As Crônicas de Aethel (II): O Livro das Bruxas escrita por Aldemir94


Capítulo 8
A Caminho do Desfiladeiro




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Quando tinha 8 ou 9 anos (provavelmente uns 8) Aethel tinha o costume de passear pelas florestas ao lado de Arquimedes, a sábia coruja, em busca de aventuras divertidas.

Às vezes não tinham vontade de voltar para a cabana de Merlin, que sempre aguardava o rapaz com lições sobre Platão, Maquiavel e impérios que nasceram e morreram a muito tempo atrás.

Assuntos tão intelectuais eram muito interessantes para o jovem Aethel, porém, todos precisam de pausas uma vez ou outra, seja para nadar em um lago, passear em alguma estrada qualquer de uma floresta misteriosa ou apenas deitar na relva e não fazer nada; e com Aethel não era diferente.

Em meio a suas inúmeras reflexões diárias, o garoto costumava sonhar acordado nestes momentos de “não faz nada” e, algumas vezes, se lembrava do dia em que havia conhecido Merlin.

Lembrava-se de correr sozinho pela floresta, perdido e cansado, do grande carvalho, das lágrimas que desciam pelo seu rosto levemente avermelhado, da luz dourada e alegre de onde surgiu a pequena Luna, com suas asinhas delicadas e sorriso tão acolhedor.

Naquela época o rapaz era apenas uma criança indefesa, sem história, guardiões ou uma simples rota definida; mas porque uma criança estaria perdida em uma floresta escura? De onde aquele garotinho teria vindo? Nem mesmo Aethel sabia responder.

Anos depois, ainda sem saber de onde veio ou para onde deveria ir, o rapaz tirou uma espada de uma bigorna e o resto se tornou um épico nos lábios do povo – sempre ansioso por grandes narrativas.

Agora, nos dias atuais, aquele garotinho em lágrimas era um adolescente coroado; líder máximo de um poderoso império em crise, cheio de responsabilidades e obrigado a marchar para um combate com poucas chances de vitória…

Tanto faz. O rapaz já não estava se preocupando tanto com Cláudio, Nealie, o cavaleiro verde ou qualquer outro problema menor – tirando a saúde de Mabel –, talvez porque estivesse sendo exposto a todas essas questões por tempo demais. 

Montado em seu cavalo branco alado, Aethel reuniu mais dois garanhões voadores e depois ordenou que Felipe – general da VII legião do Norte – marchasse com seus homens até um vilarejo próximo ao desfiladeiro de Nimrod, onde o militar poderia se reunir com o restante de suas tropas, vindas da fronteira leste.

Lamentavelmente, esse reforço de tropas demoraria alguns dias a chegar, então Aethel voaria sozinho até o desfiladeiro e seguraria as tropas do revoltoso Cláudio (que seria forçado a passar pelo desfiladeiro se quisesse manter a integridade de seu exército e evitar atrasos).

É claro que Felipe achou um absurdo ser forçado a deixar seu santo imperador seguir sozinho para Nimrod, porém, Aethel era o chefe máximo das seis forças (sendo o “exército” a primeira delas) portanto, o velho general não possuía nenhuma prerrogativa constitucional que pudesse demover seu rei da ideia insana.

Era muito saboroso dar ordens e ser obedecido em situações assim, mas era também bastante solitário, de forma que pode ter sido essa a razão das determinações finais de Aethel antes de partir:

—Faça como determinei, vá de encontro a suas unidades e, quando as tiver reunido, siga para o desfiladeiro de Nimrod. Já dei ordens para que Merlin fique ao lado de Dipper, que deverá auxiliar Gemma na pesquisa daquela pedra antiga, e também de Mabel, que ainda está inconsciente.

—Meu senhor Aethel – disse o general – não pode seguir sozinho! É insensatez!

—Nobre Felipe – disse o imperador – chegando ao desfiladeiro primeiro serei o mestre do terreno, terei o tempo a minha disposição e poderei armar uma trapaça para aquele traidor pilantra do Cláudio… Mas se eu seguir com você, junto do exército, não conseguiremos chegar a tempo no desfiladeiro; Cláudio vai ultrapassar essa barreira natural e tudo estará acabado. Por essa razão, meu caro general, faça como lhe ordenei. Quanto a seguir sozinho – sorriu o rapaz – não precisa se preocupar: Danny, Jack e as senhoritas Rosa e Samantha serão meus irmãos de jornada. Agora vá, meu amigo Felipe… E que Deus o proteja.

Após dizer isso, os cavalos alados voaram pelo céu, levando uma carruagem aberta onde Sam e Rosa estavam confortavelmente sentadas (pois Aethel não achava certo que garotas viajassem de forma penosa): um veículo com assentos estofados, linda pintura azulada e duas mantas rosadas (pois as garotas poderiam sentir frio).

Quanto a Jack e Danny, o imperador os colocou para seguirem ao seu lado, montados em dois cavalos alados com lindas penas da cor do cobre, com algumas manchas negras, corpos cobertos por uma pelagem também da cor do mais fino cobre e crinas escuras e reluzentes, que escancaram o quanto aqueles cavalos voadores eram bem cuidados.

Eram três cavaleiros ali, mas não poderiam diferir mais entre si: Jack e Danny pareciam desconfortáveis nos nobres animais, sempre ajeitando as roupas ou segurando-se para não caírem dos cavalos; Aethel, porém, facilmente poderia ser comparado a Alexandre em seu Bucéfalo ou Napoleão em seu garboso Marengo, segurando as rédeas com firmeza e jamais abandonando a postura altiva que cabe a um rei.

Jack e Danny não puderam deixar de se impressionarem com o olhar inabalável de Aethel, que parecia centrado e invencível, quase como se fosse uma imparável força da natureza…

A cena era tão marcante, que os garotos até se esqueceram de que Aethel era um imperador em dificuldades, lutando para não perder tudo.

Voando no grande céu azul, o grupo admirava as extensas planícies verdes, as rochas, pequenas casas perdidas, as plantações de maçãs e morangos, construções históricas (que pareciam manchinhas ou pequenos pontos), além de grupos de pássaros que, vez ou outra, se aproximavam da carruagem, cheias de curiosidade.

Como o vento atrapalhava qualquer tipo de conversa, até Aethel permanecia em silêncio, ainda que Rosa e Sam tentassem trocar algumas palavras animadas.

Mesmo de carruagem voadora, o grupo levaria pelo menos dois dias até chegarem a um ponto onde pudessem desembarcar, alimentar os cavalos alados e depois seguir adiante sem o veículo, quando poderiam dormir em alguma caverna das montanhas e, no dia seguinte, seguir em frente e chegar até o grande desfiladeiro.

Rosa ajeitou sua calça rosa (ela devia gostar muito de rosa) e camisa branca, adormecendo algum tempo depois, o que motivou Aethel a conduzir a carruagem um pouco mais lentamente, apesar de estar correndo contra o tempo.

O rapaz ainda vestia seus trajes imperiais, pois julgava as legiões traidoras de Cláudio como sendo um “amontoado de covardes” – o que Aethel dizia com desdenho –, logo, sentia que poderia enfraquecer seus espíritos com o poder da imagem:

—Um pseudo-imperador empoeirado e traidor valeria mais que um imperador legítimo e fulgurante? Hahaha, nem precisarei destruir Cláudio; esse facínora sofrerá destino igual ao de Vitélio!

Apesar da ventania, Danny e Jack eram capazes de ouvir as palavras duras do rei, mas preferiam se manter em silêncio, já que aquilo deveria ser apenas discurso típico de quem está muito furioso.

Sam observava seu amigo imperial com curiosidade, enquanto Rosa dormia ao seu lado, sugerindo que, apesar de mostrar disposição para a longa viagem, ainda não havia se recuperado totalmente do incêndio.

Após cruzarem uma cadeia de montanhas baixas, o grupo chegou em um vale com algumas poucas casinhas, rodeadas por vinhas e carvalhos bonitos.

Aquela parte do império se localizava próxima a área tropical do globo (pois, assim como em nosso mundo – que chamamos de “Terra”, mas do qual cuidamos como um adolescente de suas meias –, o todo poderoso império ghalaryano também existia em um interessante planeta redondo, como os pomos de ouro e as laranjas de Colombo).

A manhã passou rápido e os roncos nos estômagos anunciaram que já era meio dia, por isso, Aethel desceu a carruagem até um dos pequenos vinhedos, saindo de seu garanhão branco alado e caminhando até a porta esquerda do veículo, abrindo-a e ajudando as garotas a descerem.

Jake ajeitou seu casaco vermelho com ziper e bateu levemente nos ombros para tirar qualquer poeira que estivesse sujando os detalhes amarelos (esses divididos por três linhas, de forma que poderiam lembrar, vagamente, os cascos de uma tartaruga, embora fosse tudo feito de tecido).

Aethel guiou o grupo até uma cabana simples, de apenas um andar, que certamente pertencia ao dono do vinhedo.

Arrumando a camisa branca por baixo do casaco vermelho e tirando uma joaninha do short jeans (que já queria entrar dentro de um dos dois grandes bolsos da vestimenta), Jake segurou a mão esquerda de Rosa e sorriu, como se dissesse que estavam seguros e tudo acabaria bem.

Conforme iam se aproximando da adorável casinha, o grupo avistou uma mulher com cerca de 30 anos, com cabelos longos e loiros, uma pele levemente bronzeada (indicando que seu trabalho debaixo do Sol era duro e diário) e sapatos um tanto velhos e amarelados.

Seus olhos castanhos não exprimiam nada que não fosse simplicidade, na verdade, até seu humilde vestido cinzento e avental eram bastante simples.

Aethel não pôde evitar um sorriso alegre, enquanto pensava consigo “será uma cena divertida”, já que imperadores não deveriam passar por aquelas bandas com muita frequência.

Tirando do bolso um anel de ouro com o selo imperial (composto por um “A” rodeado por chamas e as palavras “Aethel I – IMPERATOR”) e o mostrou para a mulher que, incrédula, caminhou até o grupo e se curvou diante de seu soberano.

“Por favor”, pediu Aethel, “pode nos ajudar?”, ao que a mulher os questionou:

—Majestade… grande Aethel, senhor do mundo… sou apenas uma pobre vinicultora, mas o que desejar, farei.

—Por favor, qual seu nome?

—Meu senhor, sou Agripina… cultivo esta vinha, mas por favor, entrem todos, devem estar com fome. – Disse a mulher, que tentava esconder toda a sua empolgação ante convidados tão ilustres.

 -Agradecemos pela gentileza – disse Aethel – estamos em viagem e não desejamos incomodar.

A mulher negou que o grupo fosse um incômodo e insistiu para que todos entrassem, logo se prontificando a levá-los para a mesa de madeira e serví-los um cozido de lentilhas com pães e algumas frutas, acompanhadas de um suco fresco de uvas recém colhidas.

“Aceitem um pouco de vinho, por favor”, disse a gentil mulher, enquanto perguntava animada sobre as notícias da capital.

Aethel levantou-se e serviu as garotas com o vinho, em copos de madeira, enquanto respondia as perguntas da anfitriã, logo servindo a Danny e Jake com a bebida de uvas.

Os jovens ficaram um pouco receosos em beberem o vinho, mas Aethel – que de todos, parecia ser o mais perspicaz – riu alegre e os tranquilizou:

—Hahahaha, aposto minha coroa como acham que tem álcool aqui, não é mesmo? Mas não se preocupem, que em Ghalary a bebida não entorpece os sentidos.

—Algo errado? A bebida não está boa? – perguntou Agripina, temendo ter ofendido os convidados.

—Não se preocupe, minha senhora – sorriu o imperador – é apenas um caso de diferença cultural.

Segurando o riso, o rapaz explicou aos amigos que no império ghalaryano a palavra “vinho” era excessivamente genérica, servindo para indicar qualquer suco produzido em uma plantação, não apenas o suco natural das uvas, como também o de maçãs, pêras e até romãs.

Quando a bebida era servida em temperatura ambiente ou apenas havia ficado quente, os ghalaryanos chamavam de “vinho de Sol”; quando a bebida era gelada, usavam a expressão “Vinho do Norte” ou apenas “Dama do Norte”, pois as terras ao norte do império eram gélidas, com grandes picos nevados e tempestades brancas.

Bebidas alcoólicas até existiam no império, porém, jamais eram consumidas pelos ghalaryanos, sendo usadas apenas como armas de guerra! Elas eram enviadas em abundância para os inimigos de Ghalary que, devido a qualidade da bebida, raramente eram capazes de resistir.

Aethel contou que essas bebidas com álcool eram restritas aos inimigos do império, sendo chamadas de “licores de Tróia”, pois, assim como o legendário cavalo de madeira, elas eram um presente falso que prenunciava a destruição dos adversários de Ghalary.

“Teriam adorado a 'batalha dos licores quentes' ”, riu Aethel, “nela os ghalaryanos colocaram uma fórmula nos licores de Tróia que fizeram os inimigos adormecerem no campo de batalha! Hahaha, que bando de tolos”.

Rosa e Jack comiam fatias de pão enquanto Danny e Sam riam das palavras de Aethel, sussurrando entre si “são uma outra cultura”.

O cozido era temperado com ervas e especiarias vindas de várias partes do império, porém, não possuía sal, pois havia carência desse tempero naquelas partes remotas dos domínios ghalaryanos.

Encerrada a refeição, Aethel tirou do bolso um saquitel com alguns dracmas imperiais, três sestércios de prata, dois óbolos de ouro e até um shekel do templo israelita! Eram todas moedas que, no passado, foram usadas por gregos, romanos e judeus de Israel.

“Crise inflacionária é uma tragédia”, lamentou Aethel, “e com o maldito exercício republicano ficou ainda pior”, encerrou o rapaz, enquanto entregava os dracmas para a mulher, como agradecimento.

Quando Rosa perguntou o que ele queria dizer, o rapaz explicou:

—Após a morte de Antonio Aureliano – meu antecessor incompetente – o império mergulhou em uma crise financeira grave, que aumentou a corrupção e trouxe carencia para as partes mais remotas do império. Tentando consertar a tragédia, o grupo republicano do senado teve a brilhante ideia de produzir moedas para suprir a falta delas: basicamente eles pensaram “se não temos dinheiro, vamos fazer mais!”, porém, esses idiotas não se deram conta de que a economia é um pouco mais complicada do que isso. Resultado: Ghalary agora tem um montão de moedas correntes que não valem quase nada, sofrem com perda de pureza e, ainda por cima, dificultaram o uso normal do dia a dia… Esses ignorantes!

—É verdade – disse Agripina – eu nem sei mais qual o dinheiro que usamos, então costumo ir no mercado e trocar tudo que preciso pelo que produzo aqui na vinha.

—Por essa razão – disse Aethel – institui o “dracma imperial” e comecei a recolher todas as outras moedas, para que o império tivesse um sistema monetário mais simples e efetivo… Mas admito que não teria conseguido sem a ajuda de Merlin, Túlio e, principalmente, Lucio Atreu.

—Que dureza – respondeu Jack, enquanto comia uma maçã – Mas então, porque a economia continua ruim?

—Guerras, corrupção, fome, etc., mas logo tudo vai melhorar. – Encerrou o imperador.

A refeição seguiu por mais alguns minutos, até que todos estavam satisfeitos e descansados.

Apesar da insistência de Agripina, o grupo não poderia se demorar ali, então Aethel agradeceu a hospitalidade e, após alimentar os garanhões com relva fresca, deixou a carruagem com a mulher, preparando os três cavalos alados para a viagem.

Agripina não possuía mais cavalos, porém, entregou a Aethel um tapete velho que, em outros tempos, servia para voar pelo ar, como aqueles que se lê nas mil e uma noites.

“Era um tapete orgulhoso, mas muito fiel, majestade”, disse a mulher, enquanto dava ao grupo um grande saco com provisões para a viagem.

Agradecendo os presentes, o grupo seguiu adiante e, apesar de Aethel ter sugerido que Sam e Rosa montassem em seu cavalo, enquanto ele seguiria a pé, as garotas preferiram montar juntas de Danny e Jake.

Guardando o tapete antigo na garupa de seu cavalo, o imperador montou e o grupo seguiu voando em direção às montanhas.

Por mais agradável que o voo fosse, tudo acabou ficando cansativo e as horas se estenderam até que o Sol se pôs.

Aethel fez sinal para que as montarias descessem até uma cadeia montanhosa, pois passariam a noite em uma das cavernas, o que foi prontamente obedecido pelos animais.

“Estamos nos aproximando do desfiladeiro” disse Aethel, enquanto Danny e Jake ajudavam Sam e Rosa a descerem dos cavalos alados (que já pareciam cansados da viagem).

Seguindo por um caminho estreito por entre os grandes paredões rochosos, o grupo atingiu um pequeno regato que corria tranquilamente, com alguns arbustos verdes e troncos de madeira empoeirados, dos tempos da guerra civil.

Graças a ele, os cavalos puderam beber as águas límpidas à vontade, enquanto Aethel estendia o tapete no chão em uma pequena caverna localizada ao lado do regato.

Era um lugar relaxante, que evocava tamanha paz, que o grupo quase esqueceu que já haviam passado muito da hora de comer.

Após dar alguns comandos para os dois rapazes, Aethel pediu que reunissem um pouco de madeira seca para ele acender o fogo, em seguida, pediu a Danny que se transformasse em fantasma e desse uma olhada cuidadosa ao redor, certificando-se que não haviam ladrões ou outros inimigos escondidos.

A princípio Jack não entendeu nada, mas tudo ficou claro quando ele ouviu o garoto Phantom dizer “virar fantasma!” e adquirir o aspecto sombrio e fantasmagórico que sua forma de herói tinha:

—Fala sério! – respondeu Jack Long.

—Rosa, Sam, por favor, queiram se sentar – disse o imperador, tirando seu casaco para que elas se cobrissem, pois a noite seria fria – preparem os mantimentos, enquanto isso, vou ajudar Danny a explorar os arredores. Se houver algum problema, gritem e eu logo estarei aqui.

—Aethel, sabemos que quer nos proteger – respondeu Sam – mas não somos feitas de porcelana.

—É verdade – respondeu Rosa –, nós também queremos ajudar.

—Eu entendo – respondeu o rapaz – Mas nenhum de vocês quatro já esteve em uma guerra, e eu não posso permitir que algo aconteça de ruim. Vocês duas são muito corajosas, eu sei disso, mas não devem participar da batalha, em momento algum.

—Mas nós queremos ajudar! – disse Sam e Rosa, em uníssono.

—Eu compreendo – prosseguiu o rei – Mas desejo que ajudem a montar minha armadilha contra Cláudio e depois se escondam junto dos cavalos alados… E se tudo der errado, deverão partir e encontrar a VII legião do Norte, que está sendo conduzida por nosso irmão Felipe.

—Então acha que não podemos lutar só porque somos garotas? – Questionou Rosa.

—Eu não acho nada – disse Aethel –, apenas sei que tenho o dever de combater o inimigo. Danny tem seus poderes de fantasma e Jake também tem seus segredinhos, ou não seria tolo a ponto de seguir em direção a batalha. Homens estão preparados para cair nos campos da violência… e sei que vocês duas também estão, não tenho dúvidas disso… Porém, o que quero dizer é que vocês não devem e tampouco precisam participar do combate. Por favor, confiem em nós três; isso já será de grande ajuda.

—Ele tem razão – respondeu Jack – Não acho que devam entrar na batalha, vai ser perigo demais.

—Garotas, sejam razoáveis – disse Danny, que acabara de voltar – O risco é grande demais.

—Nós entendemos – disse Sam – Mas querem que a gente fique escondida enquanto vocês enfrentam a morte certa?!

De repente, Aethel se lembrou de uma cena do passado, da época em que havia conhecido os gêmeos Pines, da batalha contra Gael – o mago sombrio – e da coragem de uma moça chamada Pacífica, que também recusou a deixar Dipper em um momento de grande necessidade.

Ele havia presenciado aquela cena ou Merlin lhe contou posteriormente? Aethel já nem sabia distinguir esses detalhes do passado dos sonhos que às vezes o atormentavam durante as noites escuras, como se algo em seu subconsciente quisesse sair e lhe dizer coisas importantes.

Ele estava divagando, como fazia com frequência, mas logo a discussão tomou ares mais belicosos, fazendo com que o rei se libertasse de suas divagações e terminasse o debate:

—Farão como eu determinei. Entendo como se sentem, mas duas jovens em uma batalha é moralmente execrável! Me perdoem, mas serão mais úteis se me ajudarem a montar as armadilhas e cuidarem dos cavalariço. Pensem por um momento: se a terra for regada com o nosso sangue, quem nos recolherá do campo, se vocês duas estiverem entre os caídos? Quem preparará nossas mortalhas e dirá “estivemos lá e vimos a coragem deles”? Quem levará a Excalibur tingida de vermelho para meu mentor e amigo, Merlin, para que ele também fique de luto? Não percebem que ele vai querer saber o que aconteceu e apenas vocês poderão contar tudo, nos mais bobos detalhes? Julgam que sou injusto por privar vocês duas da violência… Mas quão belo o mundo seria, se todas as pessoas fossem privadas de violências como essas!

Fazendo uma pausa momentânea, Aethel pareceu se lembrar de Arthur – o grande rei – e de uma conversa que tivera com ele no passado sobre como poderiam tornar o mundo um lugar de paz e justiça.

Logo o imperador perdia-se em lembranças das lutas esportivas, das gestas cantadas pelos grandes poetas, das belas damas movendo seus lenços e gritando “meu cavaleiro!”, durante as justas.

As lembranças tiraram de seu o rosto a expressão altiva e lhe deixaram com certo ar melancólico, tomado pelo cansaço, como se alguma coisa tivesse feito o rei mergulhar em mais reflexões; mas ele, saindo rápido de sua distração, encerrou:

—Sim… farão como eu disse; sou imperador e meu desejo é lei.

Apesar de não gostarem da resposta, as garotas tiveram que se contentar com a decisão de Aethel, pois o rapaz poderia ser tão amável como um príncipe dos contos de fadas quanto severo, tal qual um pai na busca de corrigir os filhos.

Era um tanto engraçado ver um adolescente se comportando daquela forma, mas também era um pouco triste, de modo que Rosa e Sam olharam para Aethel e imaginaram Atlas segurando o céu.

Deixando questões menores como essa de lado, o rei empilhou as toras de madeira e se preparou para acender o fogo, quando Jack chegou e, sem mais nem menos, abriu a boca e soprou uma chama, que logo acendeu os madeirames.

Aethel bateu palmas e disse “você esconde talentos!”, enquanto o grupo riu pra valer.

Como pedido pelo imperador, as garotas abriram o saco de provisões e ajeitaram os víveres em cima dele, enquanto Aethel foi ver se conseguia pescar alguns peixes – o que se mostrou um tanto frustrante no início, já que o regato era pequeno demais e o rapaz precisou seguir alguns metros até achar a parte mais cheia do leito daquele pequeno rio, onde conseguiu pescar 7 peixes usando a Excalibur, que eram rapidamente presos em pequenos galhos de arbusto.

Assim como os índio, que lançam suas setas em direção aos peixes, Aethel aproximava a espada da superfície da água e, em uma estocada rápida como uma flecha, atravessava os nadadores com a lâmina.

O processo era um pouco demorado e exigia paciência, mas tudo valeu a pena quando o rapaz voltou com peixes de tamanho médio, que foram rapidamente descamados com a espada e assados no fogo.

Após fartaram-se a comer, Aethel lhes contou sobre algumas lendas do império, como a grande Dama do Norte que trazia o inverno; o jovem Jack Frost, que voava junto a geada e a neve fria; Gael e seu amor por Ágata; a tragédia minóica, ocorrida por volta de 1625 a. C. , que remontava as origens dos ghalaryanos; dentre outros fatos e lendas.

É uma pena que um texto não conseguir exprimir toda a eloquência de um bom contador de histórias: por mais que um escritor se esforce para transmitir o tom de voz, as palavras, os gestos e as entonações, com descrições minuciosas, não adianta…

Palavras em uma folha de papel nunca conseguem passar ao público a plenitude de uma história contada ao vivo e em cores, seja devido ao ambiente ou pela própria força que a presença do narrador leva consigo: textos jamais conseguem atingir aquele “uau!” que tanto queremos.

Com essas divagações, não vale a pena buscar o impossível, portanto, imaginemos a voz de Aethel, que segue imperiosa ou doce, conforme as tramas se desenrolam, em meio aos personagens lendários, aos reis, heróis, deuses cruéis, santos e profetas…

As mãos de Aethel se erguendo no alto, apontando para as estrelas, que brilham fulgurantes no céu, como uma legião de anjos aplaudindo as narrativas; a Lua que olha tudo, admirada, como uma noiva que anseia pelo momento em que estará diante do altar para ouvir seu amado dizer “aceito”.

As narrativas seguem até o momento em que Aethel caminha próximo ao regato e aponta para um espaço entre as rochas, por onde se pode ver o céu e algumas montanhas distantes:

—Entre aqueles dois rochedos, que parecem tocar o céu, está o desfiladeiro de Nimrod, que nos desafia a protegê-lo do inimigo: lá, seremos cadáveres ou heróis.

Nestes momentos, quando lembrava-se dos feitos do passado, das lendas e de outros fatos, os olhos de Aethel se enchiam de uma paixão tão gigantesca, que nada parecia capaz de trazê-lo para baixo.

Ali, com aquelas palavras inspiradoras, ele já não era mais menino ou adolescente, mas algo maior, digno de ser obedecido, cantado pelas lendas e elevado às posições mais nobres: era o herdeiro dos Ryu; o único imperador ghalaryano; o legítimo e eterno rei de Ghalary.

Após ouvirem as grandes histórias, todos foram dormir, com exceção de Aethel, que ficou de vigília durante mais algumas horas, logo distraindo-se com as belas constelações noturnas e caindo no sono de Morfeu.

Seria uma noite cheia de sonhos agradáveis, que deveriam preparar aquele grupo para um doloroso dia de trabalho duro, pois o inimigo logo estaria próximo do grande desfiladeiro, para cair em uma cilada ou conquistar um império…


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Notas finais do capítulo

Alexandre e Bucéfalo:
Supostamente nascido no mesmo dia que Alexandre, o Grandre (356 a.C. - 323 a.C.), Bucéfalo foi seu campanheiro de batalhas durante muitos anos, tendo sido comprado para Alexandre por seu pai, Felipe II (382 a.C. - 336 a. C.).
Felipe recusou o animal para si por julgá-lo demasiado inquieto, não se deixando montar.
De acordo com a tradição, o jovem Alexandre se deu conta de que o cavalo temia a própria sombra e, após acalmar o animal, pôde domá-lo.

Marengo:
Famoso cavalo de guerra de Napoleão Bonaparte. Comprado no Egito, em 1799, Marengo (1793-1831) seguiu com Napoleão por mais de 15 anos. Porém, apesar da crença popular, o imperador francês teve ao longo de sua carreira inúmeros outros cavalos (certos historiadores falam em mais de 50 animais).

Facínora:
Pessoa perversa e criminosa.

Vitélio:
Aulo Vitélio Germânico (24 de setembro de 15 d.C. — 22 de dezembro de 69 d.C.) foi um imperador romano que governou o império após a morte de Nero, durante alguns poucos meses, em 69 d.C., sendo famoso por seu apetite voraz e sua crueldade.
No final de seu reinado se viu derrotado, politicamente destruido e abandonado pelos poucos soldados que ainda se mantinham ao se lado.
Vitélio foi capturado por soldados inimigos, humilhando pela plebe, torturado e executado.

Gesta:
No caso em questão, Aethel estava se lembrando de composições poéticas muito populares da idade média, que narravam feitos memoráveis e/ou heróicos, fossem eles reais ou imaginários.

Justa:
Durante a época medieval, ocorriam competições em que dois cavaleiros montados em cavalos e segurando lanças, corriam um em direção ao outro, no intuito de desmontar o adversário. Essas eram as famosas "justas".



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