O Homem que Perdeu a Alma escrita por Willow Oak Acanthus


Capítulo 17
Capítulo XV - O Vale das sombras.


Notas iniciais do capítulo

Eu caminho através do vale da sombra da morte
E não temerei mal algum, pois sou cego para tudo isso
Minha mente e minha arma me consolam
Porque eu sei que vou matar meus inimigos quando eles vierem - Shawn James.

De agora em diante é só dor aqui dentro do meu peito, honestamente. Sei lá, minha cabeça vai para a casa do caralho quando a porra do Sam Winchester entra na história.

PARA A CASA DO CARALHO.



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Ponto de vista de Hazel Laverne, A alma – Vale das sombras.

Abro os olhos e sinto o chão frio abaixo de mim. A primeira coisa que vejo é um lustre de cristal quebrado pendurado no teto bem acima de onde estou. Instintivamente passo a mão sobre a ferida aberta em minha barriga, e sinto a viscosidade escarlate que irrompe de mim na ponta dos dedos. Encaro a minha mão por um tempo, contemplando o sangue. Quando me sento, sentindo dor por todo o meu corpo, me vejo em uma casa aparentemente abandonada. As paredes são alvejadas, e descascam nos rejuntes. Rachaduras estão por todas as partes, e porta-retratos estão estilhaçados pelo chão.

Onde é que eu estou? E se estou morta... por que ainda estou sangrando?

Por ilusão ou esperança, sempre imaginei que morrer fosse libertador e sereno.

Não é. É apenas... solitário.

Me ergo com dificuldade, e me apoio na parede empoeirada. Quando retiro minha mão dali, percebo a marca que deixei sem querer, um molde perfeito dos meus dedos feito em sangue. Ando pelo corredor extenso com os olhos semicerrados graças a luz pálida que irradia de uma janela que fica mais à frente. Conforme vou andando, vou percebendo quadros que retratam campos vazios e secos. Isso faz o meu coração se apertar por algum motivo. A umidade do local faz com que eu me sinta pegajosa, e quando finalmente olho pela janela, vejo uma rua quase deserta coberta por névoa e solidão.

O mundo lá fora é pálido e esverdeado, triste. Me deparo com a porta da frente, e giro a maçaneta trêmula pelo frio que me acomete. É difícil enxergar um palmo sequer a frente do meu nariz, graças a neblina que cobre tudo. Caminho em direção a uma cerca, e me vejo de frente para a casa onde estava, construída em madeira branca e que parece apodrecer a cada segundo que se passa. Me encolho, cruzando os braços, e sigo pela rua adiante. Meio a neblina e a solidão, tenho vontade de chorar. Estou sozinha e morta, e não faço ideia de onde é que estou. Aperto os olhos para conseguir enxergar direito quando vejo uma mulher parada de costas, encarando uma das casas da rua, completamente estática. Seu cabelo é loiro palha, comprido e emaranhado. Não consigo expressar o alívio que me invade, o simples fato de sentir que não estou sozinha aqui é o suficiente para me acalentar por um momento.

—Com licença, moça...? – Me aproximo dela e minha voz sai como se estivéssemos debaixo da água, a densidade do ar parece ser diferente, pesada. Letárgica. Ela sequer se mexe. Franzo o cenho, e estico a mão para tocar o seu ombro, enquanto corvos parecem cantar ao longe.

Ela começa a se virar, devagar.

Cambaleio assim que meus olhos percorrem o que deveria ser o seu rosto.

Ela tenta murmurar alguma coisa, mas não consegue. Seu queixo está quebrado e pende para baixo, quase solto de seu rosto, a pele se esticando como gelatina. A língua está pendurada para fora como um pedaço de carne, o sangue escuro tomando conta de todas as suas vestes. O nariz está desfigurado, e os olhos estão arregalados. Fico estática e não consigo me mover.

Seus olhos castanhos estão cobertos de pavor, assim como os meus. E quanto mais encaro seu rosto, mais sinto medo. Ela estica a mão em minha direção, mas eu dou um passo para trás, amedrontada.

Fico estática por um momento, com medo do que pode acontecer a seguir. Mas, contrariando a qualquer possibilidade que eu havia criado em minha mente, a moça apenas encolhe a mão de maneira inofensiva, o olhar desolado e vazio como o de um pássaro ferido.

Está em profunda agonia.

Um sentimento de tristeza me invade. Olho para o meu próprio ferimento aberto, sangrando sem parar nesse exato momento. Encaro as mãos cheias de sangue, e então torno a olhá-la. Não sou melhor do que ela, não somos assim tão diferentes.

Estamos mortas, e a morte é feia. Os poemas tentam amenizar a agonia de perecer, mas quando somos ceifados, não resta beleza no ato. Apenas tristeza.

Me aproximo, sem conseguir dizer nada.

A mulher ergue as sobrancelhas, compadecida pela proximidade entre nós. Há quanto tempo será que está vagando por aqui, sozinha? E mesmo que seja difícil de notar, posso jurar que ela está tentando sorrir. Ela toca o meu rosto com sua mão gelada, e nos encaramos por um tempo.

Ela se encolhe, e por alguma razão, sinto vontade de abraçá-la.

E é isso o que eu faço. A princípio, ela parece não entender o que quero fazer, mas quando meus braços a envolvem, posso sentir que ela me abraça de volta, se agarrando a mim como um bote salva vidas. Seu corpo se contrai em pequenos espasmos em meu abraço, e com os grunhidos que saem de sua garganta, sei que está chorando.

—Eu sinto muito. – Consigo dizer, com a voz quebrando. Ficamos assim por um tempo, até que ela se desvencilha de mim. Seus olhos parecem ter visto algo atrás de mim, então me viro imediatamente para ver o que é que ela está olhando e me deparo uma moça negra e alta trajando um terno preto. Ela anda em nossa direção, mas não coloca os olhos em mim, nem por um segundo. Quando está diante de nós, estende a mão para a moça ao meu lado, sem dizer uma palavra. Parece serena.

Observo enquanto a moça desfigurada parece se decidir, e então, quando ela finalmente aperta a mão da moça de terno, ambas desaparecem como fumaça.

Estou sozinha novamente.

XXX

Caminho pelo bairro, que parece se repetir por diversas vezes em suas ruas iguais com casas iguais. O céu cinza esbranquiçado não parece ter fim, engolindo o mundo. A cada vez que ultrapasso uma nova casa velha e abandonada, peregrinando sem rumo algum, me sinto cada vez mais solitária. Começo a pensar obsessivamente sobre onde é que estou. Será que sou um fantasma vagando pelo mundo? Por que aquela moça de terno não me levou com ela?

Depois de andar mais um pouco, avisto o que parece ser um jardineiro. Ao menos, ele se veste como um. Devia estar na casa dos sessenta quando morreu, e tem um buraco pequeno e ensanguentado que lhe atravessa as têmporas. Quando me vê, sorri de maneira quase maldosa, e apoia o indicador sobre os lábios.

—Se eles te virem, vão te levar para sempre. – Sua voz é áspera e apática.

—Onde é que estamos? – Pergunto a ele, me aproximando de onde está, parado ao lado da cerca de uma das casas. Ele me olha como se eu fosse louca.

—Estamos mortos. É só isso o que resta saber... – Ele dá um passo para trás, e faz uma arminha com os dedos das mãos, e posiciona bem onde seu ferimento está, na cabeça. Ele finge apertar o gatilho imaginário, e então começa a rir descontroladamente. Me afasto da cerca e dele, deixando-o para trás.

Sinto que as horas, ou seja lá que tipo de medida de tempo esteja sendo usada aqui, estão passando por mim, me devastando. Esse lugar não é simplesmente o além.

Não é o inferno. Simplesmente sei que não é. Não é o céu, tampouco. Seria o limbo? Uma outra dimensão? Talvez, por ser quem eu sou, eu fique perdida aqui para sempre. Se isso for um limbo perdido na existência, esse é o motivo de eu ainda estar sangrando e sentindo dores mesmo depois de morta. Porque é um lugar entre o antes e o depois.

Seja lá para onde devemos ir quando morremos, não cheguei lá ainda. Mas pretendo dar um jeito nisso.

Preciso sair daqui.

XXX

Quando estou beirando a exaustão, vejo uma pequena igreja provinciana no fim da rua. Logo atrás dela, por meio da névoa, posso ver que há um cemitério. Isso me chama atenção, porque finalmente estou vendo algo diferente de casas abandonadas. Caminho até a sua fachada, onde vitrais brancos formam desenhos confusos. A porta da igreja se abre devagar, pesada e rangendo.

Um homem desce pela escada, me olhando como se me conhecesse. Está trajando um terno preto aveludado, é baixo e tem olhos escuros, mal-intencionados. A soma de todos esses traços vem com um sorriso irônico nos lábios.

—Detesto igrejas. Só há vinho, nunca whisky. – Ele usa um tom casual enquanto se aproxima. Dou alguns passos para trás, sem tirar os olhos dos dele – O confessionário é muito pequeno para que eu possa me divertir com os meus pecados e os bancos são duros demais para uma foda. Você não acha?

Seu sotaque marcado em “R’s” e “T’s” se acentua conforme ele fala, e eu começo a ter uma ideia de quem pode ser.

—Você sumiu. E veio parar...aqui. – Minha voz sai fria, tentando esconder o medo.

—Você é mais inteligente que os dois irmãos juntos, sabia disso? – Ele ergue uma sobrancelha, e se aproxima ainda mais – Vejo que a minha criatura pegou você direitinho. – Ele aponta para mim, olhando direto para o sangue com desdém – Não leve para o lado pessoal, Laverne. Precisava ser feito por alguém que abaixaria a guarda de Dean Winchester e a sua própria. E esse alguém era Sam Winchester, não que ele saiba disso, claro... – Ele dá uma risadinha desinteressada, e dou dois passos para trás, sentindo meu coração se acelerar – Mas, além dos meus motivos pessoais, não tenho nada contra você em especial, portanto... não se sinta ofendida.

O desdém em seu olhar queima em minha pele. Como ele se atreve?

—Tarde demais para me pedir isso. – Uso um tom amargurado e fecho o punho. Ele dá uma leve risada da minha atitude.

—É, tendo em vista tudo o que será feito de você, concordo plenamente. Eu também me odiaria se eu estivesse no seu lugar...mas vamos aos negócios? – Ele sorri, debochadamente com seu olhar me analisando como se eu fosse um prêmio – Gosto de jogos, Laverne, dentre eles, jogos de caça. Vamos ver por quanto tempo você consegue correr... – Crowley ergue as mãos no ar de maneira serena, e sombras parecem emergir do chão, como uma fumaça espectral que se torna densa à medida que seus olhos se tornam vermelhos. Corro em direção ao cemitério, e conforme as sombras me seguem como tentáculos, desviando das lápides consumidas por musgo.

Me vejo na orla de uma floresta, cheia de salgueiros chorosos e carvalhos, e me embrenho o mais fundo que consigo, sem conseguir enxergar nada além da névoa e dos tentáculos de sombras que tentam me capturar. Corro sem parar para respirar, sem saber por quanto tempo serei capaz de aguentar.

XXX

Ponto de vista de Sam Winchester – A alma, Vale das sombras.

Acordo desesperado em busca de ar, sentindo água entrando em meus pulmões. A visão embaçada me indica que estou dentro da água, então começo a nadar rumo a superfície. Quando consigo emergir, me agarro a beirada do que parece ser uma piscina lodosa e abandonada, tentando me recompor. Respiro com dificuldade, tossindo e cuspindo água com um sabor rançoso, e com muito frio e fraqueza, consigo sair dali. Caminho pelo quintal enevoado e então vou em direção à rua, cheia de casas iguais e abandonadas.

Eu saí da jaula?

A última coisa de que me lembro é de cair no buraco, naquele cemitério em Detroit. E então tudo ficou escuro...

Caminho por um bom tempo, até perder a noção dele. Quando estou virando mais uma esquina de mais uma rua igual a todas as outras, me deparo com uma criatura disforme, que faz o meu coração acelerar. Cambaleio para trás quando a criatura humanoide e sem pele alguma, encoberta apenas por carne e sangue viscoso parece olhar em minha direção. A criatura tem olhos arregalados que parecem querer despencar do que acredito ser o seu rosto, e um cabelo ralo está totalmente emaranhado e grudado em sua carne, quase como um colar ao redor do seu pescoço.

—Me alimente! – A criatura sussurra chorosa com uma voz fria, seus olhos leitosos me encarando. Corvos voam no fim da rua, e cantam no horizonte. – Eles se alimentaram de mim, e eu vou me alimentar de você...

Sua voz agora sai sussurrada, e antes que eu consiga respirar um pouco mais profundamente, a criatura começa a correr em minha direção. Corro dela, embora esteja fraco, molhado e com frio. Consigo avistar algo que não parecia estar ali antes, a orla de uma floresta. Corro por dentro das árvores, na tentativa de despistar o monstro que me persegue. Seus gritos guturais continuam enquanto me embrenho na floresta enevoada, o ar pesado me circundando.

Isso só pode ser o inferno. Talvez seja a própria jaula.

Está tão difícil de enxergar com essa névoa, então tento me guiar pelos sons. Sinto ter ouvido um barulho de galhos se quebrando, mas antes que eu pare de correr, é tarde demais. Me choco contra uma garota, que também estava correndo. O impacto me machuca, e tenho certeza de que a machuca muito mais. Ambos caímos no chão, hiperventilando e sem forças. Tento me recompor, e ela também. A encaro, com medo de que seja uma ameaça, mas quando finalmente enxergo o seu rosto por meio a névoa, sinto como se o mundo inteiro desabasse sobre mim.

Hazel Laverne está diante de mim, ensanguentada, assustada e...

Morta. Se está aqui, está morta.

XXX

Ponto de vista de Hazel Laverne.

Seus olhos tempestuosos me fitam com espanto. Estou suada e respirando com dificuldade, e desnorteada por tudo o que está acontecendo.

A princípio, dou um passo para trás, assustada. Não pode ser ele...

El? – Sua voz doce e seu olhar ferido e preocupado fazem meu coração se rachar no meio, ao me chamar pelo apelido que me deu quando éramos adolescentes. É ele.

É Sam.

Como você escapou da jaula?! – Não consigo pensar em outra pergunta. Não consigo conceber o fato de que, agora sim, pela primeira vez em quase cinco anos, finalmente nos encontramos.

Não seu corpo sem memórias ou consciência, não.

Mas ele de fato, sua alma.

Ele me olha, extremamente confuso. Parece não saber o que fazer consigo mesmo. Ele me fita dos pés à cabeça, parece absorver cada detalhe de mim em um misto de desespero e incredulidade.

—Como sabe da jaula?! Como sabe de... – Sua voz morre, e ele coloca as mãos na cabeça, no minuto em que seus olhos recaem sobre o meu ferimento ensanguentado. O horror em seus olhos é indescritível e faz as minhas vísceras se contorcerem – Hazel... você está morta de verdade? Ou eu estou alucinando?

—Temos que sair daqui! – Consigo dizer, tendo em vista a complexidade da situação e de suas perguntas. Ouço gritos guturais vindo em nossa direção e sei que as sombras não podem estar longe – Precisamos encontrar abrigo!

Ele fica imóvel. Seu queixo está caído, não parece conseguir assimilar nada. Então resolvo agir e seguro a sua mão e o puxo com força para que me siga, e ambos corremos por entre as árvores e a névoa, de mãos dadas.

Poderia viver mil vidas e morrer mil vezes e não conseguiria traduzir o que estou sentindo nesse momento, mas se pudesse me arriscar a tentar, diria que o simples fato de sua alma estar junto da minha nesse lugar assombroso e esquecido por deus, faz com que eu pense que tudo tenha valido a pena.

Um minuto com ele aqui, é melhor do que uma solidão eterna em um paraíso, caso houvesse um.

XXX

Corremos por tempo demais, e estamos beirando a exaustão. Os gritos guturais continuam nos seguindo, e quase começo a acreditar que os corvos no céu estão nos seguindo, espectadores que aguardam pelo pior.

 Mais a fundo na floresta, se torna ainda mais difícil se desvencilhar das árvores, com seus galhos e raízes enormes que nos circundam. Quando paro para tentar respirar, cambaleio e trombo com força em algo sólido e que está se mexendo, e quase sinto meu coração parar ao me virar para olhar no que acabo de esbarrar. É uma pessoa.

Olho apavorada ao nosso redor, e dezenas de pessoas estão penduradas em algumas das árvores, com cordas em seus pescoços, deixando em evidência seus rostos inchados e roxos, os olhos esbugalhados e suas mãos buscando no ar por algo que não conseguem alcançar, enquanto suas pernas se debatem violentamente.

Se caísse em um dos meus pesadelos, cairia bem aqui. O gemido de dor e arrependimento dessas almas é tão alto que chega a zumbir em meus ouvidos. O ranger das cordas é tão alto enquanto se debatem que fico zonza.

—Por aqui! – Sam grita assim que nota o meu choque, me puxando por entre o que parece ser uma trilha de carvalhos enormes e assustadores. Quão mais fundo entramos nesse caminho, mais escuro e frio fica, e mais longínquos ficam os gritos.

Paramos por um momento para respirar, nossos peitos subindo e descendo sem parar, o suor me escorrendo o corpo inteiro.

—Crowley está...aqui...- As palavras saem com dificuldade, me apoiando completamente bamba em um dos carvalhos. Vejo o seu espanto e sua confusão, e decido tentar resumir o que sei que está se passando em sua mente o mais rápido que consigo – Eu sei sobre tudo, Sam. Estive com Dean esse tempo todo, a procura da sua alma. Eu sei sobre os selos, sobre o apocalipse, e todas as coisas que aconteceram nos últimos cinco anos... todas elas. E Crowley foi quem me... matou. – Omito a parte principal, porque não vejo como contar para ele sobre o fato de que seu corpo foi usado para isso e para outras coisas enquanto ele esteve trancafiado seja oportuno agora.

E não deixa de ser verdade, Crowley é quem eu responsabilizo por minha morte, verdadeiramente.

Sam Winchester absorve as minhas palavras com dificuldade, como se cada informação equivalesse a um tiro em seu peito.

—Eu... eu não entendo! Você estava em Nova York, você... – Ele esfrega a testa, e parece inquieto, como se fosse explodir a qualquer momento – Hazel...você estava seguraComo tudo isso aconteceu? Como assim você e Dean estiveram por aí?! Por que Crowley te matou?! Meu deus, eu preciso de um minuto...

—Não temos um minuto, Sam! – Meu peito se contorce, e eu me desencosto da árvore, caminhando em sua direção. Esperei tanto pelo momento em que poderia finalmente falar com ele, dizer tudo o que eu sempre quis dizer, ouvir sua versão dos fatos e esclarecer as coisas que ficaram sem resposta ao longo do tempo... e nem na morte parecemos poder ter essa oportunidade. Tudo isso soa irreal e injusto – As sombras de Crowley estão atrás de nós. Não tenho certeza se é possível morrer de novo, mas...

—Onde é que nós estamos, para começo de conversa?! – Ele olha ao redor, uma careta de confusão no rosto, os cabelos molhados grudados no rosto – Definitivamente não é o céu, e agora que te encontrei aqui, garanto que também não é o inferno. Então...

—Como me encontrar aqui faz você ter certeza de que não está no inferno, Sam? – Semicerro meus olhos, confusa com sua declaração. Meio ao medo e a exaustão, vejo seus olhos se acenderem, e um pequeno sorriso se forma no canto da sua boca. Se fosse possível sentir algum tipo de calor nesse lugar, eu o estaria sentindo agora.

—Alguém como você jamais pertenceria ao inferno, El. – Sam afirma com doçura nas palavras e nos olhos – E eu sonhei em te reencontrar tantas vezes que nem consigo explicar, El. Então...- Sam respira fundo e se aproxima de mim, o olhar preso no meu – Tenho certeza de que o inferno não me recompensaria com um reencontro com você.

Fico em silêncio, assim como ele, sentindo o peso das suas palavras. Se ele soubesse o que eu sou de verdade, acreditaria nisso? Que eu “jamais pertenceria ao inferno”? É um acalento que pense assim, mas também uma angústia. Porque acho que está equivocado. Eu sinto tanta, tanta culpa. E eu nem sei por quê. Parece até que ela nasceu comigo.

Mas sobre algo ele está correto. Se estamos diante um do outro, isso jamais poderia ser o inferno.

—Está ouvindo isso?! – Estou perdida nos seus olhos quando Sam diz isso, ofegante e com o olhar transtornado e atento ao nosso redor. A princípio não ouço nada, mas então, com mais atenção, escuto.

Não muito ao longe, há o som de um trem.

Nos entreolhamos e concordamos silenciosamente a seguir o barulho.

XXX

Corremos por aproximadamente mais dez minutos, e finalmente encontramos uma clareira meio a floresta, com trilhos de ferro que parecem ir em direção a imensidão. Diversas pedrinhas brancas cobrem a grama morta, ao redor dos trilhos. Ao redor dessa paisagem, nós avistamos diversas pessoas, todas paradas e olhando para lugar nenhum.

Algumas estão mutiladas, outras, são apenas idosas. Mas todas parecem alheias.

—Acha que esse trem nos leva a algum lugar...melhor? – Olho para ele, incerta sobre o que vem a seguir. Sam abaixa o rosto para me encarar, seus olhos de pupilas dilatadas incertos e confusos.

—Não temos opção melhor. – Ele começa a dizer, e se vira para mim. Desde que o reencontrei aqui, nessas circunstâncias, tudo pareceu irreal demais. Não tive tempo para absorver esse reencontro, e nem ele também. Ao redor de seus olhos sua pele está avermelhada, denunciando sua exaustão. Será que ele se lembra do inferno? — Hazel, eu preciso te dizer algumas coisas, coisas que não tive oportunidade antes...

O som do trem se aproxima, e sinto o meu peito queimar. Não posso fazer isso agora, não consigo.

—Sam...não. Quando subirmos nesse trem, seja lá para onde formos...então lá você me diz, ok? – Suas sobrancelhas se arqueiam para cima, o deixando com o aspecto de cão abandonado. A dor está clara em seus olhos.

—Por favor. Eu preciso...- Faço que não com a cabeça, o interrompendo.

—Não pode me dizer nada agora, ou vou sentir que estamos nos despedindo. Se estamos mesmo mortos e se esse trem representa uma chance mínima de irmos rumo a qualquer local de descanso eterno que seja, então preciso acreditar que você vai estar do outro lado, comigo. E que terá tempo de dizer o que quiser. Todo o tempo do mundo. Preciso acreditar nisso agora mais do que nunca, Sam. Por favor.

Olho o mais fundo em seus olhos que consigo. Tento transmitir a ele o que estou sentindo. Ele assente, ainda ferido, mas compreendendo o peso das minhas palavras.

Parece que um milhão de anos se passou entre nós, e ao mesmo tempo, parece que nunca estivemos separados. É uma sensação muito, muito estranha.

O trem parece se aproximar, e finalmente conseguimos avistá-lo. As pessoas ao nosso redor parecem alheias a isso, como se não o enxergassem e tão pouco o ouvissem. Arregalo os olhos quando vejo a escuridão dos tentáculos se aproximando, e coloco a mão no braço dele, alertando-o.

—Vamos, precisamos ir! – Ele assente, em estado de alerta. Começamos a correr, assim que os vagões se tornam mais rápidos e estamos perto o suficiente para conseguir tentar pular. Tudo é alto demais...o barulho do trem, dos corvos, da minha mente barulhenta.

E então, algo acontece.

Algo que tenho certeza de que muda tudo. Cães gigantescos e monstruosos emergem de dentro da orla da floresta, se aproximando da clareira como uma alcateia maldita. Arregalo os olhos ao ver suas presas, e o quão rápido esses monstros conseguem correr. Seus pelos são escuros e malhados, com feridas enormes por todo o corpo. Os olhos brilham em escarlate, e a saliva brilha em seus lábios caninos.

—Cães do inferno! - Sam exclama para si mesmo, com incredulidade – Como podem...?

Antes que ele termine sua frase, Crowley sai das sombras da orla da floresta, as mãos levemente erguidas no ar enquanto os tentáculos de sombras parecem dominar o mundo. Estamos cercados. Meu peito sobe e desce enquanto ofego, os olhos vasculhando freneticamente por uma saída. Se não pularmos logo no trem, iremos perdê-lo.

Sam apoia a mão no meu ombro, me olhando pesaroso. Crowley se aproxima cada vez mais, assim como suas sombras e suas bestas. As pessoas, almas penadas alheias a tudo, permanecem desatentas como se não fizessem parte deste lugar. Acabou.

A escuridão das sombras se acentua conforme os tentáculos vão deslizando por toda a parte, e os cães nos mostram as presas, bloqueando qualquer escape de volta para a orla. Sam e eu nos entreolhamos, o pavor nos encobrindo. Ele se coloca a minha frente, o braço estendido a frente de seu corpo, como se pudesse parar o mau que nos consumirá.

—Eu estou com você! – Ele grita, meio ao barulho ensurdecedor do trem e dos corvos que gritam, caindo mortos quando voam de encontro a algum tentáculo sombrio. Posso ver Crowley nos observando ao longe, com um sorriso no rosto.

Ele venceu, e sabe disso.

Apoio a testa nas costas de Sam, fechando os olhos. Eu devia ter o deixado dizer o que queria dizer, agora...é tarde demais.

Quando um dos tentáculos de fumaça negra se estica rastejante, quase nos tocando, sinto um calor sufocante nos rodeando. As sombras chiam com estática, como se fossem feitas de energia pura. Sinto meu corpo inteiro tremendo, e me preparo para o pior.

Não sei o que está prestes a nos acontecer, tendo em vista que pensei que a morte era o fim da linha. Aparentemente, não. Decido me colocar ao lado de Sam, e encaro as sombras de frente, mesmo que esteja tremendo de pavor de ser consumida por elas. Vou encarar o fim nos olhos, como sempre fiz.

Um barulho estrondoso acontece, metálico e estridente, como se mil agulhas de aço caíssem do céu. Tampo os ouvidos com uma expressão de dor, e vejo Sam fazer o mesmo. As sombras começam a se contorcer e se afastar, como cobras se retraindo e se contorcendo. O som assombroso aumenta, fazendo minhas orelhas sangrarem.

Não! – Crowley grita, quando vê seus tentáculos perdendo as forças, assim como seus cães que correm em direção a floresta, chorando e gritando. Vejo tudo se embaçando, e cambaleio. Me apoio em Sam, que parece estar mais firme do que eu. E o que vejo a seguir é indescritível.

Dezenas de ceifadores trajados devidamente em seus ternos surgem de todas as partes, e eu percebo que é do poder que irradia deles que o som ensurdecedor sai. Eles estendem suas mãos no ar, fazendo todos os recursos de Crowley recuarem.

Os olhos do demônio se acendem, vermelhos. Ele está vendo tudo em vermelho agora, tenho certeza. Ele grita enquanto faz uma força descomunal, tentando encarar o poder que irradia das mãos dos ceifadores, sem sucesso. Um desses servos da morte se vira para trás, uma gota de suor escorrendo em sua testa. Ele nos olha diretamente nos olhos e grita, meio ao barulho:

—O cavaleiro da morte mandou lembranças! – Sua voz é imponente e clara – Vão logo, ou não terão outra chance!

Sam e eu nos entreolhamos, zonzos por tanta adrenalina.

Meu coração parece parar. Cavaleiro da morte?! Mas não há espaço para perguntas.

Precisamos correr.

Avistamos um vagão semiaberto, e é a nossa chance. Olho para trás uma última vez, sabendo que se não conseguirmos, será o nosso fim.

—Agora! – Sua voz rouca grita, e saltamos de uma vez para o desconhecido.

Fecho os olhos, com um medo dentro de mim. O medo de não o encontrar do outro lado.

XXX

Ponto de vista de Hazel Laverne – Casa do Bobby, Kansas.

Quando me sinto despertar, parece que estou me afogando. A primeira pessoa que vejo é Dean, sentado todo torto em uma cadeira ao lado da minha cama, os olhos abertos com dificuldade graças ao cansaço e o rosto apoiado nos braços. Ele se sobressalta quando me sento na cama, e sequer tenho tempo de dizer uma palavra sequer. Dean me envolve nos seus braços, em um abraço desesperado.

Sinto o seu corpo tremendo um pouco, e o abraço de volta.

—Eu estou...viva? – Pergunto, completamente confusa. Tudo aquilo não passou de um sonho? Abaixo os olhos para a minha barriga, e vejo um curativo onde fui esfaqueada. A dor é enlouquecedora, mas estou entorpecida por tantas informações e descargas emocionais.

—Está, mas não esteve durante 24 horas, Lavie. – A voz de Jesse se faz presente, e Dean me solta, se levantando em estado agitado. Olho para Turner, confusa, e uma lágrima escorre do seu olho direito. Está visivelmente abalado— Será que eu também posso abraçar a minha irmã?

Me lembro de que, antes de tudo acontecer, fui ríspida com ele. A morte te faz refletir sobre certas coisas. Respiro fundo, e me sinto maravilhada pelo ar que entra em meus pulmões, leve e seco. Puro. Tudo ao meu redor está vivo.

Puxo Jesse para um abraço, e enterro o rosto em seu ombro, fechando os olhos.

—Eu sabia que você ia voltar, mas mesmo assim... - Sua voz é baixa e frágil, e suas mãos acariciam o topo da minha cabeça ternamente – Foi horrível, Lavie. Te ver assim foi horrível. Nunca mais faça isso, nunca mais... – Jesse beija o topo da minha testa, e vejo que está com a voz embargada e os olhos molhados. Seus dedos compridos e finos tremem ao segurar o meu rosto.

Queria tanto ter minhas lembranças de volta. Queria entender a profundidade dos sentimentos dele por mim.

Respiro fundo, sentindo uma dor aguda, e  após alguns segundos, me desvencilho dele, e me levanto com dificuldade.

—Ei ei, vai com calma aí, senhorita “Noite dos mortos vivos” ... – Dean Winchester usa seu tom brincalhão, mas está visivelmente abalado – Estava morta a literalmente minutos atrás. Talvez deva se sentar um pouco, ok?

Assinto, concordando. Mas então, me lembro de tudo o que aconteceu. Sam.

—Dean, o Sam! – Minha voz sai esganiçada, estou apavorada. Será que ele ficou para trás? Meu coração soca os meus ossos com esse pensamento - Ele... ele estava comigo, do outro lado! Ele saiu da jaula! Eu preciso saber se ele... – Começo a me desesperar, e antes que Dean abra a boca para falar qualquer coisa, a porta é escancarada por Bobby e Castiel.

Singer tem os olhos radiantes, como se finalmente tivesse saboreado uma vitória depois de tantas derrotas.

—Ele voltou. – Bobby diz isso com a voz emocionada, olhando de Dean para mim – E é ele mesmo dessa vez.

Sinto uma vertigem, porque a ficha começa a cair. Durante o que passei naquele lugar, tudo parecia um pesadelo horrível e realista, mas ainda assim... Reencontrá-lo em uma realidade paralela como um mundo dos mortos ou coisa do tipo não é a mesma coisa que revê-lo em vida. Esperei anos por isso, e agora me sinto paralisada.

Dean percebe a minha reação, e Castiel caminha até mim.

—Eu vou curar os ferimentos da Hazel, vocês podem ir lá para baixo... – O anjo me disfere seu olhar gentil e azul, me fitando com uma aparente compaixão. Dean e Bobby se entreolham, e Jesse continua a me encarar. Devo estar pálida e claramente transtornada – Eu e ela encontraremos vocês em alguns minutos, certo?

Dean me olha mais uma vez, preocupado antes de sair pela porta acompanhado de Jesse e Bobby.

Castiel caminha em uma linha reta até mim, e toca com o indicador na minha testa. Em questão de segundos, sinto a ferida em meu estômago se fechando, e os pontos do corte da perna cicatrizando, como se semanas tivessem passado. Com os dedos trêmulos, retiro o curativo ensanguentado de mim, e vejo uma pequena cicatriz triangular onde a faca um dia esteve entranhada em mim. Sorrio de maneira fraca para Castiel.

—Obrigada, Cas. – Abaixo o rosto e me sento na cama, completamente desolada.

Não sei o que fazer. Não faço ideia de como agir ao redor de Sam.

—Não há de quê. O sistema de saúde da terra é uma piada. – Castiel usa um tom pensativo, e então ele caminha até a porta. Antes de sair por ela, ele me disfere um sorriso simpático, ao qual eu retribuo com dificuldade.

XXX

Decido tomar um banho quente, removendo todo o sangue seco e o suor. Fico debaixo do chuveiro fumegante o máximo que consigo, e me esfrego com agressividade, como se pudesse lavar de mim aquele mundo sombrio em que estive.

E que me marcou para sempre. Não esquecerei nenhum dos rostos.

Especialmente o da mulher que abracei.

Me recuso a esquecer, como um testamento de que tudo aquilo foi real. E de que aquelas pessoas atormentadas e perdidas importam.

XXX

Ponto de vista de Sam Winchester – Casa do Bobby, Kansas.

A primeira pessoa que vejo é Bobby Singer.

Ele parece estar vendo mais que um fantasma, parece estar vendo uma assombração. Me emociono ao colocar os olhos nele, e ao sentir que estou no mundo dos vivos outra vez.

O trem nos conduziu de volta a vida. Como isso é possível?

Me desespero por um momento quando me vejo amarrado na maca do bunker. Imediatamente tenho a sensação sombria de me lembrar de quando fui preso aqui para me desintoxicar de sangue de demônio. Foi um dos períodos mais sombrios de toda a minha vida.

—Calma aí, brutamontes! – Bobby me acalma quando me rebato na maca, e vejo Castiel ao seu lado, ajudando-o a me soltar das amarras. Ele tem um sorriso sereno no rosto.

—Bem-vindo de volta, Sam. – A voz de Castiel é calma, e no minuto que me vejo livre das amarras, me apresso a abraçar os dois com força. Fecho os olhos por um momento, apreciando o calor humano que pareço não sentir há...

—Por quanto tempo estive fora?! – Meu coração se acelera quando eu me levanto e cambaleio um pouco para frente.

—Mais de um ano. – Bobby ainda está me olhando como se eu fosse desaparecer – Tem muitas perguntas Sam, tenho certeza disso, filho. Mas vamos com calma, está bem?

Assinto, afobado por tudo o que está acontecendo.

—Dean? Ele está bem?! – Coloco a mão no ombro de Bobby, preocupado e ansioso.

—O idiota do seu irmão está lá em cima. Vou buscá-lo... - No minuto em que ele se vira em direção a porta, seguro o seu braço. Bobby me encara e eu indago com o olhar preocupado.

Meu coração se comprime com um sentimento de urgência.

—Bobby, eu encontrei uma pessoa importante para mim, lá no... lugar onde eu estava... – Engulo em seco por me lembrar do lugar onde estávamos. Mas, estou desesperado por saber se foi tudo verdadeiro e não a minha mente me pregando peças. Isso seria tão cruel – Ela...?

—Se acalme, Sam. – Bobby me olha meio solene – Essa pessoa importante para você... está lá em cima.

Uma corrente elétrica me percorre e eu me sinto dormente por um momento. Foi real. Foi tudo real.

XXX

Subo para a sala de estar, onde estou de pé e inquieto, embora esteja fraco e dolorido. Percebo uma mordida ensanguentada no meu braço, que não havia percebido antes. Quem é que fez isso?

E se eu voltei a vida... de onde é que veio o meu corpo?

Estou roendo as unhas quando vejo um homem que parece ter em torno da minha idade descendo as escadas, cujo nunca vi na vida. Estranho sua presença, mas antes que eu consiga fazer perguntas, vejo Dean logo atrás dele, usando a estúpida jaqueta de John Winchester. Assim que nosso olhar se cruza, ficamos em silêncio.

Por um bom tempo.

Eu me lembro dos meus últimos momentos, antes de cair na jaula. Dos olhos de Dean enquanto Lúcifer usava as minhas mãos para espancá-lo. A visão do soldadinho de brinquedo preso dentro do carro, reluzindo com o sol. A dor que senti em saber que jamais o veria de novo.

Dean vem em minha direção, seus olhos enormes e sinceros repletos de lágrimas e coisas não ditas, e eu o abraço o mais forte que consigo.

Afundo o rosto em seu ombro, como costumava fazer quando era pequeno e estava com medo do escuro.

Sinto suas lágrimas silenciosas molhando o meu ombro, e eu mesmo deixo minhas lágrimas rolarem sem censura alguma.

—Dean, me diga que você não fez nenhuma besteira para me trazer de volta...- Me solto do seu abraço e o seguro pelos ombros, buscando a verdade em seu olhar.

—Não, Sammy. A história é... longa. Tem certeza de que não quer se recuperar primeiro? Quer dizer, você estava morto a até dois segundos atrás...

Bobby entra no ambiente e nos observa, emotivo. Nossa família está reunida de novo.

Faço que não com a cabeça, desesperado pela verdade. Não faço ideia do que esteja acontecendo.

Preciso saber de tudo, por favor. – Peço, rouco e fraco enquanto me sento no sofá atrás de mim. Olho para todos os presentes na sala – E preciso saber agora.

Dean dá um longo suspiro, e troca um olhar pesaroso com Bobby, como se fizessem um acordo silencioso. Castiel abaixa a cabeça e se encosta no batente, e o homem estranho permanece em silêncio, me fitando de modo analítico. Busco o ambiente com os olhos, não consigo me conter.

Quero tanto vê-la.

—Ela está se recuperando... – Castiel parece perceber a minha inquietação, buscando por ela. Assinto, nervosamente. Minha perna não para de tremer.

—Bom, Sammy... muitas coisas aconteceram desde aquele dia em Detroit... – Meu irmão se senta ao meu lado, com um olhar obstinado, tentando me transmitir forças para o que estou prestes a ouvir.

Mas nada no mundo poderia ter me preparado.

Nada.

XXX

Uma hora inteira se passou, talvez mais. Eu fiquei em silêncio, apenas ouvindo.

A cada segundo, as coisas se tornavam mais absurdas.

Desde o início, Hazel esteve em perigo. Estive durante mais de um ano na jaula de Lúcifer, e juntos eles descobriram que Hazel é metade humana, metade demônio. Nesse momento, fechei meus olhos e tentei imaginar como ela se sentiu ao descobrir que para além de todas as atrocidades que Harvey Talbot fez a ela, um demônio também é seu pai.

Meu coração se quebra só de imaginar o seu se partindo.

Crowley esteve tentando capturá-la durante todo esse tempo, ameaçando a lei natural das coisas o suficiente para o cavaleiro da morte intervir e decidir me devolver a terra. Tudo se mistura na minha cabeça, de maneira confusa.

Céu, inferno e caçadores estão atrás dela. Isso faz a minha cabeça rodopiar. O meu pior medo se tornou realidade.

Ela está inserida no mundo horroroso ao qual achei que ela havia escapado, anos atrás, com o nosso rompimento.

Escuto Dean explicando como ele treinou a Hazel da melhor forma possível, e de como cuidou dela durante todo esse tempo. Depois de um tempo, durante a explicação, as coisas começam a não fazer sentido em minha mente.

Como Crowley a matou?!  Como ele conseguiu vir até aqui?! – Questiono, me levantando exaltado do sofá, sentindo minhas veias queimando só de imaginar aquele demônio nojento a machucando – Se ele colocou as mãos nela, por que precisou persegui-la no mundo pós morte? Nada disso faz sentido...

Dean, Bobby e Castiel se entreolham. Franzo o cenho, confuso.

—Tem algo que vocês estão escondendo de mim... – Constato. Os olhos de todos não mentem, posso ver na tensão de cada um que há uma peça nisso tudo que está de fora – Eu preciso da verdade completa, porque me escutem bem...- Me levanto e sinto uma ira percorrendo todo o meu corpo, só de me lembrar do sangue jorrando dela, e de tudo o que ela passou no vale das sombras. Isso não vai ficar assim. – Eu vou matar Crowley – Digo, entredentes e com o nariz franzido de ódio – Eu vou me vingar dele por ter colocado as mãos nela...

—Vai com calma, Cowboy... – Quem diz isso é o homem que não conheço e que esteve quieto durante toda essa conversa. Algo nele faz com que sua voz soe irritante para mim assim que ele abre a boca. O encaro com o queixo travado e o olhar sério. Ele não se intimida, mesmo que seja bem mais baixo do que eu. Continua me encarando com prepotência – Você não é o único que quer se vingar dele pelo que ele faz com a Lavie. Mas precisa se recuperar primeiro, ou não vamos a lugar nenhum.

Meu sangue esquenta. Lavie? Quem diabos é esse infeliz para dar um apelidinho para ela?

Um filme se passa na minha cabeça. Não tenho o direito de reagir assim.

Respiro fundo e tento me conter. Fico em silêncio por um tempo, absorvendo o que acabo de ouvir.

Lavie. Lavie. Lavie.

—Eu preciso de um banho. – Digo, transtornado e perturbado, pensando se esse idiota não é o namorado dela ou coisa do tipo. Só pode ser — Depois eu discuto isso, com o meu irmão. Não com você. Eu nem sei quem é você! E francamente, não me importo... – Uso o máximo de desprezo na voz que consigo reunir, e trombo nele de propósito ao sair dali.

Não tenho esse direito, não tenho. Faz quase cinco anos.

Eu sei que as pessoas deviam superar essas coisas. Mas a maneira como nossa história terminou, sem um adeus...

Sem um ponto final.

Chacoalho a cabeça e me tranco no quarto, tentando assimilar tudo. O mais importante é me certificar da segurança dela, e me vingar de Crowley por ter colocado as mãos nela.

Anos atrás, tomei a decisão mais difícil de minha vida, quando entendi que ela nunca estaria segura comigo. O incêndio que Azazel provocou em outubro de 2000 quase a matou, por minha culpa. Como meu pai havia previsto...

Quando tentei visitá-la no hospital, por diversas vezes, sua avó me barrou. Eu me senti impotente. Queria vê-la, abraçá-la, e pedir perdão por ela ter me conhecido. Se eu não tivesse nascido, nada daquilo teria acontecido a ela. Mas foi quando sua avó me disse as seguintes palavras, que meu coração se dilacerou e eu resolvi a deixar em paz:

“Ela não quer ver você, Sam. Ela quer ficar em paz, e ela disse que merece ser feliz e viver uma vida normal. Vá embora, Winchester. Ela implorou para nunca mais te ver de novo”

Aquilo me destruiu. Acabou comigo. Mas eu não tive escolha. Jamais a forçaria a me ver ou falar comigo se não era isso o que ela queria.

Ela sempre mereceu ser feliz e ter uma vida normal. Eu nunca fui bom o bastante para ela, e sabia disso. Mas assim como Ícaro, voei perto demais do sol.

Queria apenas um adeus, mas resolvi deixá-la em paz como ela havia pedido. Recolhi os cacos do meu coração e me arrastei por aí, me obrigando a continuar.

E agora, sabendo de tudo o que eu sei...

Me enfio debaixo do chuveiro, e deixo as lágrimas caírem. Estou tão confuso.

Tão confuso.

Ela não quis me ouvir, nem mesmo no vale das sombras. E não quis me ver agora, e na verdade nem sei se vai querer me ver eventualmente. Mas eu pude jurar, quando nos encontramos naquele lugar, que em seu olhar...

Que ela sentiu a minha falta, como eu senti a dela.

Talvez seja a minha mente perturbada.

Me visto, me agasalho e me sento na cama, a cabeça apoiada em minhas mãos. Não faço ideia do que fazer e por onde começar.

Só sei que, de agora em diante, ninguém toca nela.


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Notas finais do capítulo

Quem odeia Antonella Laverne? Eeeeeu!
Quem foi que criou a mocréia? Euuu!

Gente, JURO. Quando eles finalmente conversarem e descobrirem que a véia mentiu PARA O DOIS. JUROOOOO. JURO.

Ai. Dói.

Vocês curtiram o vale das sombras? Me inspirei MUITO na vibe de Silent Hill. Não tenho a mínima experiência com terror, e estou tentando desenvolver. Preciso ler mais obras do gênero para me aprimorar, mas foi bem desafiador escrever o local e as pessoas e criaturas que imaginei lá. Daqui uns anos quando eu reler a fic provavelmente vou me sentir malzona por não ter entregue o queria maaaas tomara que eu veja evolução, né?

De qualquer forma, tentei viu.

Sobre o Sam surtado sem saber que o Jesse é o irmão dela: Amo homem sofrendo, já falei isso antes né? Sei lá. É um charme eles se corroendo, vocês não acham não?

Enfim. Esperem só até ele descobrir do Deanzinho. Ai ai eu amo ser fanfiqueira.


Comentem, fantasminhas. Ou vocês vão sonhar com o vale das sombras, muahahaha. Mentirinha.


XOXO



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