O Homem que Perdeu a Alma escrita por Willow Oak Acanthus


Capítulo 12
Capítulo X - Saint. Louis Cemetery


Notas iniciais do capítulo

Notas iniciais: Esse capítulo foi doloroso de escrever.
Nada, REPITO, nada me machuca mais do que ferir meus personagens nas histórias. Pode parecer papinho da minha parte, mas eu realmente vou sendo guiada por eles na minha mente, e cabe a mim transcrever o que acontece.

É horrível. Mas faz parte do ofício.

PS: Eu realmente tentei descrever New Orleans como acho que a cidade merece ser descrita. Eu sou absurdamente apaixonada pela estética/história/cultura de New Orleans, e sonho em um dia pisar lá.
Há algumas referências a lugares reais, obviamente realocados para fazer sentido na fic.

Boa leitura ♥



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Ponto de vista de Hazel Laverne.

Não sou humana, não sou humana, não sou humana, não sou humana, não sou humana, não sou humana, não sou humana, não sou humana...

Não dormi durante a noite inteira, repetindo isso mentalmente de maneira incessante.

Todo mundo cresce tendo medo de monstros. Faz parte da natureza humana. O que há no escuro? O que há lá fora? É isso o que nos assombra. Vem com o nosso DNA, impregna as novas veias.

É o bem e o mau, o natural e o sobrenatural.

Eu sou as duas coisas. O que é que eu faço agora?

Passei a vida inteira odiando as coisas que o meu pai fez comigo.

Toda a violência, as drogas, a quebra de confiança. O modo como pintava a minha pele de roxo com torções e socos e tapas, fazendo eu acreditar que merecia tudo aquilo. Me tornei uma casca que se treme e se quebra durante a noite, sempre esperando pelo pior. Quem eu poderia ser se não fosse por ele? Quão inteira eu poderia ter sido?

 Isso tudo já seria ruim o suficiente. Mas com o que sei agora? Não restou nada. Nenhuma lembrança remotamente boa com ele que eu tentava nutrir em minha mente. Agora que sei os fatos mais obscuros sobre mim... sinto que sou apenas um meio para um fim, uma peça de xadrez usada para um interesse maior, uma barganha.

Minha alma é uma barganha.

A esse ponto da minha vida, não sei mais como reagir apropriadamente as coisas que são jogadas em mim. São verdades feias demais, que me deixam dormente.

A essa altura, não sou mais uma pessoa. Sou uma casa mau assombrada cheia de fantasmas e maus presságios. Vazia e sombria.

Respiro fundo e fecho os olhos por um momento. Estou enxarcada de medo, e isso só me leva a um caminho, que é o de enfrentar a tudo isso com coragem. A coragem é uma virtude que só pode ser alcançada com o medo, e não na ausência dele. Eu vou ser forte justamente por me sentir vulnerável, e se eu me tornei mesmo uma casa mau assombrada, então vou concertar as rachaduras e vou abrir as todas janelas. Vou deixar a luz entrar. Eu vou me salvar.

Eu vou recuperar tudo o que me foi tirado, porque nem toda a tristeza e desolação podem mascarar o norte que me guia tão ardentemente agora. A revolta.

Reabro os olhos e penso em Dean, e em como está tentando agir como se estivesse tudo bem, para segurar as pontas. Honestamente, nós dois temos tentado ficar fortes um pelo outro. Meu coração ficou pequeno ontem, enquanto ele se declarava para mim...Seus olhos marejados e sobrecarregados, a sinceridade embebida em suas palavras.

Fico imaginando o que Sam diria se soubesse...

Talvez, absolutamente nada. Mesmo que ele tenha sua alma de volta um dia...quem me garante que ele se importaria? As vezes eu tenho vontade de exorcizar ele da minha mente. Da minha alma.

Estou tomando um banho quente, e começo a dedilhar a seguinte frase no vapor do box:

Eu não o amo mais”. Escrevo essas palavras algumas dezenas de vezes, e vejo cada letra desaparecer depois de um tempo.

Finja até que você consiga.

XXX

Ponto de vista de Dean Winchester.

Estou carregando o carro com nossas coisas, e sinto o vento ficando mais violento. O tempo abafado e sufocante, tão característico de Louisiana, pode ser incômodo para a maioria das pessoas, mas não para mim. O cheiro agridoce dos salgueiros e do pântano tem um apelo boêmio e misterioso para mim. Olho para o céu e percebo as nuvens carregadas e escuras cobrindo o sol como um manto, o mormaço se dissolvendo no ar.

Vem tempestade aí.

Minha camisa de flanela verde esvoaça com o vento, e um arrepio me percorre. Hazel termina de fazer o check out da pousada, e vem ao meu encontro. Sorrio levemente ao vê-la.

Os cabelos soltos ficam revoltos pela ventania, e ela usa uma calça preta colada no corpo. Está levemente mais alta graças a uma bota de cano curto marrom que já percebi que ela escolhe como opção sempre que está tentando se sentir mais confiante. Eu presto atenção nos pequenos detalhes, sempre. Ela se encolhe em seu cardigã marrom, o nariz avermelhado pelo frio.

—Você não dormiu nada, não é? – Questiono, e ela boceja antes de me responder.

—O que me denunciou? – Ela tenta ajeitar os cabelos, claramente incomodada com o vento em seu rosto, e eu aponto para os olhos dela.

—Está com olheiras enormes. – Me encosto no Impala e cruzo os braços, dando a ela um olhar provocador.

—Obrigada pelo elogio! – Sua voz é irônica, e eu solto um riso.

—Eu estou contente, assim posso tentar fingir que você não é tão linda assim... – Coloco a mão no queixo e faço uma expressão séria, examinando-a de cima a baixo, e então chacoalho a cabeça em negativa, frustrado. Hazel não ficaria feia nem se ela tentasse— É, não funcionou. Continua linda mesmo assim. Que droga, ein?!

Hazel sorri enquanto olha para baixo timidamente. Algumas pessoas passam por nós, conversando animadamente sobre alguma atração turística. Não muito longe da gente, meio a lojinhas místicas e boticários misteriosos, há um grupo de músicos de rua que tocam um dos melhores blues que já ouvi em toda a minha vida.

—Dean...você está flertando. – Ela me recrimina levemente com o olhar, um vinco se formando em sua testa - Isso não é um bom jeito de...- Sua voz sai toda preocupada, mas eu a interrompo:

—De te superar?! Eu sei, mas se vou sofrer, vou sofrer do meu jeito. – Dou de ombros e sorrio – Além do mais, se estiver irritada o suficiente com as minhas cantadas baratas, pode se esquecer dos seus problemas por um ou dois minutinhos.

Seu olhar se torna indecifrável. Tudo sobre ela é meio indecifrável para mim.

Uma garoa fina começa a cair, e alguns raios brilham e cortam o céu ao longe.

—Precisamos ir...ou ficaremos presos em New Orleans. Só temos que passar em um posto de gasolina, antes de cairmos na estrada. – Advirto após um pequeno silêncio, passando a mão pelo cabelo.

Ela aquiesce, entrando no carro junto comigo. Ao deixarmos o quarteirão francês e o blues para trás, tenho uma sensação estranha.

A sensação de que algo ruim está a espreita.

XXX

As ruas de New Orleans são confusas. São tantos prédios históricos com arabescos de aço em suas sacadas, com cores chamativas e artistas de rua tocando jazz ou blues a cada esquina, que isso faz com que a estrutura da cidade se torne um labirinto, a cada curva, um eterno deja vu.

—Eu moraria aqui. – A voz cadenciada de Hazel soa sonhadora, enquanto está encostada no vidro embaçado pelo frio e pela garoa, observando cada detalhe da cidade atentamente.

—Por quê? – Questiono, virando na Bourbon Avenue.

—Caso eu fosse uma pessoa normal com uma vida normal...- Ela começa a explicar, o olhar fascinado pela paisagem – Poderia escrever diversas matérias sobre esse lugar. Onde quer que você olhe, há história. Além do mais, sou filha de uma imigrante italiana, e não me sinto em casa em lugar nenhum. Sou norte americana demais para ser italiana e italiana demais para ser norte americana...- Ela dá de ombros – O que quero dizer é que New Orleans é uma cidade portuária...já foi de franceses, espanhóis...e tem uma forte influência da cultura africana. Aqui, pessoas que não pertencem a lugar nenhum, se sentem pertencentes.

—Você é uma nerd, sabia?  – Provoco, e ela revira os olhos. – Eu não moraria aqui, tem buracos demais nas ruas. Isso não é bom para a baby.

Ela dá uma risada curta.

Finalmente chegamos até um posto de gasolina, levemente afastado do centro da cidade. Ao redor dele há ruas vazias, com poucas casas antigas com placas de “vende-se” espalhadas. Toda a estética na cidade grita algo que não se encaixa, como um mistério. O céu nublado contrasta com o calor que irradia do chão e dos pântanos. As pessoas todas vestidas de preto entram em conflito com os desfiles de carnaval com máscaras cheias de cores. Os portões com arabescos e a arquitetura colonial tão estrangeira não se encaixa com as casas de madeira branca tão descascadas e... tão americanas. Os pagãos dançam com os cristãos e tudo vira uma música apenas. Olho ao nosso redor e percebo que logo a frente, uma propriedade extensa com portões enormes se estende por mais de um quarteirão.

Saint Louis Cemetery”, leio a placa de aço corroído acima do portão de entrada do lugar.

—É um dos cemitérios mais famosos do mundo...- Hazel me percebe encarando o lugar e explica, descendo do carro e parando ao meu lado. Assinto.

—Não sou fã de cemitérios...- Um arrepio me percorre enquanto vou em direção a bomba de gasolina - Caso você venha a caçar alguns fantasmas algum dia, vai me entender.

—Eu imagino. – Ela constata, se encolhendo em seu cardigan. O vento parece piorar a cada segundo que passa, a garoa se intensificando. Termino de encher o tanque, e vou em direção a lojinha de conveniência do posto para pagar, Hazel anda ao meu lado, meio cabisbaixa.

Sei que está destruída por dentro, pelas coisas que descobriu ontem sobre si mesma. Dou um suspiro de preocupação...Talvez eu consiga animá-la na estrada até o Kansas. Posso tentar fazer algo bom por ela, como deixar que escute suas músicas irritantes durante o caminho todo e coisas assim.

Só preciso arrancar dela um sorriso, só isso. 

O lugar parece antigo, como tudo nessa cidade. Termino de pagar e quando estamos voltando para o Impala, paro de andar assim que vejo dois caras encostados no meu carro, os braços cruzados e os olhares mal intencionados em nossa direção. Hazel faz o mesmo.

—Hazel Laverne...- Um deles diz, mascando um chiclete com a boca aberta. Há algumas feridas em seu rosto e os cabelos estão desalinhados – Que souvenir agradável para se encontrar em New Orleans!

—E de brinde...Dean Winchester! – O outro cara dá um passo a frente, ajeitando a gravata de seu terno – Essa cidade é mesmo tudo o que dizem dela.

Em questão de segundos, Hazel e eu sacamos as armas, deixando-os na mira.

—Não se mexam! – Advirto a eles, o meu olhar impassível na direção de ambos. Minha frequência cardíaca sobe e eu deixo a adrenalina me contaminar  – Ao menos que queiram ir parar ali do outro lado da rua em questão de segundos! – Indico o cemitério com a cabeça, e olho de canto de olho para Hazel, me certificando de que está com a arma posicionada corretamente.

Está. Ela teve um bom professor, afinal.

—Pode atirar à vontade, eu estou usando um advogado...- O de terno diz de maneira debochada, e então aponta para o homem loiro ao seu lado – E o meu amigo aqui está usando um universitário. Não nos importamos com os corpos deles.

Droga. Demônios.

—Não queremos causar confusão, sério mesmo! – A voz do demônio que está possuindo o corpo de um universitário soa sarcástica, enquanto ele sorri e cospe o chiclete no chão – Só queremos a garota.

—Você é meio que importante, sabia?! – O de terno se vira para Hazel, se dirigindo a ela – Mas não se preocupe, temos ordens para apenas fazer o serviço de entrega.

— “Não toquem em um fio de cabelo dela. Ela é minha” – O loiro complementa, os olhos brilhando de maneira mal-intencionada – Ordens de cima.

—Crowley disse isso? – Ela questiona com a voz firme e o olhar afiado. Se está abalada, está disfarçando muito bem. Está firme.

Bingo! – O demônio de terno inclina levemente a cabeça para a direita – Vocês foram bem, bem difíceis de encontrar.

—Mas já que o relógio não para...- O outro diz isso batendo com o indicador no pulso como se ali houvesse um relógio, dando um passo para frente – Vamos logo ao que interessa?!

Antes que venham em nossa direção, alcanço o cantil de água benta que carrego no bolso e jorro uma boa quantidade nos dois, que se contorcem de dor, a fumaça saindo deles de maneira estridente, como se fogo vivo os consumisse. Acabo de nos ganhar algum tempo.

—Hazel, eu preciso que você corra! – Me viro rapidamente para ela, sabendo que não vai ter a mínima chance contra eles. E, se vou lutar com os dois, preciso que ela esteja em segurança.

—Não vou te deixar sozinho! – Ela me fita com os olhos assustados. Respiro fundo. Eu sabia que esse momento poderia chegar, e sabia que ela ia relutar em fazer o que eu mandasse. Todo mundo sempre reluta, puta que pariu.

Todas as malditas vezes. O que tenho que fazer para que as pessoas entendam que nas caçadas e nas emboscadas de estrada, sou eu quem mando? Que inferno...

—Se ficar aqui, um dos dois vai te usar como refém a qualquer momento! – Prevejo porque conheço bem esse tipinho de demônios e suas estratégias, enquanto seguro em seu braço de maneira firme, meus olhos fitando os dela – Eu consigo dar conta deles, mas eu preciso que você corra e se esconda!

Vejo seu conflito explicito no olhar. Os dois demônios ainda estão se contorcendo, mas vão se recuperar em breve.

—Mas...- Os olhos dela intercalam entre os demônios e os meus olhos, como se quisesse me dizer com o olhar que me deixar no mano a mano com dois demônios é loucura. Mal sabe ela que já lidei com ameaças muito piores, só não posso ter uma fraqueza por perto para me deixar vulnerável. Ela me deixa vulnerável estando aqui – Dean, eu não posso...

—Pode! – Grito com ela, temendo por sua vida – Corre, por favor! Você me prometeu isso, lembra?! Prometeu que faria o que eu te dissesse em uma situação como essas! – Meu coração começa a acelerar, não podemos perder tempo.

Suplico com o meu olhar, e assisto a sua luta interna.

Ela finalmente faz o que pedi, assentindo contrariada e correndo para longe, em direção ao cemitério. É um bom lugar para se esconder, cheio de ruelas pavimentadas e confusas. Saberei onde procurá-la.

Os demônios se recuperam das queimaduras, e me olham furiosos. Respiro fundo, a garoa se transforma em chuva rapidamente, e eu simplesmente sei que preciso dar tudo de mim agora.

Me preparo para o combate, mas no momento em que os dois começam a rir e cruzam os braços enquanto me olham como se eu tivesse mordido a isca, é que percebo que acabamos de cair em uma armadilha.

Eles queriam que ela saísse de perto de mim. Provavelmente, se conhecem meu modus operandi, previram que eu faria exatamente isso.

Meu coração começa a socar o meu peito.

Hazel está em perigo e a culpa é toda minha.

XXX

Ponto de vista de Hazel Laverne.

Entro no cemitério correndo, a chuva gelada e cruel castigando New Orleans, e deixando a minha visão embaçada. O sol mal se faz presente graças a tempestade, e por esse motivo tudo está tão escuro...me vejo meio a mausoléus cobertos de folhas que estão se desprendendo das árvores do cemitério, reféns do inverno que beija o mundo. Adentro meio as ruelas pavimentadas e confusas o máximo que consigo, me embrenhando como um rato em um labirinto, o coração disparado e o queixo batendo graças ao frio repentino causado pela chuva.

Correr e me esconder era a última coisa que eu queria fazer. Deixar Dean para trás, correndo perigo...

Mas eu prometi obedecê-lo. Prometi correr quando chegasse a hora. Ficando lá, eu tinha mais chances de atrapalhar tudo do que de realmente ajudar. Certo?!

Começo a andar em círculos meio a chuva, pensando no que fazer. Começo a ficar desesperada, inclinada a voltar atrás.

Preciso ajudá-lo.

Agora seria o momento perfeito para os tais poderes que George White mencionou aparecerem. Olho para as minhas mãos.

Que poder inútil, penso comigo mesma. Trinco os dentes com raiva.

Eu preciso pensar em algo, eu preciso...

Ah, que se dane. Vou voltar lá e vou tentar fazer o que puder. Sei que eu prometi a ele..., mas não vou suportar caso algo aconteça com Dean.

No momento em que me viro para sair daqui, meu coração parece parar por um momento. É um daqueles momentos em que a minha vida parece rebobinar de maneira errada, travando o rolo de filme e o emaranhando, me congelando.

Dou um passo para trás e bato com as costas no mausoléu atrás de mim, a respiração quase não saindo ou entrando pelos meus pulmões.

—Hazel...? – Sam Winchester está na minha frente, o olhar perdido e dolorido, como se...

Como se realmente fosse ele.

Por um segundo, titubeio. Meus olhos percorrem todo o seu corpo. Está mais alto, mais forte, e os cabelos cresceram mais. O rosto não é mais o de um garoto.

É o de um homem. Ele mudou tanto, tanto...

O garoto que conheci e amei há anos, não existe mais.

Sinto minhas vísceras se revirarem quando vejo ele arquear as sobrancelhas para cima, me remetendo a aquele olhar de cachorro perdido que ele fazia de vez em quando, quando éramos adolescentes. Me lembro o quanto isso mexia comigo, a sua vulnerabilidade. Ele dá um passo à frente, me olhando como se visse um fantasma. Está todo trajado de preto, os cabelos castanhos grudando em seu rosto graças a chuva que despenca sobre nós dois, sem piedade.

Sinto coisas demais. Não consigo pensar.

Imaginei nosso reencontro um milhão de vezes em minha mente, mas nunca, jamais, em nenhuma das vezes, cheguei sequer perto de sentir um vazio tão gigantesco como sinto agora.

Há um abismo dentro de mim.

—Você...não é o Sam. – Consigo formular depois de um tempo tentando recobrar meus sentidos, pegando a arma do meu cós com as mãos trêmulas. Aponto a pistola para ele, direto no seu peito. Fazer isso é como apontar uma arma para o meu próprio coração— Não chegue perto de mim!

Sam dá um passo para trás, e coloca as mãos para cima em sinal de rendição, confuso. Parece extremamente magoado.

Não é ele. Não é ele. Não é ele...

Não pode ser ele, pode?!

—Hazel...o que aconteceu?! Eu...eu estive no inferno esse tempo todo...- Sua expressão é de dor, e parece estar hiperventilando. Sei disso pelo seu peito, que sobe e desce em um ritmo frenético. Seus olhos estão devastado, e parece tão atordoado que me retraio – Eu...eu acordei aqui.

Meu coração vacila. Não. Não posso cair nisso. Não posso ser tão burra.

Não é ele.

Mentira. – A palavra sai como um sussurro enquanto estou tentando estabilizar a tremedeira das minhas mãos, sem sucesso algum – Eu não sei o que foi que te disseram sobre mim, mas independente do que seja, eu vou atirar se eu precisar, está me ouvindo?! – Minha voz é firme, mas eu sei que os meus olhos estão me traindo.

Estou tão profundamente atordoada, e tenho certeza de que eles transparecem isso.

Brilham com a minha dor a um quilômetro de distância como um maldito farol no meio do oceano.

—Hazel...sou eu...- Seu sussurro sai com um tom ferido, e ele dá um passo à frente enquanto coloca a mão no próprio peito, se contraindo e olhando ao seu redor como se tentasse reconhecer onde está. Quando seus olhos retornam para mim e cruzam diretamente com os meus, sinto o meu mundo ruindo.

A cor de sua íris permanece intacta, tempestuosa como sempre foi. Seu verde escuro e cinzento, me transporta para um quadro que vi uma vez. Era o de um barco à deriva no mar mais perigoso do mundo, o “mar de hoces”. Ele fica entre a américa latina e a antártica. E poucas pessoas voltam vivas de lá.

Me afogo nesses olhos por alguns segundos.

Dói.

Dói tanto que chega a formigar.

—Qual era o meu apelido? Se você é você, vai saber me responder. – Questiono, com uma pequena faísca tola de esperança lá no fundo da minha mente. Seus olhos mexeram comigo, mais do que todo o resto. Me enfraqueceram — Do que você me chamava, Sam?

Sam Winchester dá mais um passo à frente, sua expressão de dor mudando drasticamente para a apatia total. A frieza em sua íris me assusta, e ele sorri de lado, de uma maneira cruel. De uma maneira oposta ao que o seu verdadeiro sorriso transmitiria.

—Você podia ter facilitado as coisas, Laverne. – Sua voz é fria como o vento que nos envolve, e ele dá mais um passo, encostando seu peito no cano da minha arma, me desafiando – Vamos... atire. Você e eu sabemos que não consegue.

Tento manter as mãos firmes. Mas não consigo.

Sou fraca. Sou extremamente fraca quando se trata dele.

Ele segura o cano da arma com a mão grande, sem tirar os olhos frios e mortos dos meus, como se me testasse. Ele joga a arma no chão com facilidade, e a chuta para longe. Seu corpo se inclinando sobre mim, me pressionando contra a parede do mausoléu, se apoiando em seu braço. Estamos rodeados por lápides e estátuas, as árvores secas sendo as únicas testemunhas por perto. Está tão perto de mim que sua respiração se mescla com a minha.

—Para ser justo com você, você facilitou sim um pouco as coisas...vindo aqui sozinha. – Sua voz é sádica, e ele ergue uma de suas mãos levemente no ar, colocando uma mexa do meu cabelo para trás da orelha.

Seu toque é frio. Fecho os olhos e respiro fundo. Uma lágrima quente irrompe dos meus olhos, mas eu resolvo reagir.

Não.

Crowley não vai usar o corpo dele para me ferir. Eu não vou permitir.

Ergo a perna com a maior força que consigo reunir e o chuto, bem no meio das pernas. Ele cambaleia para trás com dor, e eu uso a oportunidade para correr, sem olhar para trás. Corro por entre as lápides, e me esgueiro por um mausoléu de mármore preto, ficando com as costas na parede, o peito subindo e descendo ofegante, os cabelos e as roupas grudando na pele graças a chuva. O cheiro da água se mistura com o do meu próprio medo, de modo que me faz sentir como se parte da torrente fosse composta por mim, e fico atenta a qualquer barulho. Preciso escapar, preciso ajudar Dean.

Preciso sobreviver.

Ouço um galho se quebrando a minha esquerda. Fecho os olhos e respiro fundo, os reabrindo em seguida em estado de alerta. Corro para a direita, por um caminho de arbustos espinhosos que acabam rasgando as minhas roupas e a minha pele, e lápides cobertas por musgo, que levam até um lado mais abandonado do cemitério, e tento me esconder atrás de uma lápide grande com uma estátua de anjo em cima.

Começo a ouvir um assobio, e fico aterrorizada. O assobio é uma melodia familiar, e após um tempo sendo assombrada pela melodia, percebo que se trata do ritmo da música “House of the rising sun”. O dono do assobio é Sam.

Não consigo não o chamar de Sam, mesmo em minha mente. Sei que não é ele, mas não consigo.

Começo a avaliar as minhas opções, então olho ao meu redor. O muro é muito alto, de maneira que sequer posso cogitar a ideia de tentar escalá-lo, e a entrada do cemitério está longe demais. Eu jamais conseguiria atravessar a distância a tempo.

De uma das várias ruelas pavimentadas do cemitério, o som do assobio se aproxima me cobrindo de arrepios, e ele vem caminhando devagar, como se não tivesse pressa alguma. As vestes negras coladas em seu corpo, os cabelos compridos grudados no rosto, e um sorriso sádico nos lábios. Ele vem arrastando uma adaga na parede dos mausoléus, arranhando-as enquanto ainda entoa sua melodia, fazendo um som estridente.

E foi a ruína de muitas pobres garotinhas...- Ele canta um trecho da música como um mal presságio e então se posiciona diante de mim com a adaga em sua mão, erguendo-a perto do próprio rosto, como se admirasse a lâmina por um momento, em expectativa para usá-la. Raios disparam no céu, irrompendo das nuvens sem hesitação alguma. Sam continua sorrindo para mim, e sinto todo meu corpo tremendo por frio e medo – Estou genuinamente curioso...- Ele sussurra, dando uns passos para frente. Sam passa a mão no próprio cabelo enquanto me fita de cima a baixo, como um lobo olhando para uma corça – Você pensou mesmo que podia fugir de mim?

—Eu tinha que tentar, não tinha? – Respondo, tentando não transparecer meu pavor em minha voz – Eu não sou de cair sem lutar.

—Você é adorável, sabia?! É sério... – Ele ri, e isso dói. É o som da risada dele. Mas, ao mesmo tempo, não é. Isso me dilacera por dentro – Sabe o que vou fazer com você, não sabe? – Ele questiona, se aproximando mais ainda. Dou um passo para trás, e minhas costas ficam contra o muro. A chuva fria me castiga, e Sam posiciona a lâmina na minha jugular, o seu rosto muito próximo ao meu, sua respiração se mesclando com a minha – Eu fiquei muito curioso, entende? Quando me deram a tarefa de te matar. Eu só conseguia pensar...como um mestre tão poderoso como o meu...pode estar sendo ameaçado por uma garota qualquer? Mas você não é uma garota qualquer, não é?

Ele faz uma leve pressão com a adaga em meu pescoço no segundo seguinte. A ardência me acomete e em questão de segundos, sinto uma fina camada de sangue se formando no corte feito pelas suas mãos.

—O cheiro do seu sangue é... diferente. – Ele observa, encostando a testa molhada na minha, o olhar enegrecido. Respiro com dificuldade – Me pergunto se o gosto também é.

Ele inclina a cabeça levemente para o lado, e eu fecho os olhos quando ele coloca a boca exatamente onde fez o fino corte, saboreando o meu sangue com os seus lábios e a sua língua.

Uma lágrima escorre pelo meu olho, e todo o meu corpo parece sucumbir ao pavor.

Está me ferindo. Ele está me ferindo.

Não é ele, Hazel. Não de verdade.

Sam Winchester nunca me machucaria. Não fisicamente, pelo menos.

Ele torna a me olhar de maneira sombria, a boca tingida de sangue, abaixando a adaga por um momento. Percebo suas veias se salientando da pele e se enegrecendo, enquanto ele fecha os olhos por um breve momento, como se sentisse um frenesi.

Como se o meu sangue fosse um tipo de droga.

—Você tem o sangue mais gostoso que eu já provei... – Ele afirma isso respirando fundo, franzindo o cenho como se sentisse dor, trincando os dentes como se sentisse um alívio fluindo pelo seu sistema nervoso – Você não é humana, não mesmo. Posso sentir em minha língua. – Seu sorriso sádico volta a se formar, os olhos me percorrendo, sombrios – Preciso te levar até uma pessoa que está muito ansiosa para te conhecer.

—Eu não vou a lugar nenhum. – Rebato, os dentes cerrados pelo frio e pela raiva.

Ele ri, apoiando a cabeça no meu ombro por um momento. Meu corpo reage, se arrepiando por completo. Ela volta a me encarar.

—Sabe o que é engraçado? Ver você relutando, querendo dar uma de sobrevivente. Garota, você e eu sabemos que não tem forças para lutar contra mim. Tudo porque esse aqui era o corpo do seu ex-namoradinho, não é?! Como era o nome dele mesmo?! – Ele esfrega o polegar na minha boca, enquanto encara os meus lábios com interesse  – Sam Winchester, não é?

Não diga o nome dele! – A raiva é nítida em minha voz, e eu começo a me debater. Ele me segura sem dificuldade alguma enquanto eu fico tentando a todo custo me soltar de seus braços, o sadismo estampado em seu rosto enquanto em me contorço, exaurindo todas as minhas forças.

—Ah, eu digo sim...ele está morto. Deve estar gritando nos quintos dos infernos nesse exato momento...- Ele segura o meu rosto com a mão, me fazendo encará-lo nos olhos de maneira cruel – Sam Winchester é o novo brinquedinho de Lúcifer, pode imaginar?! – Seus olhos acendem em fascínio por um breve momento, as pupilas dilatadas – Imagine se ele sequer sonhasse que o corpo dele está por aí, sendo usado por uma criatura sem nome, prestes a torturar a ex-namoradinha dele...

—Vá em frente. – Respondo, grata pela chuva encobrir minhas lágrimas – Me torture. Cedo ou tarde, vão vir atrás de mim, e você vai ser o mínimo dos nossos problemas.

Ele solta o meu rosto, tornando a colocar a lâmina contra a minha garganta.

—Eu vou te avaliar com...seis e meio, pelo esforço, tá bem? – Ele ri – Continue tentando parecer durona e quem sabe você tira um dez. Me escute com atenção, garota. –Sua voz sai entredentes, com apatia genuína no olhar. Isso me estilhaça em um milhão de pedacinhos – Nada vai ficar entre mim e o que eu preciso fazer. Eu existo para cumprir o meu dever com Crowley, e não vou decepcioná-lo. Sei que você não vai me machucar, não consegue...- Ele debocha, tirando um pouco dos cabelos molhados do meu rosto com sua mão – Você e o idiota do Dean Winchester ainda tem esperanças vazias de recuperar a alma dele. Então não...vocês nunca me feririam, não de verdade.

Não consigo formular uma resposta. Minhas tentativas de ser firme se esgotaram.

—Olhe nos meus olhos, Hazel...- Ele torna a me fazer olhar para ele, sua mão segurando meu rosto com firmeza – Dói, não dói?! Não são mais os olhos dele. Não de verdade. Isso te machuca tanto que chega a ser adorável, Laverne.

Minhas lágrimas dançam com a chuva, e o meu olhar deve deixar transparecer como estou sofrendo.

—Você o amou tanto que, mesmo sabendo que a casa está vazia...- Ele aponta para a própria cabeça, sem tirar os olhos dos meus – Sente vontade de abraçá-lo. E mesmo que eu enfie essa faca em você um milhão de vezes nos próximos dias, ainda vai sentir seu coração bater todas as vezes que colocar os olhos nos dele.

Ele balança a cabeça em negativa, ainda a segurar o meu rosto firmemente. Por um tempo ele apenas me observa, enquanto eu choro e me debato, esgotando todas minhas forças mentais e físicas. Ele sequer se mexe, sequer faz força alguma. O corpo de Sam é grande demais, forte demais. Eu não tenho a mínima chance.

— Sabe, eu tenho sido assombrado com tanta curiosidade desde que Crowley me deu a vida... – Sam inclina a sua cabeça para o lado com as sobrancelhas arqueadas que emolduram um olhar debochado e cínico – Por exemplo, como é que esse idiota se sentia, ein? Fico me perguntando se ele choramingava o dia todo, e eu aposto que sim. Vocês humanos tem essa tendência. Veja você, por exemplo... – Ele acaricia o meu rosto com a ponta dos dedos e um olhar maldoso. Respiro com dificuldade e luto contra a vontade de gritar – Olho para você e só o que vejo é desespero. – Ele dá uma risadinha de lado, revelando sua covinha na bochecha – Só o que vejo é o quão fraca você é. E o quanto ele também era, e por falar nisso... imagine só as coisas que Lúcifer está fazendo com Sam Winchester agora?!

Quando ele começa a rir, eu sou possuída por uma brasa ardente que percorre todo o meu corpo e escapa da minha garganta em formato de grito.

—Não ouse falar a porra do nome dele! – A raiva está me fazendo tremer, e a gargalhada dele faz a minha espinha gelar, enquanto um raio brilha no céu bem atrás dele, o trovão ressoando junto de sua risada escárnia.

—Ei, não é necessário gritar, Laverne. Não é como se ele pudesse te ouvir, não é mesmo?! – Enquanto ele me fita com prazer em me ferir eu paro de relutar, pois todos os meus ossos doem. Paro de me mover, respirando com dificuldade e sentindo coisas demais para processar. Ele observa a minha reação, e se aproxima do meu ouvido. Fecho os olhos, com medo do que está por vir – Não seja tão pessimista, ok? Não vai demorar muito para você se juntar a ele. Eu vou me certificar disso, Hazel. E chegando no inferno, você pode contar a ele como foi morrer com o rosto dele sendo a sua última visão. -  O desprezo em sua voz é claro. Eu fecho os olhos e sinto o meu peito se comprimir dolorosamente. Ouvi-lo falando assim sobre Sam, o verdadeiro dono desse corpo, que está morto e preso com o diabo em carne e osso, faz eu me estilhaçar.

Vê-lo em minha frente é tão... cruel. Porque não é ele, nenhum pouco, nem por um minuto. Crowley roubou o corpo dele e transformou em um monstro que não sente nada além de sadismo e vontade de servi-lo. Ver o corpo dele completamente vazio da essência dele me faz ter tanta saudade que posso morrer por isso e por um breve momento, tenho vontade de forçar o pescoço contra a sua lâmina, acabando logo com o meu sofrimento. Morrer, de repente, soa tentador. Enquanto está pressionando o meu corpo contra a parede, a chuva caindo sobre nós dois, ouço um novo assobio tomar conta do ambiente. Sam sorri imediatamente, reconhecendo a dona da melodia quando me puxa, me tirando da parede e se virando, e me posiciona na frente de seu corpo com minhas costas em seu peitoral, o braço prendendo meus ombros e a adaga contra a minha jugular.

Arregalo os olhos quando vejo Dean Winchester, com o olho roxo e a boca sangrando. Os dois demônios que nos atacaram no posto de gasolina estão segurando seus braços, o prendendo. E então a dona do assobio caminha em minha direção, com os olhos brilhando, embebidos em fel.

Ruby.

Ela para de andar, ficando diante de mim. Parece a porra de uma imperatriz pronta para devorar o reino inteiro e lamber o prato depois.

—Dean Winchester...- A voz de Sam sai rouca, e o sinto apoiando o queixo no topo da minha cabeça. Me contraio ao sentir as batidas do seu coração nas minhas costas. Nem mesmo as batidas parecem genuínas. Por que não são— Está feliz em ver seu irmãozinho? – Sua voz é irônica e mesmo que não o esteja vendo, tenho a certeza de que está sorrindo.

—Você não é o meu irmão. – Dean o encara como se pudesse matá-lo de tivesse a oportunidade. Nós dois sabemos que é mentira, é claro. A sua voz sai entredentes, e em tom grave.

A dor em seus olhos, debaixo de toda essa raiva enjaulada, é indescritível.

—Já vi de quem você puxou a audácia, Hazel...- Sam sussurra com boca perto da minha orelha. Ele aperta mais a lâmina contra minha pele, me fazendo gemer de dor.

—Não! – O grito sai da garganta de Dean, se debatendo e tentando se desvencilhar dos dois demônios, sem sucesso. Os olhos transtornados – Não encosta nela!

—Que olhar devastado é esse, Dean?! ...- A voz de Sam sai mais cruel, mais fria, chega a ressoar em minha mente – Ah...não vai me dizer que você está caidinho pela garota do seu irmão? – Ele começa a rir – Porra, cara... isso é baixo até para mim. Mas... quem pode te culpar, não é? Pelo que me contaram, você adora um caso perdido para proteger feito um cão de guarda. E esse caso perdido aqui? – Ele inclina a minha cabeça um pouco para a direita e apoia os seus lábios na minha jugular, sem tirar os olhos de Dean, o provocando – Eu consigo entender o interesse de vocês, acredite em mim.

Os olhos de Dean se afiam em direção aos olhos que um dia foram do seu irmão, e eu fecho os meus.

          —Chega de provocações, criatura. Precisamos ir. – A voz afiada é de Ruby, que não tirou os olhos de ébano de mim desde que chegou – Agora.

Ela caminha até Dean de maneira impaciente, e o nocauteia. Sendo um demônio, ela tem vantagem corporal sobre ele.

Ela ergue o olhar para mim, sua boca se flexionando levemente para a direita em uma expressão que não consigo decifrar enquanto vem em minha direção.

—Vamos. Não temos tempo a perder. – Ela fita os olhos de Sam, seriamente.

A próxima a levar um soco de Ruby sou eu.

Tudo fica escuro.

XXX

Abro os olhos devagar e com dificuldade. A luz âmbar de lâmpadas pisca incessantemente, e quando tento me mover, percebo que estou amarrada e amordaçada. Percorro tudo ao meu redor com os olhos, e percebo que me encontro em um tipo de barracão abandonado. Os tubos de ventilação ficam girando lá em cima, viciosamente.

—Você já acordou?  - Ruby anda em minha direção com seu coturno barulhento pelo chão de cimento queimado. Minha cabeça está latejando tanto— Está consciente, lindinha?

Faço que sim com a cabeça, o gosto da corda na minha boca me deixando sufocada. Ruby sorri para mim:

—Que bom. Vou explicar como é que as coisas vão funcionar. Ninguém vai vir salvar vocês, Hazel...esse é o primeiro fato que precisa aceitar. – Ela dá de ombros, e se senta em uma cadeira a frente de mim. Ao nosso redor, há diversas caixas de maneira e instrumentos de tortura em carrinhos de ferro. Meu coração dispara – Agora, você tem duas opções diante de você. – Ela ergue as sobrancelhas - Eu preciso saber o que é que George White te contou de tão importante, e se você for uma boa menina, você vai sofrer um pouco menos. Caso contrário...bom, admito que prefiro que você seja difícil. Assim consigo brincar mais.

Ela corta a corda da minha boca sem delicadeza nenhuma, e eu cuspo alguns fiapos, me engasgando.

—Não tenho nada para dizer. –As palavras escapam falhas dos meus lábios, depois de tossir. Preciso ganhar tempo para ter uma chance, mesmo que remota, de sair daqui.

E se aguentar tortura for o único meio disso, que seja.

Não tenho mais nada a perder.

—Fico feliz de ouvir isso. De verdade. – Seu sorriso se ilumina de maneira feral, e então Ruby retira um isqueiro do bolso. Respiro fundo tentando controlar o pânico quando minhas mãos começam a suar imediatamente – Fiquei sabendo que você tem medo de fogo, é verdade? – Ela usa um tom de deboche, enquanto passa o indicador pelo meu braço cheio de cicatrizes salientes.

Começo a tremer, mas não digo nada.

—Como é que foi, lindinha? Sentir as chamas te devorando viva? – Ela inclina a cabeça para o lado, sem piscar seus olhos grandes e escuros – Deve ter sido...aterrorizante, não é? Afinal, não deve ser fácil conviver com um braço tão nojento como o seu...- Ela acende o isqueiro e o leva até o meu outro braço, o que não tem cicatrizes. Começo a tremer e o meu corpo reage se debatendo contra as amarras, mas é inútil. Seu sorriso ao acendê-lo é a última coisa que vejo antes de fechar os olhos por um momento, sabendo que não há escapatória.

Começo a gritar quando sinto minha pele queimar, e as lágrimas violam o meu rosto. Não sei por quanto tempo aguento a agonia, a dor e o medo, mas parece ser o suficiente para que as minhas narinas sejam preenchidas com o cheiro da minha carne queimada.

Um cheiro que eu nunca esqueci. Um cheiro bem familiar para mim.

Ela apaga o isqueiro por um momento, e todo o meu corpo parece estar entrando em colapso. A queimadura não foi tão grave quanto as outras que tenho, mas foi o suficiente para criar um machucado que arde incessantemente, com bolhas e sangue.

—O que George White te disse, Hazel? – Ela segura o meu rosto com sua mão fria, os olhos bem no fundo dos meus. Seus dedos compridos apertam as minhas bochechas, e suas narinas se inflam de impaciência.

—Vai para o inferno, cadela. – A minha voz arranha a garganta como um disco. Ela ri.

—Já estive lá. Não faz muito o meu tipo...- Ruby dá de ombros, voltando a me queimar no mesmo lugar.

Meus gritos continuam e crescem reverberando por todo o ambiente.

Tento me concentrar em qualquer coisa que não seja a dor angustiante me tomando, fazendo todo o meu corpo suar e tremer. Tento ir para qualquer lugar seguro que tenha sobrado em minha mente em meio a essa insanidade, mas não há nenhum.

Tudo o que existe nesse momento sou eu, o fogo e a dor.

Quando estou ficando rouca de tanto gritar, Ruby finalmente para de me queimar. Reabro os olhos, uma gota fina e fria de suor escorrendo pela minha têmpora quando Sam entra no lugar, descendo uma escada de ferro.

—Sentiu a minha falta? – Sua voz é irônica, sorrindo ao olhar para mim – Você sequer me chamou para brincar, Ruby. – Ele recrimina a demônio com o olhar.

—Eu sou egoísta, você sabe disso. – Ruby resmunga isso ao se levantar, e vai em direção a ele.

Sam concorda com a cabeça sem quebrar o contato visual comigo, e arrasta um caixote de madeira para se sentar diante de mim. Ele usa uma camiseta branca e lisa, e jeans rasgados. Seus cabelos estão bagunçados e ele parece levemente cansado.

Começo a mexer a perna incessantemente, com a ansiedade me dominando por completo.

—A Ruby pode usar todos os tipos de brinquedos em você..., mas sou eu quem verdadeiramente te machuca, não é? – Ele se reclina para frente, o olhar penetrante no meu.

Olho para baixo, evitando os seus olhos.

Ele puxa a minha cadeira para mais perto dele, ficando com o rosto a centímetros do meu. Seguro a respiração.

—Olhe para mim quando eu falar com você. – Ele sibila baixinho. Ergo o rosto devagar, e então ele sorri de lado, sua covinha evidenciada – Ótimo. Assim está melhor. Sabe, Hazel, eu sou uma criatura simples...- Ele agarra uma faca de um carrinho de ferro que está ao nosso lado e começa a brincar com ela em suas mãos, girando-a – Uma faca e muita persistência são o meu estilo. Seja uma garota esperta, e nos conte, direitinho, o que foi que vocês descobriram sobre você naquela prisão.

—Onde está o Dean? – Pergunto, ignorando seu comando.

—Você ama dificultar a própria vida, não é?! – Ele inclina a cabeça levemente de lado, e ao fazer isso, sinto a ponta da faca sendo pressionada contra a minha coxa em uma linha reta e profunda. Ouço o jeans se rasgar, e minha pele também se abre, o sangue quente escorrendo de mim com agressividade.

Fecho os olhos e mordo os lábios sentindo uma dor exorbitante. Gritar dói a essa altura, tamanho o dano que fiz em minhas cordas vocais enquanto era queimada por Ruby, então estou tentando salvar os meus últimos gritos para o pior.

Vou racioná-los até onde for possível.

Reabro os olhos, tonta pela dor. Sem tirar os olhos cruéis de mim, ele deposita sua mão sobre o meu corte, pressionando-o com os dedos e manchando suas mãos de vermelho.

Observo-o enquanto ele passa a ponta da língua em seu indicador, lentamente, provando o meu sangue mais uma vez. Seus olhos não desviam dos meus.

Novamente, vejo suas veias se sobressaírem, se tornando negras, como rachaduras por seus braços e seu pescoço.

Fico tremendo enquanto o meu sangue começa a pingar no chão, me deixando zonza.

—Ela tem sangue de demônio, isso eu garanto...- Ele se vira para Ruby – Acho que ela é como Sam Winchester.

Vê-lo falando de Sam é tão...estranho. Por um momento, me lembro de tudo o que os Winchester já me contaram sobre possessões demoníacas e penso em como cada vítima dessas possessões deve ter se sentido. Como se sentiram seus familiares ao serem mortos por eles, enquanto eles não podiam fazer nada além de assistir? Olho para Ruby, agora mesmo enquanto reflito, e penso sobre o corpo da mulher que ela está usando. Será que está acordada, lá dentro, vendo tudo isso? Será que sua família sente sua falta? O que sua mãe diria se a visse andando por aí?

É assim que me sinto vendo o corpo que pertence a ele fazendo tudo o que ele jamais faria. Será que, se o recuperássemos...ele se lembraria? Teria acesso a essas lembranças? Ou não faria a mínima ideia?

Torço pela segunda opção. Se Sam pudesse ver isso, tenho certeza de que o destruiria. Sam nunca me machucaria, nunca. Suas mãos e seus olhos sempre foram gentis. O jeito doce e protetor de Sam foi o primeiro refúgio que eu conheci nessa vida.

—Talvez seja, mas há mais nessa história que nós não sabemos... – Ela responde, de braços cruzados enquanto me encara como se eu fosse uma cobaia de laboratório – Crowley quer os detalhes.

Nesse momento, enquanto sinto a dor pulsante dos meus machucados, as portas do barracão se abrem e os dois demônios de ontem entram por ela trazendo em seus braços Dean Winchester, que está se debatendo feito um louco.

—Ele não está se comportando, Ruby. – Diz o demônio de olhos negros e terno, impaciente – Ficou maluco quando ouviu os gritos dela.

Ela revira os olhos, desinteressada.

—É trabalho de vocês o manter na linha. Levem ele para...

—Não. – Sam a interrompe, me olhando de maneira sádica – Deixem-no aqui. Isso vai ser divertido.

Os demônios se entreolham e soltam Dean, que para de se debater imediatamente.

Meu olhar cruza com o dele. Está com o rosto todo machucado, e tem sangue por toda parte. Em questão de segundos os olhos de Dean percorrem o meu corpo, procurando pelos danos que ele encontra rapidamente. A dor em sua íris é tão intensa que quase posso senti-la.

—Segure ele, Ruby. – Sam ordena, e ela o faz, sem questionar. – Não deixe que ele desvie o olhar, certo?!

Sam se volta novamente para mim, e enquanto Ruby segura o rosto de Dean para que ele não se mexa nem desvie o olhar, sinto a faca sendo cravada no mesmo corte, dessa vez mais forte. Sou invadida pelos gritos que estava economizando. A quantidade de sangue que sai de mim agora, é o suficiente para respingar no chão.

Inclino a cabeça para trás, suando e tremendo de dor.

Meio ao embaçado das lágrimas e da tontura, vejo Dean se debatendo em desespero, nos braços de Ruby.

—Dean, talvez você possa ser mais útil para nós do que Hazel. Pode começar abrindo a boca sobre o que descobriram, o que acha?! – Sam olha para ele, as sobrancelhas erguidas em uma expressão de apatia em seu rosto.

—O que quer saber?! – Dean tem as narinas infladas e ódio lhe queimando os olhos cheios de lágrimas que ele tenta conter. Ele vai quebrar, ele vai falar.

—Tudo. Todos os detalhes. – Ruby responde, perto do ouvido dele, sibilando como uma serpente faria.

—Dean, não conte a eles...- Peço, fraca demais para ter força na voz. Sam me olha com uma expressão de pena, como se eu não passasse de um efeito colateral irritante.

—Ela é filha de Astaroth. – Dean diz rapidamente, sem nem pestanejar. Fecho os olhos, sabendo que agora não tem volta. Vão conseguir de nós o que vieram buscar, e uma vez que tiverem tudo...

Acabou. Estaremos mortos.

—Isso não é... possível. – Posso estar delirando pela dor e a perda de sangue, mas posso jurar que vejo algo além de incredulidade nos olhos de Ruby. Medo— Simplesmente...não é!

—É possível sim. O pai dela fez um pacto, e... - Ele respira fundo, exausto. Dean também foi torturado, é visível por todo o seu corpo. Isso faz eu me contrair. Ele cambaleia um pouco, mas Ruby o está segurando, e apenas por isso ele não cai direito no chão – Aceitou fazer isso. Aceitou Astaroth em seu corpo antes de...- Sua voz morre por um momento, hesitante – Bom, vocês podem imaginar. A mãe dela ficou grávida e...é isso. É isso o foi dito por George White. Satisfeitos?! – Os olhos de Dean ficam semiabertos pela fraqueza, completamente entregue a situação desgraçada a que nos encontramos.

—Nunca, em toda a história da terra e do inferno...- Ruby coloca as mãos na cabeça, as palavras saindo lentamente enquanto ela está respirando com dificuldade – Jamais...um demônio conseguiu fazer isso.

—Astaroth conseguiu. – Dean rebate, respirando com dificuldade.

—Se isso for verdade...- Sam soa pensativo, o cenho franzido – Você é o anticristo, Laverne.

Um silêncio nos cobre como um manto. Estou quase perdendo a consciência.

—Você precisa avisar a ele. Avise Crowley que temos os dois...- Ruby se apressa a ordenar, os olhos assustados – Ele precisa saber.

—Eu irei, sim. – O brilho nos olhos dele é de devoção – Ele vai ficar tão satisfeito...

—Vai sim, Frankenstein. – Ruby responde, e então ela joga Dean no chão, entediada por segurá-lo. Ele cai de joelhos, quase sem forças em seu corpo – Você precisa ser rápido. É muito pior do que imaginamos.

Ele assente, passando a mão nos cabelos. Seu queixo, mãos, braços e camiseta estão manchados com o meu sangue.

—Eu serei. – Ele ergue o indicador no ar por um momento – Mas só uma coisinha, antes de eu ir.

Ele caminha até mim de maneira ameaçadora, e fica com o rosto a centímetros do meu. Sinto o cheiro de ferro do meu sangue em seu rosto, e seus olhos vazios me encaram enquanto ele sorri de maneira cruel.

—A próxima vez que nos encontrarmos, será a última. Sua última visão será a dos olhos dele te encarando enquanto eu torço a faca dentro das suas entranhas. Mas, no fim das contas, pense positivo, anticristo. Quem sabe você não se encontra com Sam Winchester no inferno. – Ele se afasta, dando de ombros – De repente Lúcifer está querendo um novo bichinho de estimação.

Ele caminha até Ruby.

—Não os mate. – Ele ordena, sério – Não faça nada sem as ordens de Crowley, Ruby.

—Não ousaria. – Ela responde, olhando para Dean, que mal consegue se sustentar de joelhos e para mim, à beira de um desmaio por falta de sangue.

Ele assente com a cabeça, mas antes de se retirar, Ruby o puxa para perto, olhando para mim com malícia e sadismo.

Ela agarra a gola da camisa dele e cola os lábios nos dele.

Quero desviar o olhar, mas não consigo.

É extremamente patético que isso doa mais do que o corte em minha perna ou a queimadura em meu braço.

É visceralmente cruel.

Se algo havia restado de mim depois de tudo...acaba de ser aniquilado.

Não importa que não seja ele, verdadeiramente. Enquanto vejo o único homem que amei na vida beijando outra mulher na minha frente, fico desejando a morte. Não importa que seja apenas seu corpo. Meu coração se quebra mesmo assim. É como se a minha mente não conseguisse entender que não é ele.

Não é ele, não é ele, não é ele, não é ele...

Eles separam os lábios, e Sam olha para os meus olhos.

Ao ver minha dor, parece satisfeito. Sei disso pelo sorriso sádico e pelas sobrancelhas arqueadas. 

—Não fique assim, tão devastada... – Sua voz carrega uma falsa pena – Antes de te matar, pode ser que eu te beije também, se você quiser. – Ele pisca para mim de maneira cruel, e sai dali, deixando Ruby, Dean e eu para trás.

Quando a criatura de Crowley some pela porta, Ruby olha de maneira assustadora de Dean para mim.

—E então...do que é que vamos brincar enquanto esperamos?


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Notas finais do capítulo

There is...a house...in New Orleans....
They caaaaaall the riiiiising suuuuun

Tá, parei.

Doeu, foi horrível, o próximo capítulo é pior.

SE EU VER QUALQUER UM DE VOCÊS CULPABILIZANDO O SAM PELAS AÇÕES DO CORPINHO SEM ALMA DELE, VAI SOBRAR EIN.

O bichinho tá lá sofrendo no inferno sem ter a mínima ideia do que é que o corpo dele tá aprontando.

www.Ele.é.um.ursinho.de.pelúcia.inofensivo.e.mal.compreendido.que.nunca.errou.e.se.errou.foi.tentando.acertar. com

Comentem ♥

XOXO



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