. ― Meu pai lhe mandou uma carta recentemente? ― ela questionou, conseguindo ver somente algumas sílabas escritas aqui e ali, antes que todos os papéis desaparecessem em uma das gavetas do móvel, contudo, o sobrenome Salazarte pôde ser lido em questão de segundos. E se lembrava muito bem de ter visto a correspondência chegar alguns dias antes.

― É uma carta antiga. Estava separando algumas para jogar fora ― ele respondeu num sopro só e encarou a esposa enquanto fechava a gaveta e mantinha uma das mãos ali.

Betina se perguntava o que Leônidas escreveu para que Saul evitasse sequer mencionar o assunto, mas, se ele queria manter seus negócios em segredo, que assim fosse. Afinal de contas, por que ele iria negar a ela notícias da própria família?

― Ana está bem. A poção fez efeito e a febre baixou. ― Junto do anúncio e de um sorriso no rosto, Betina colocou o prato sobre a mesa. ― Ela irá dormir um pouco mais do que o normal, mas amanhã estará bem de novo.

Saul soltou uma respiração aliviada e retirou a mão da gaveta, deixando-a escorregar para o joelho.

― É normal crianças pequenas terem febres. Basta saber como cuidar e estará tudo bem. ― A bruxa tentou tranquilizá-lo e segurou as próprias mãos em frente ao corpo, observando-o assentir com a cabeça. Mesmo assim, ele não parecia nem um pouco mais tranquilo do que quando ela entrou.

― Eu não sei como conseguiria não enlouquecer sem você, Tina.

Saul finalmente levantou o rosto na direção da esposa e os dois se encararam, sem saber como continuar aquela conversa. Betina não sabia como responder àquilo e não tinham mais muito assunto. Tirando questões práticas e relacionadas à fazenda ou à filha, raramente tinham o que conversar. Ela não estava mentindo quando dissera ao avô que Saul era um homem reservado. 

― Eu vou comer a comida que você trouxe e continuar separando algumas cartas para jogar fora. Preciso tentar desocupar essas gavetas ― ele anunciou por fim, puxando o prato deixado sobre a mesa.

― Não fique aqui até tão tarde ― ela pediu e viu-o assentir enquanto usava o garfo dentro do prato para começar a comer. Mais alguns segundos se passaram e nada veio à mente para continuar aquele diálogo. ― Vou me retirar para a cama, já passa das nove.

Saul ergueu as sobrancelhas, fazendo-a concluir que ele deveria ter perdido a noção das horas naquele escritório.

― Durma bem ― ele desejou, terminando de uma forma educada. 

Betina deu as costas e atravessou o resto do cômodo às escuras. Fechou a porta e viu o corredor também na penumbra, tendo somente um quadrado de janela para iluminar o chão. Nem mesmo do outro lado, onde ficava a sala de estar, era possível ver alguma luz que não fosse prateada. Tibério provavelmente se retirara para o quarto e somente alguns empregados deveriam estar de pé.

A Sra. Tremonti fez o mesmo, mantendo o costume que adquirira de dormir um pouco mais cedo do que em Tantris. Não tinha muito o que fazer ali, por que passaria tanto tempo acordada durante a noite? Porém, daquela vez, manter-se acordada por parte da madrugada não foi uma escolha.

Ouvia uivos, a chuva caindo de forma estrondosa e sentia o cheiro de terra molhada. Passos chafurdavam pela lama que ia se formando e não eram pesados como aqueles feitos por botas. O uivo fazia seus ouvidos doerem e logo o cheiro ferroso de sangue incomodou suas narinas, fazendo-a esquecer totalmente o aroma agradável da terra molhada.

Abriu os olhos de uma só vez, encarando o teto escuro sobre a sua cabeça. Do lado de fora, realmente chovia e o vão deixado pelas cortinas permitia ver somente a escuridão do lado de fora. O vento uivava com tamanha força que chegava a ser um tanto assustador.

Ela puxou o lençol até o queixo, ainda tendo a impressão de que o cheiro de terra e sangue não saíra do seu nariz. E que não conseguiria fechar os olhos tão cedo naquela noite.

 


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Notas finais do capítulo

Momento a autora enlouqueceu! Resolvi postar um capítulo a mais hoje como bônus pra vocês ♡



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