Moeda de Troca escrita por Miss Siozo


Capítulo 9
Reflexão divina




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Havia algo que nenhum espectro do submundo poderia negar é que desde a chegada do ex-cavaleiro de Andrômeda aos domínios do deus Hades, aquele lugar poderia ser considerado o mesmo. Alguma coisa estava diferente naquela atmosfera que servia para dar o tormento para as almas condenadas. Muitas almas tiveram uma nova chance de reencarnar e poucas conseguiram chegar aos Elíseos graças a intervenção de Shun.

 

Era também fato de que o jovem passava dos seus próprios limites nessa missão que adotou para si. Apesar de não estar sendo mais guiado por sua antiga constelação guardiã, sacrificar-se em prol de algo maior que si sempre foi a marca registrada do virginiano teimoso. Também não passou despercebido pelo deus dos mortos que toda aquela força de vontade do garoto não era capaz de vencer os limites físicos de um ser humano.

 

— Vamos encerrar por hoje — levantou-se de seu trono — Minos de Griffon assumirá os julgamentos. Podem chamá-lo, por favor.

 

— Sim, Senhor Hades! — respondeu prontamente Markino de Esqueleto — Com licença.

 

Enquanto o espectro foi cumprir com sua tarefa. Hades observava a figura sentada no patamar mais baixo à sua direita. O jovem se levantava da cadeira com calma, mas logo ouviu um gemido baixo.

 

— Algum problema? — perguntou o deus.

 

— N-não.

 

— Você é um péssimo mentiroso, sabia? — falava num tom menos sério — Não possuo o hábito de usar o relógio que os humanos utilizam, mas creio que vou precisar.

 

— Não compreendo, senhor.

 

— Estamos aqui há bastante tempo. Na verdade, os últimos meses tem sido nesse ritmo e isso afeta a sua saúde — descia as escadas parando ao lado do rapaz — Caso não se cuide, eu terei que cuidar do seu julgamento em breve e uma certa ave de fogo irritante virá para arrancar até o meu último fio de paciência — comentou com certo sarcasmo.

 

— Desculpe — respondeu sem jeito — Eu queria continuar, mas também não gostaria de interrompê-lo.

 

— Teremos que estipular seus horários por aqui, então — apesar de tentar muito, não conseguia manter sua pose de durão com um garoto tão dócil — Não quero vê-lo enfurnado aqui por tanto tempo. Falei com a Pandora, vocês vão para uma escola em Londres na próxima semana.

 

— Escola? Não me quer mais aqui? — perguntou confuso.

 

— Você é um humano, apesar de tudo o que viveu. Digamos que desejo que viva mais experiências humanas. Será como uma pesquisa que irá auxiliá-lo nos próximos julgamentos.

 

— Uma pesquisa?

 

— Agora não me questione. Sabe o quanto detesto isso — bronqueou — Pandora passará os detalhes para ti amanhã. Precisa… — sua fala foi interrompida quando o garoto se apoiou em si rapidamente — Shun?

 

— Perdão… Cãibra…

 

— Oh! 

 

Markino entrou com Minos no salão e viu a cena inusitada. Hades logo notou as presenças e tratou de resolver o assunto sem dar margem para comentários.

 

— Vejo que chegou rápido, Minos.

 

— Certamente, senhor. Algum problema?

 

— Acho que meu consultor não está em seu melhor estado — pegou-o no colo e pulou em direção dos espectros. Em uma simples troca de olhares fez com que o adolescente dormisse — Leve-o para a enfermaria, Markino.

 

— Sim senhor — disse em tom baixo ao perceber que Shun já se encontrava desacordado — Licença — curvou-se brevemente antes de sair.

 

Minos se dirigiu para seu posto como juiz, mas não conseguia disfarçar o seu olhar curioso. Por mais austera que fosse a postura de seu senhor, pode perceber uma sutil mudança desde que todos retornaram à vida. A influência de seu antigo receptáculo o deixou mais empático do que se recordava de outras vidas. Parecia que a antiga natureza do governante do Submundo aflorava novamente.

 

— Antes de julgar a próxima alma desafortunada, eu gostaria de conversar com você — trancou as portas com seu cosmo — Preciso que seja sincero e não diga apenas o que eu queira ouvir. São poucos os que conseguem tal benefício.

 

— Pode perguntar o que quiser, senhor.

 

— Gostaria de entender tais olhares os quais direcionam a mim na presença de meu jovem “consultor” e como se dá a relação dele com os outros espectros.

 

— Bom, desde a chegada do jovem Amamiya -- referia-se ao rapaz sem patentes pelo sobrenome de registro — As coisas por aqui começaram a mudar — engoliu a seco — Não que as mudanças tenham sido para pior. Eu consigo reconhecer os méritos dele. Tanto que eu e Lune quando assumimos o posto aqui, levamos algumas das ponderações dele em consideração. Sinto que fazemos a justiça…

— Mas? — Hades sabia que havia algo a mais a ser dito.

 

— Longe das suas vistas ainda tem quem o vê com desconfiança. Afinal, ele foi um cavaleiro de Athena — explicava — O comportamento dele também não ajuda muito.

 

— Por acaso Shun os destratou?

 

— Não é isso. Sempre foi cordial, mas não conversa. Acho que só Pandora conseguiu a proeza de fazê-lo falar mais que duas palavras numa frase.

 

— Então os outros pensam que ele se acha especial, é isso?

 

— Alguns sim. Eu penso diferente — avaliava as melhores palavras para usar diante do deus — Shun sente falta de casa, trabalha demais ao lado do senhor para não pensar na própria dor e para dar o consolo para as almas que chegaram aqui em sofrimento.

 

— Agradeço pela sinceridade, Minos — destrancou a porta — Preciso tomar algumas providências antes de encontrar com os deuses gêmeos nos Elíseos.

 

Depois que Hades passou pela porta, o juiz suspirou de alívio. Ele estava temeroso pela sua opinião ser mal vista e levar algum tipo de punição por isso, mas seu senhor contrariou suas expectativas. Griffon não pensava mal do rapaz, apesar de vê-lo com desconfiança assim que chegou. Aos poucos a visão de um cavaleiro, de um receptáculo foi mudando para de um humano, um adolescente que carrega sem reclamar um fardo grande de traumas. Pelo tempo acumulado de todas as suas vidas, Minos via Shun como uma criança que precisava de ajuda, mas não era a pessoa certa para lidar com isso devido a sua falta de tato com o rapaz.

 

 

— Pandora! Que bom que veio rápido a Giudecca! 

 

— Os portais que temos por aqui vem a calhar, meu senhor — sorriu — Do que se trata o seu chamado com tanta urgência?

 

— Na verdade, eu estou com pressa para reencontrar Thanatos e Hypnos, mas queria resolver logo algumas pendências.

 

— Compreendo. Agirei o mais rápido que puder no que desejar.

 

— Ótimo! Preciso que traga os laudos médicos de Shun Amamiya para a hora que eu voltar.

 

— É complicado fazer isso. Tem sigilo médico, eles não revelam informações sobre um paciente contra a vontade dele.

 

— Pelo o que eu saiba, o garoto ainda é considerado menor pela lei dos humanos, não é? — a jovem assentiu — Então diga que eu quero saber ou melhor, roube se necessário.

— Tudo bem, se precisar apelar, eu o farei. Poderia me responder uma pergunta, senhor Hades?

 

— Até duas, Pandora — levantou-se do seu trono. 

 

— Só me lembro do senhor perguntar pela saúde de Shun naquela época em que chegou aqui. Aconteceu algo que despertasse alguma suspeita?

 

— Para mim é fácil perceber quando um humano não está nas melhores condições, principalmente as físicas, mas mesmo sendo um deus, eu possuo limitações — aproximou-se de um espelho presente de Hécate que mostra o que ele desejasse ver. Shun na enfermaria. — Minos me alertou sobre algo que eu não queria enxergar. Ele não é mesmo um de nós, mas está aqui dando tudo de si no trabalho, mas as relações…

 

— Estão em suspensão — completou a general. — Nós dois conversamos pouco. Por isso eu sugeri que fôssemos à escola. Tive vários tutores nos estudos, mas Shun não precisa saber disso. Tenho suspeitas de que ele possua um quadro depressivo.

 

— Como alguns dos espíritos suicidas que passaram pelo julgamento na primeira prisão?

 

— Isso! Não creio que a doença o afete igual a esses espíritos, mas o impede de formar novos vínculos.

 

— E sobre a relação entre vocês?

 

— Shun sente por mim gratidão por ter cuidado dele com tanta humanidade, porém se abre pouco — disse com pesar — Talvez por ver a imagem dele aqui refletida por tantos anos tenha feito com que eu me afeiçoasse a ele com facilidade, a personalidade dele também ajuda. O vejo como o irmãozinho mais novo que não tive.

 

— Compreendo. Por favor, traga-me o que eu pedi — abriu um portal para a hiperdimensão — Creio que ficarei pelos Elíseos para descansar e pensar sobre tudo. Voltarei amanhã. Até!

 

Na enfermaria do Submundo, Shun ainda dormia, agora não apenas pela influência de seu novo senhor, mas pelo cansaço absurdo que sentia. Uma enfermeira administrava o soro glicosado para reidratar o paciente teimoso que ganhara. Havia perdido as contas de quantas vezes ele chegou no mesmo estado ali, fora outras visitas para pedir medicamentos.

 

— Um rapaz doce, mas imprudente — notou algumas contrações musculares — Relaxante muscular também — murmurava ao pegar a medicação para injetar no acesso venoso.

 

 

Nos Elíseos, tudo estava tão belo quanto Hades se recordava antes da guerra que maculou aquele terreno sagrado. A rotina das almas bem-aventuradas e das ninfas voltou a normalidade de paz e descanso. O senhor dos mortos teve que dispor de tempo para borrar as memórias das almas do tempo da batalha e de quando vagavam pelos destroços de seu lar. Já as ninfas nada comentavam sobre esse período, apenas aproveitavam a tranquilidade disponível daquele lugar.

 

— Não pensava que fosse nos visitar tão cedo, senhor Hades — disse Hypnos.

 

— Cansou-se do brinquedinho novo que tomastes de Athena? — perguntou o outro gêmeo — Não me leve a mal, mas ainda tento entender a jogada que fez no tabuleiro.

 

— Então acho melhor irmos para os aposentos privados do castelo discutir — disse em tom sério — Não quero que nossa conversa pare nos ouvidos das ninfas ou das almas.

 

— Certamente.

 

O grupo rumou para uma construção nova e bonita. O castelo construído sobre as ruínas era de pedra clara e era a morada de Hades e dos deuses gêmeos ali nos Elíseos. Aquele era um ponto de refúgio cujo imperador mal esteve duas vezes após a reconstrução. Ali ele poderia se distanciar dos problemas e pensar sobre suas estratégias sem interrupções.

 

— Bom. Agora que estamos sozinhos, podemos conversar melhor — fechou as portas de sua biblioteca particular e sentou-se em sua poltrona — Sobre o que perguntava, Thanatos?

 

— Sobre sua jogada no acordo com Athena e Poseidon.

 

— Ah sim! — deu um sorriso — Minha jogada foi bastante simples, na verdade. Queria provar ao meu irmão Zeus, o quanto a filha dele se tornou tão egoísta quanto os humanos que ela com tanto empenho tentou defender.

 

— Então não teria levado o cavaleiro dela caso ela não tivesse pedido pela vida de Seiya? — perguntou Hypnos.

 

— De qualquer forma ela cairia sozinha, meus caros — começou a explicar — O planeta está condenado e mesmo que ela e Poseidon se esforcem, verão que a longo prazo a humanidade tornará a destruir tudo novamente. Eu iria reservar o meu pedido para o futuro, tal como fiz com meu irmão e poderia usar essa vantagem a meu favor.

 

— Ok. Compreendi essa parte e realmente concordo, mas e o garoto? Virou um simples capricho?

 

— No começo sim, não posso negar o quanto ele frustrou os meus planos quando não cumpriu com seu papel de receptáculo, mas estando na mente dele eu pude ver toda aquela motivação e baboseira de querer defender uma humanidade que o prejudicou bastante em ao longo de sua breve vida, uma verdadeira contradição!

 

— Os seres humanos são confusos. Morfeu me conta às vezes sobre os sonhos dos seres humanos e que muitos revivem suas experiências diárias, por vezes de modo estranho. Isso o deixa entretido.

 

— Sim. Agora retornando a pergunta, eu não faria nada demais com um rapaz doente, não sou covarde a esse ponto — suspirou — Também fiz uma promessa de não prejudicá-lo.

 

— Poderia simplesmente tê-lo trancado em uma cela e dispor do básico para que não morresse — sugeriu Thanatos convicto — Assim cumpriria com a promessa e puniria o traidor.

 

— Ah! Meu irmão! — o outro gêmeo chamou sua atenção irritado — Não vê que o cavaleiro jurou lealdade a Athena? Ele teria que fazer de tudo para cumprir com seu dever! — falou o óbvio — Pelo menos se portou como um oponente honrado.

 

— E tentou sacrificar sua própria vida pela vitória de minha sobrinha — completou Hades — Não podemos tirar o valor disso. O que fiz foi dar algo para ele fazer enquanto está sob meu poder.

 

— Dar uma posição de confiança de te ajudar a julgar as almas? Isso é deveras estranho!

 

— Esse jovem tem algo que me deixa intrigado para além da pureza de sua alma, seria um desperdício tê-lo como um simples servo.

 

— E essa posição não o engrandece em demasia? — perguntou o deus da morte.

 

— Acredito que não. Na verdade, essa posição o deixa em um lugar difícil, diria até que de aflição.

 

— Não compreendo.

 

— Ah, Thanatos! Não vê que por esse garoto ter pertencido a outro exército e ter vindo para cá contra a própria vontade. Ele não se vê como parte do grupo — explicava o outro gêmeo — E agora trabalha com algo mais importante do que sequer poderia imaginar. A responsabilidade e a confiança do senhor Hades nele reflete como uma…

 

— Uma contradição — Hades completou — Não tenho dúvidas de que Shun esperava o pior de todos nós quando veio para cá, que o tratássemos como um inimigo. Só não compreendo essa resistência depois de meses aqui.

 

— A mente humana funciona diferente do esperado, lembra?

 

— Sim, Hypnos, eu lembro — suspirou — O que julga ser melhor fazer com esse pequeno problema?

 

— Afastá-lo talvez. Um tempo para pôr a mente em ordem pode auxiliar na reavaliação dos novos rumos que tomaram a vida dele.

 

— Ele vai para uma escola humana junto de Pandora. 

 

— E como ficarão as funções dos dois no Submundo? Se bem que somente Pandora é realmente importante por aqui.

 

— Os tempos de paz tem essa vantagem — disse em tom irônico — Pandora conhece vários portais que ligam a terra dos mortais ao Submundo. Eles poderão vir aos finais de semana ou quando surgir uma emergência — procurava algo em suas vestes — Também há essa engenhoca que estou aprendendo a mexer, parece bem útil para a comunicação humana nessa era — revelou o aparelho celular — Conectado a uma tal de internet, posso falar em tempo real.

 

— Nossa! Pode falar com alguém que está do outro lado do planeta com essa coisinha? — perguntou Hypnos.

 

— Sim. Muito útil, não?

 

— Até que os humanos inventam algumas coisas que prestam — riu Thanatos.

 

— Certamente — concordou Hades — Agora vamos discutir outras pautas antes do meu breve descanso. Preciso aprender a mexer nisso em uma semana — apontou para o celular.

 

— O senhor consegue aprender isso em menos tempo do que isso!

 

— Não seja tão adulador, Thanatos! — riu — Eu reconheço que possuo limitações. É por isso que eu preciso de uma boa equipe. Não repetiremos o fracasso da última guerra santa, não comigo a frente de todo o processo — garantiu.


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