As Crônicas de Aethel (II): O Livro das Bruxas escrita por Aldemir94


Capítulo 12
O Problema de Danny




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Já fazia alguns dias desde que Aethel combateu Cláudio no desfiladeiro de Nimrod, além de ter sido necessário despender mais algum tempo para tomar algumas bases e fortes leais ao ardiloso general; agora era chegada a hora de voltar para casa.

Sam e Danny ficaram animados em retornar ao palácio, mas Rosa parecia mais preocupada com os próximos passos de Aethel, a saber: interrogar Cláudio; reorganizar as legiões rebeladas; decidir o que fazer com as unidades revolucionárias - grupos de soldados que, apesar de terem jurado lealdade a Aethel, ainda eram os homens que o jovem imperador mais odiava em todo aquele mundo; e, por fim, planejar seu triunfo (cerimônia majestosa que, antes de tudo, precisava ser autorizada pelo senado).

Rosa mirava a atenção nos olhos de Aethel (esses carregados por uma mistura de entusiasmo e frieza, como se esperaria de um líder militar) e, após suspirar, questionou o rei:

—Então vai mesmo interrogá-lo?

—Mas é claro, senhorita Rosa - respondeu Aethel, com sua habitual educação - Cláudio é um traidor e deve pagar por se levantar contra mim. Além do mencionado, devo  descobrir se por trás dessa sombra existem outras, ainda mais sombrias.

—Aethel… você está com medo desse homem?

—Não, mas é provável que alguém tenha instigado ou patrocinado esse traidor… Mas quem? Alguém do senado?

—E se foi aquele tal de Atreu? Ele não parecia muito afeito à paz e conversa. E se ele queria causar uma guerra civil e depois acusar algum país extrangeiro? Pense bem, Aethel! Com isso ele teria a desculpa para invadir uma nação estrangeira e anexar o território dela ao império!

Tanto Aethel quanto Jack e Rosa ficaram surpresos com a suposição de Sam (que devia ser mais esperta do que imaginavam), mas Danny não esboçou qualquer reação; o garoto fantasma conhecia sua namorada e sabia de sua perspicácia.

O assunto bem poderia ter se delongado por mais alguns minutos, mas Aethel ordenou que um grupo de dez soldados erguesse uma tenda para iniciar o interrogatório de Cláudio, sendo prontamente atendido.

Tecnicamente não era necessário, tendo em vista que, naquele momento, as tropas estavam descansando no forte de Petrus Magnus, que havia sido tomado por Aethel no dia anterior, porém, o imperador não desejava se demorar ali e também acreditava que uma tenda ajudaria a destruir qualquer imagem de nobreza que Cláudio ainda pudesse ter de si próprio.

A questão é que os fortes ghalaryanos eram confortáveis, especialmente em relação aos alojamentos dos oficiais (o que Aethel achava absurdo, já que isso poderia tornar os militares suscetíveis a ambicionarem privilégios, chegando a questionarem a autoridade dos comandantes que não partilham dessa visão), sendo compreensível a decisão do imperador.

Após dois legionários amarrarem Cláudio e sentarem-no em um banco sem encosto, Aethel sentou em um banquinho igual e iniciou o interrogatório, sempre com a mão esquerda no cabo da Excálibur e tendo Danny e Jack atrás de si, protegendo a entrada.

Com seu olhar severo, o imperador questionou:

—Cláudio, outrora chamado “Oriental”, em seus dias de honra, porque se rebelou? Achou mesmo que eu não faria nada?

Com um olhar de desprezo completo, o general fitou seu imperador e respondeu:

—Achou mesmo que nossas barrigas ficariam doendo, enquanto você e os da sua laia caminhavam em seus palácios dourados e se rejubilavam com todo aquele fausto e glória, como se fossem deuses? Não sei porque Deus me abandonou, mas ainda creio na misericórdia dele… Deus me trará o poder para levar você e sua maldita dinastia de volta ao inferno!

—E para encher suas barrigas, você achou por bem roubar os mantimentos dos camponeses? Vocês iam matá-los de fome; não tem nada a dizer sobre isso?

—Aethel, você e os do seu sangue são tiranos… Na verdade, será que seus amiguinhos sabem sobre alguns de seus ilustres antepassados, como aquele a quem chamamos “sanguinário”? Eu sou um herói do povo; mas você é o diabo.

Jack e Danny não podiam acreditar nas ofensas de Cláudio, tampouco na tranquilidade absoluta de Aethel, mas ficaram ainda mais surpresos quando Sam (que até o momento momento preferira ficar em silêncio) tomou a palavra:

—Senhor Cláudio, eu entendo que essa coisa de aristocracia, monarquia e tudo mais pareça injusto. Você estava lá com o povo, lutando por ele em terras estrangeiras, até que pensou no porque deveria ficar travando guerras enquanto a nobreza ficava em seus palácios. Essas coisas são complicadas, eu sei disso. Mas a elite também cumpre seu papel na manutenção do Estado.

—Garota - respondeu Cláudio - Me recuso a ouvir sermões de uma riquinha estrangeira; você fede a essa maldita elite!

—Ei, cara! Não fala com ela assim! - gritou Danny, cerrando os punhos - Virar fantasma!

Nesse momento, todos viram Danny assumir sua forma fantasmagórica, com aquela expressão furiosa que tanto surpreendeu as tropas de Cláudio, pronto para lançar um raio de plasma, porém, foi Aethel quem fez o primeiro movimento.

Avançando para o general e segurando-o pelo pescoço com a mão direita, o imperador fitou o homem com fúria e sacou a Excalibur com a mão esquerda, dizendo com frieza, enquanto a lâmina ficava próxima ao pescoço de Cláudio:

 -Se falar com ela dessa forma de novo, você corre o risco de não respirar mais… Agora a pouco você falou do “sanguinário”, de meu ancestral, Vladimir III… interessante. Até aqui tenho tratado você com a boa educação ghalaryana e, se isso te traz algum alívio passageiro, pode continuar a me ofender… sinceramente, não me importo, meu ego não é frágil como os equipamentos das suas legiões. Porém, sugiro que trate as senhoritas Rosa e Samantha com o devido respeito, como se espera de um cavalheiro de Ghalary… ou a próxima tarefa dos seus homens será limpar o seu sangue do carpete, senhor Cláudio.

—Falou como um Ryu, meu “senhor” - debochou o general - Vladimir estaria orgulhoso.

—Cláudio, antes de mais nada, já enviei um comunicado ao senado explicando a situação. Felizmente sempre há águias nestes fortes militares para envio de mensagens. Saiba que sua família não sofrerá nenhum tipo de represália, mesmo que você não coopere  comigo e continue a me ofender.

—E devo acreditar em um Ryu?! - vociferou Cláudio - O último imperador que tivemos arruinou o império e mergulhou o país na guerra civil! Meu irmão morreu naquela revolução, seu moleque maldito! E a culpa é da sua dinastia e desses idiotas burocratas! Eu quero a sua morte, Aethel! Para mim, você é a encarnação do mal!

—Aí, cara! - disse Jack, com expressão de poucos amigos - A gente tá tentando ser legal, e você continua com essa marra toda? Pra começar, porque você acha que o Aethel tem alguma culpa nisso tudo?

—Meu rapaz - começou o geral - sua blusa é muito bonita e arrumada. Vejo que seus pés não estão descalços e suas mãos não tem feridas ou calos… Garoto, já chegou a carregar pedras, cavar trincheiras, treinar com equipamento pesado até a exaustão, só parando ao fim do dia, quando seu corpo está coberto de poeira, dores musculares e feridas?

—Eu sou o dragão ocidental! - falou Jack, com fúria - Acha que nunca precisei treinar na vida? Que nunca dei duro e voltei machucado pra casa?! Sorte sua não conhecer meu avô!

—Mas você sempre teve quem cuidasse de você, não é? - respondeu Cláudio - Sempre teve pão na mesa, água para matar a sede; não compare nossas guerras com suas missõezinhas… “herói”.

—Dragão na área! - gritou Jack, logo deixando a forma humana e revelando-se como o dragão de escamas vermelhas e olhar nada convidativo.

Cláudio não mudou sua expressão, apenas cuspindo no chão (um ato infame jamais tolerado pelos ghalaryanos) e disse:

—Houve um tempo em que os líderes do império combatiam as ameaças, ao invés de se unirem a elas… Você, “meu imperador”, desonra sua posição estando em amizade com essa besta cuspidora de fogo… Você não é um rei… Não tenho como cooperar com uma criança que não conhece nada além dos seus travesseiros de penas, mesa farta e teto decorado com pinturas de museu.

Suspirando, Aethel ajeitou seu banco, recolheu a lâmina da Excalibur e caminhou até a entrada da tenda. para surpresa de seus amigos.

Aethel não fazia o tipo ameaçador e não se sentia apto a interrogar alguém, além disso, sentia-se esgotado quando precisava lidar com pessoas, especialmente em ambientes cheios (o que, aos olhos do rapaz, era o caso daquela tenda), de forma que não sentia mais vontade de continuar com aquilo.

“Derrotar inimigos é bem mais fácil do que conversar com eles”, pensou o rei, enquanto convidava seus amigos a saírem dali e o acompanharem até a parte mais alta do forte e admirarem as estrelas que, considerando o horário, já deviam estar no céu.

Após uma pequena pausa, Aethel dirigiu suas últimas palavras para seu desagradável prisioneiro:

—Não precisa se preocupar, seu jantar vai ser trazido em alguns minutos, e você pode dormir aqui, vou providenciar uma almofada, ainda que não queira… Sabe Cláudio, pode me odiar se quiser, eu já disse que não ligo… Mas talvez ache interessante saber que faz apenas um mês que eu estou morando em um palácio e que antes disso eu vivia em uma cabana na floresta. E a riqueza, fartura e fausto que você tanto parece odiar, bem, na verdade eu nunca tive muita coisa além do simples, como pão, sopa de legumes e coisas assim… mas não lamento nada, sempre fui grato por tudo. Eu nunca passei fome, você está certo, mas Merlin me ensinou o valor do trabalho e com ele aprendi muitas coisas, como assar pão, cultivar a terra e agradecer a Deus pela chuva.

—Mais mentiras da dinastia Ryu - vociferou Cláudio.

—Acredite no que quiser… - respondeu Aethel - E acho que pode ter razão sobre a dinastia Ryu; desde que eu descobri que faço parte dela, só tive problema. Mas sabe… é por fazer parte dela que tenho o poder para mudar esse mundo injusto e cruel que você tanto odeia… Aos poucos eu consigo.

Encerradas as palavras, Aethel se retirou junto com seus amigos e caminhou até uma escadaria de madeira, que conduziu o pequeno grupo até o topo da muralha de pedra.

Recostando-se na amurada, o imperador fitou a linha do horizonte, que parecia ser tocada pelo manto azul e estrelado do céu, trazendo aos olhos do rapaz um brilho que dissolveu todo aquele cansaço e frustração do interrogatório.

Após Danny e Jack voltarem ao normal, Aethel suspirou e disse:

—Uma vez Merlin me transformou em um pássaro… Eu gostaria de ser um pássaro agora e voar para longe… Livre…

—É um sonho bonito - disse Sam.

—É Samantha… É lindo sim… Jack, pode chamar Felipe aqui, por gentileza?

Assentindo com a cabeça, Jack desceu as escadas e chamou o bondoso general, que logo chegou, com seus cabelos arrumados e uniforme bem passado (porque os ghalaryanos prezam pela limpeza e roupas bem passadas) e fez continência ao imperador:

—Salve,  grande Aethel, senhor do mundo, eis-me aqui para honrá-lo e servi-lo.

—Salve, nobre Felipe, herói do império e amigo do imperador. Que seu nome seja escrito no livro da vida e sua casa seja abençoada. Agora, se me permite, poderia me fazer um favor?

—O que desejar, majestade.

—Por gentileza, poderia guiar este vasto exército até a capital? Gostaria de levar meus amigos pessoalmente por uma rota alternativa, por questões pessoais.

—Estou aqui para servi-lo, meu senhor, mas, se me permite dizer…

—Mas é claro, meu irmão - disse Aethel, com um agradável sorriso - Sabe que pode falar livremente comigo.

—Bem, majestade… Seria usual que o imperador guiasse as tropas em uma situação como a atual… Então, porque deseja voltar por outra rota com seus amigos?

—Porque estou cansado, general - respondeu Aethel, com sinceridade - Há pessoas com fome, uma possível conspiração internacional me ameaçando, a questão do pomo de ouro e também aquele cavaleiro verde do qual nada sei; meu espírito está enfraquecido demais para guiar essas tropas e, com certeza, as unidades revolucionárias podem se aproveitar disso… Não! Alguém como o senhor, meu irmão Felipe, será muito mais adequado para essa tarefa do que eu (como sempre o foi nessas questões militares desde antes do meu nascimento).

Sem esperar resposta, Aethel caminhou até uma pequena caixa próxima e dali tirou o velho tapete com o qual a boa Agripina o havia presenteado.

Aproximando-se da escada, Aethel chamou suas tropas e lhes comunicou de seus deveres de Estado e acerca de sua decisão em retornar por conta própria, avisando a todos de que, em sua ausência, Felipe deveria ser visto como seu representante.

Naturalmente houveram alguns murmúrios (muitos vindos das unidades revolucionárias), mas Aethel não se importou e sussurrou para Felipe:

—Posso contar com você?

—Será uma honra… meu irmão.

Alegremente, Aethel estendeu o tapete no chão e se sentou de pernas cruzadas, sendo acompanhado por Sam, que se sentou atrás dele e o abraçou (pois temia cair quando já estivessem em grande altitude).

Antes que o tapete subisse, o general perguntou se Aethel não preferia seu cavalo alado, ao que o rapaz apenas pediu que esse fosse solto, pois certamente seguiria o rei e seus amigos, o que Felipe fez sem questionar.

A bem verdade, o imperador já havia se esquecido de sua nobre montaria, tudo graças ao infrutífero interrogatório com Cláudio (além disso, também já estava se esquecendo do triunfo que precisava solicitar ao senado, reorganização de tropas e qualquer outra ideia que tinha cogitado antes de interrogar Cláudio, graças a possibilidade de voar livre pelo céu noturno).

Apesar da gentileza do general Felipe, era fato que Sam, Rosa, Jack e Danny também já estavam cansados de cavalos alados - e das dores que montá-los poderia trazer (pois não há grande diferença entre os equinos terrestres que habitam nosso mundo e os mais nobres do império ghalaryano, mesmo aqueles que foram abençoados com asas, a exceção do fato de que os alados sobem ao céu).

Jack e Danny assumiram suas formas especiais e, após Rosa montar no dragão ocidental, Aethel disse ao tapete:

—Como Merlin fazia… ah, sim, agora me lembro… higitus figitus zomba kabom; tapete, por favor, levante do chão.

Bastou dizer as palavras mágicas - cuja magia devia estar mais na educação que em algum ato sobrenatural - e o tapete alçou voo pelo céu, dançando como um véu de noiva soprado pelo vento.

A Lua cheia mostrava-se garbosamente no grande manto da noite, mas qualquer um lá embaixo nas planícies verdejantes conseguiria ver o tapete deslizando pelo ar, o dragão vermelho planando e o misterioso rapaz de aura fantasmagórica acompanhando o distinto grupo.

Os três garanhões alados voavam ao lado do tapete mágico, enquanto o dragão ocidental respirava o agradável ar noturno daquele mundo (esquecendo-se da poluição de New York e de tantas outras cidades de seu mundo natal).

Enquanto cruzavam o céu, Aethel admirou a Lua e, sem fitar Danny, perguntou:

—Danny Phantom, algo o aborrece?

O garoto fantasma parecia um tanto incomodado já a algum tempo, mas preferiu fazer que não e responder:

—Eu tô legal, porque?

—Bem… seu semblante denota incômodo e frustração. Mas se não quiser falar, está tudo bem; serei respeitoso com sua privacidade.

Como sempre, a polidez de Aethel impressionou Sam e Rosa, que acabavam tentadas a comparar Jack e Danny com o imponente imperador.

Como estava frio e começou a ventar com mais força, Sam abraçou a cintura do rei com mais força e fechou os olhos, visando protegê-los de qualquer poeira que a ventania pudesse trazer.

Aethel, por sua vez, retirou seu casaco e cobriu a amiga - como manda o protocolo da boa educação dos ghalaryanos - também fechando os olhos em seguida (não para proteger a vista, mas para refletir sobre as ofensas de Cláudio e suas críticas ferinas).

De repente, o rapaz foi tirado de sua distração por uma conversa entre Sam e Danny:

—Danny, qual é o problema? Você não parece nem um pouco feliz.

—Eu tô bem, é sério - respondia Danny -, só estou um pouco cansado.

—Então devemos parar - sugeriu o jovem rei - Vamos todos descer no bosque próximo, sei de uma clareira lá que vai de encontro a um lago.

—Pretende nadar a essa hora? - perguntou Jack, segurando o riso.

—Pretendo dar de beber aos cavalos, meu amigo reptiliano - respondeu Aethel, com um sorriso amigável.

Seguindo as orientações do rapaz, os amigos desceram em uma clareira próxima a um grupo de árvores antigas, iluminadas por pirilampos e um pequeno cortejo de fadas.

Após enrolar o tapete e amarrá-lo gentilmente na garupa de seu garanhão branco voador (Felipe havia se lembrado de colocar nos cavalos bolsas de utilidades (algo padrão para legionários) - pois o velho general era responsável e buscava manter suas tropas em plenas condições de combate), Aethel estendeu a mão esquerda e ajudou Samantha a se levantar.

  Jack voltou ao normal e o grupo seguiu as fadinhas (eram sete fadas com cabelos dourados, como o ouro de Midas, que usavam vestidinhos coloridos feitos com pétalas de petúnias, gardênias e rosas azuis) até chegarem a uma nova clareira, onde quatro faunos tocavam flauta e dançavam alegremente, sendo acompanhados por mais fadas, que enchiam o ar com encanto.

Também haviam quatro ninfas com vestidos de linho branco e azul, coroas de flores em suas cabeças e rostos angelicais, que rodopiavam em uma dança feliz. Elas saltavam no ar e depois pousavam na grama com pés delicados como plumas.

Ao centro de toda aquela alegria havia uma fogueira, onde assentava-se ao lado um velho sábio da floresta, com pele enrugada e cinzenta (que Danny percebeu ser, literalmente, feita de pedra), túnica e capa feitas de musgo e um cajado feito de madeira de carvalho antigo: tratava-se de um troll das montanhas escarpadas que, cerca de 378 anos antes (número confirmado por suas próprias palavras) migrara para aquele bosque fechado, na busca de paz e sossego.

O velho contava sua história para um grupo de três pequenos faunos, com a voz de um avô entretendo os netos:

—Na grande montanha escarpada, onde as pontas tocam o céu, um dragão verde invadiu a caverna onde meus irmãos e eu vivíamos em paz e comeu nosso mingau. Depois disso, juntou nossas confortáveis camas de palha e incendiou-as, fazendo assim um leito chamuscado para si! Pois vocês sabem, meus pequeninos, que essas feras de escamas verdes só dormem em camas tostadas, pois gostam do cheiro de carvão e coisa queimada. Resultado: Eu e meus dois irmãos tivemos que mudar de casa! Vejam só o absurdo! Eles escolheram mudar para outra montanha escarpada - disse o troll, apontando para uma montanha com a mão esquerda - Mas eu preferi ficar aqui embaixo, festejando com vocês, porque aqui não tem dragão verde para roubar casa de ninguém.

Ao ouvir a narrativa simples, Aethel não pôde deixar de dar uma risada tímida mas audível, que foi rapidamente percebida pelo grupo festeiro.

As fadinhas não puderam apresentar os amigos de Aethel (pois não os conheciam ainda) mas também não falaram do jovem monarca, afinal de contas, todos ali sabiam quem aquele rapaz bem vestido e de espada na cintura era.

Parando a música e aproximando-se do portador da Excalibur e de seus amigos, aquelas criaturas alegres curvaram-se em respeito e saudaram Aethel como seu único e legítimo imperador.

“Certamente ouviram sobre a revolta de Cláudio", pensou o imperador, logo curvando-se em sinal de respeito e pedindo-lhes para descansar ali com seus amigos.

Antes que dissesse qualquer coisa, os faunos (adultos e pequenos) e todas as outras criaturas ali presentes alegraram-se e começaram a tocar músicas ainda mais belas e animadas do que as anteriores: ter seu imperador ali era algo que lhes alegrava os corações de tal maneira, que logo um grupo de passarinhos próximos trouxe frutinhas em seus bicos e as ninfas montaram uma humilde mesinha de madeira, onde foram postos pães de mel cobertos por chocolate de Santa Maria, biscoitos com raspas de laranja cristalizadas (uma iguaria nas terras do sul, segundo dizem), copos de cristal limpos e jarras de prata contendo chocolate quente, vinho do norte e água fresca.

O chocolate quente era feito de leite, mel, canela, chocolate das montanhas nevadas e pedaços de biscoitos que, ao entrarem em contato com o adocicado líquido, amoleciam e acabavam por se dissolver, deixando a bebida mais encorpada.

O vinho do norte, por outro lado, era feito com um tipo de caldo gelado de laranja temperado com um pouco de canela e com raspas congeladas de limão adicionadas - o que lhe conferia um sabor um tanto cítrico, de forma que os pequenos faunos preferiram apenas o chocolate.

 Aethel agradeceu aos amigos da floresta (que tão bem lhe haviam recebido em meio aquele lindo festejo), fez uma oração rápida de agradecimento a Deus, encheu duas taças com chocolate quente e as ofereceu a Rosa e Sam, após perceber que ambas tentavam se aquecer naquele frio.

As garotas agradeceram a gentileza e, enquanto o rapaz servia pão e biscoitos a Jack em um pequeno prato de madeira (gentilmente trazido pelo sábio troll), uma das ninfas trouxe uma caixa contendo inúmeros talheres (sendo uns de ouro, outros de prata e ainda mais de madeira de cipreste).

Logo todos estavam saboreando uma doce refeição, enquanto os faunos adultos tocavam melodias cada vez mais belas.

De repente, os pequenos faunos se aproximaram de Aethel e pediram-lhe que contasse uma história, sendo prontamente atendidos.

O rei lhes contou a história de sua chegada a cidade de Gravity Falls, falou do gentil Soos, do ganancioso Stan e das aventuras que havia vivido naquela parte do Oregon.

Os pequenos divertiram-se a valer quando Aethel falou da Excalibur e de como estava hesitante em removê-la da bigorna.

A narrativa seguiu até seu já lendário confronto contra Gael, que terminou com uma grande vitória.

—E quanto ao elfo? - um dos pequenos faunos perguntou.

—Falam de Björn? Ele fugiu de sua cela e seguiu seu caminho; nada mais se sabe dele.

As crianças esfregavam seus pêlos castanhos e batiam com os cascos no chão, tamanha era sua animação, até que um dos faunos adultos deu batidinhas carinhosas nos dois chifrinhos de uma delas e o trio se acalmou.

Enquanto o imperador tirava as dúvidas dos pequeninos, Sam chamou Danny para perto de uma árvore e foi direta:

—Danny, qual é o problema? Todos estão alegres, mas você parece incomodado com alguma coisa.

—Não é nada, Sam - respondeu o garoto - Está tudo bem.

—Danny, você nem se destransformou ainda! Por favor, me diz o que está errado.

—Olha Sam, acho melhor deixar isso prá lá, não é nada…

Depois de alguns instantes, Aethel se aproximou do casal e perguntou se desejavam mais um pouco de chocolate quente, ao que ambos recusaram, então o rei convidou Sam a se juntar as ninfas (pois elas estavam curiosas com a aparência gótica da garota e desejavam conversar) e convidou Danny para uma caminhada pela floresta.

Sam disse que seu namorado não estava ses sentindo bem, ao que o imperador respondeu:

—Mais um motivo para uma caminhada.

Após se despedirem da garota, ambos seguiram pelas árvores até chegarem em uma nova clareira, onde havia um lago e uma pequena queda d'água, que refletia as estrelas e a luz da lua.

Parando, Aethel caminhou até o lago, se ajoelhou e fez uma concha com as mãos, que logo ficou cheia com aquelas águas cristalinas.

Danny olhava ao redor, sem sorrir ou prestar muita atenção aos pios das corujas, enquanto Aethel lavava o rosto e ajeitava a faixa imperial (já um tanto amarrotada).

Como o garoto fantasma ficava em silêncio, o rei falou:

—Agora que estamos sozinhos, você poderia dizer o que tem contra mim?

—O que tenho contra você? - perguntou Danny, surpreso - Como assim?

—Você está irritado comigo, disso não tenho dúvidas, basta prestar atenção na maneira como está me olhando agora… Por acaso eu o ofendi?

—O quê? Não… porque pensa isso?

—Muito bem… se vai continuar com essa postura, então só há um jeito de resolver isso - disse Aethel, sacando a Excalibur com a mão esquerda e desafiando o amigo para um combate.

Antes que Danny esboçasse qualquer reação, Aethel avançou contra ele, com a afiada lâmina partindo da esquerda, em um corte direto que, sem dúvida, teria partido o garoto fantasma em dois, caso esse não ficasse intangível.

—Você ficou louco?! - disse Danny, enquanto voltava a ficar tangível e disparava um raio esverdeado com a mão direita contra o rei que, sem dificuldades, abaixou.

Em um movimento rápido, Aethel acertou o joelho esquerdo de Danny com o cabo da espada, provocando-lhe tamanha dor, que o garoto voltou a sua forma humana.

—Virar fan… - disse Danny, sendo interrompido por um golpe direto da palma esquerda de Aethel, cujo semblante era tranquilo.

Com as duas mãos no rosto, o rapaz tentou aliviar a dor, logo voltando a si e cerrando os punhos contra o imperador, que já havia guardado a legendária espada:

—Vou acabar com você, Aethel!

—Muita fala, pouca ação - respondeu o rei, com um sorriso tranquilo.

Danny tentou acertar o rei com um gancho de direita, porém, Aethel recuou um passo e segurou o punho do adversário com a palma direita, puxando o rapaz para perto e acertando a testa do garoto fantasma com uma cabeçada forte.

—Virar fantasma! - gritou Danny, retomando sua forma fantasmagórica.

Sem esperar, o garoto carregou os punhos com energia fantasmagórica verde e avançou contra o rei.

Entre esquivas, pequenos saltos, agachadas e  recuos, Aethel desviava facilmente dos socos de Danny que, cada vez mais furioso, não parava de avançar.

Após alguns instantes, quando o adversário parecia cansado, Aethel abaixou-se velozmente e acertou com o punho direito o estômago de Danny, fazendo-o cair de joelhos.

Nesse momento, Aethel fitou com pena o adversário que, com um olhar derrotado, disse em um sussurro:

—Porque eu não consigo fazer isso? Nem o Vlad era assim…

—Porque você está com raiva de mim, Danny - respondeu Aethel com voz severa - A raiva te deixa vulnerável, descuidado e com a guarda baixa…

—Você é forte demais - lamentou Danny, com as mãos no chão - Você venceu.

—Que valor há em uma vitória como essa? - respondeu Aethel - Danny… se o seu coração estivesse em paz, provavelmente eu não poderia derrotá-lo: você é mais forte do que eu.

Deitando no chão, Danny olhou para as estrelas, enquanto dizia:

—Tá legal… eu tenho raiva… raiva de você, porque…

—Porque você está com ciúmes da Sam - terminou Aethel, sentando-se às margens do lago.

—Então… já sabia? - perguntou Danny, enquanto gemia com a dor - Precisava disso tudo?

—Se sente melhor? - perguntou o rei.

—Ainda estou com raiva - respondeu Danny - Mas não é mais como antes.

—Então precisávamos disso tudo - disse o rei.

Após uma pausa, Aethel se lembrou de Arthur, das intrigas entre cavaleiros - geralmente resolvidas com espadas - e quase perdeu-se em seus pensamentos, quando foi trazido de volta por Danny:

—Achei que você estava afim da Sam… entende? Acho que fiquei… com… com ciúmes.

—”Afim”? Como assim?

—Não me entendeu? É sério?

—Ghalaryanos são muito formais, ás vezes temos problemas com esse informalismo das terras além do véu.

—”Além do véu”? - perguntou Danny.

—Falo dos mundos que existem além do meu, como por exemplo o seu, o do Jack e também o da Mabel. Mas estava para me dizer o que quer dizer com “afim”... quer dizer que eu tinha alguma finalidade com a senhorita Samantha? 

—Quero dizer que você está gostando dela!

—Mas é claro - disse Aethel - Gostei dela desde o primeiro momento que a vi. Também gostei de você, do Jack, da Rosa…

—Não, você não me entendeu - disse Danny, cobrindo os olhos com a mão direita - Estou falando de “gostar” no sentido de se apaixonar, tipo gostar de alguém especial… como namorada, me entendeu agora?

—Francamente não - respondeu Aethel, com sinceridade - Não entendo nada de amor e relacionamentos; essas coisas são um mistério para mim. Merlin diz que um dia isso tudo fará sentido, como a gramática latina, mas ainda não entendo esses assuntos.

—Irmão, você tá por fora mesmo, não é?

—”Por fora” de onde?... Ah, sim, você quer dizer que eu não entendo isso tudo… Sim, você está certo.

Após se levantar do chão, ainda com um pouco de dor, Danny foi até às margens do lago e se sentou ao lado de Aethel, fitando os olhos do rei na busca de qualquer sinal de mentira, não encontrando nada além da mais pura sinceridade.

Surpreendido pela inocência de Aethel, Danny perguntou:

—Então porque está ficando tão próximo da Sam?

—Fala confusamente, amigo Danny - respondeu Aethel - É dever de um ghalaryano receber os visitantes de outras terras com toda a hospitalidade, principalmente com as damas, por isso eu buscava ser atencioso com a senhorita Samantha. Acho que interpretou minha prática cultural de forma equivocada.

—Acho que tem razão… Me desculpe, eu não pensei direito.

—Merlin diz que pessoas irritadas não costumam pensar direito… acho que pessoas com ciúmes também não. Mas também tenho culpa, não cogitei que meus costumes pudessem gerar desentendimentos: Aceite minhas desculpas.

Após fazerem as pazes, os dois começaram a rir, até que Aethel ficou em silêncio e disse:

—Danny… acha que eu sou a encarnação do mal?

Nesse momento, o garoto fantasma se lembrou das palavras ferinas de Cláudio e abaixou o olhar; “Aethel ainda estava pensando nisso?”, pensou o rapaz, “talvez ele também precisasse de uma troca de socos”, concluiu.

Com um sorriso, o garoto deu um soco amigável no ombro de Aethel e os dois começaram a rir, até que Danny perguntou:

—Então… um rei também se magoa, não é verdade?

—Mas é claro - respondeu Aethel - Meu coração é de carne, não de pedra.

Entre risos, os dois amigos olhavam para a Lua, sem perceberem que alguém os observava por trás das árvores: Samantha.

Com um sorriso no rosto, a garota sussurrou:

—Garotos são impossíveis…


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