Moeda de Troca escrita por Miss Siozo


Capítulo 10
Choro contido


Notas iniciais do capítulo

Sei que uma boa parte de nós ficou mexido com a derrota do Brasil na Copa do Mundo. Então acho que não faz mal mexer mais um cadinho com as emoções de vocês com este capítulo. Boa leitura!



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Quanto tempo havia se passado desde que aceitou a mudança de seu destino? Essa era a pergunta feita pelo ex-cavaleiro quando sua mente não entrava em estado de exaustão. Era verdade que o Imperador do Submundo o auxiliou com o problema que ele mesmo havia criado e conseguiu remover o excesso de informação que não lhe pertencia, mas não conseguia deixar de refletir sobre tais dilemas. Nas horas passadas dentro daquele tribunal ao lado de Hades, ele viu o pior lado das almas julgadas e não conseguia interceder pela maioria esmagadora. Sua pequena contribuição ajudou muitos, de fato, mas provou a motivação legítima de seu novo senhor.

 

— É tudo tão contraditório. Eu estar aqui ainda soa como uma loucura— murmurou para si mesmo dentro do quarto — Tomara que os deuses consigam cooperar entre si. Caso as pessoas não melhorem, tudo estará condenado! — desesperou-se com tal possibilidade.

 

O jovem ligou o chuveiro e algumas lágrimas teimosas deslizavam por sua face se confundindo com as gotas d’água de seu banho. Quando saiu, analisou seu rosto para ver se ainda havia algum rastro de choro, mas a água fria o ajudou e nem parecia que havia chorado. Vestiu-se e tratou de engolir os comprimidos do turno da manhã. O novo médico havia receitado tendo em vista a versão dos fatos contada por Shun. O ex-cavaleiro não poderia revelar a verdade a um civil, seria tratado como um louco caso o fizesse. Então omitiu as principais informações. Para o psiquiatra, ele era apenas um jovem órfão que foi adotado por uma família grande, com uma enorme rixa e que agora estava vivendo em outro lar diferente, mas não se sentia em casa.

 

— Desjejum e trabalho… — rumava para a porta entoando as palavras como em um mantra — Almoço, trabalho e descanso… — repetia sua nova rotina para não ficar ansioso com nada — Talvez o senhor Hades esteja certo, eu preciso voltar a estudar. Quem sabe eu consiga me distrair um pouco com outra coisa?

 

 

Ikki continuava a vagar sozinho pelo mundo. Não colocou mais os pés no Santuário desde a manhã seguinte da partida de seu irmão. Por mais que as palavras de Albion, mestre de Shun, que ainda ecoavam em sua mente, não conseguia parar na infelicidade do caçula. Pelo o que sabia, Shun não tinha privacidade total para mandar mensagens, pois mesmo estando sob um acordo de paz, havia certa desconfiança de que poderiam compartilhar informações que não poderiam. Afinal, Shun foi um cavaleiro de Athena que agora pertence a Hades.

 

— Não consigo me conformar com as suas respostas — encarava a caixa de e-mail de seu novo celular — É difícil crer que está bem, por mais que eu tenha garantias de que está se tratando — suspirou alto — Você nunca quis dar trabalho a ninguém, que se preocupassem demais contigo. Há algo além acontecendo e não deseja me contar ou não pode.

 

Fênix apenas queria uma conversa olho no olho com o irmão. Sabia que o olhar do irmão costuma dizer mais do que os lábios. Ainda que houvesse a possibilidade de não conseguir lê-lo com tanta clareza, saberia caso algo errado estivesse acontecendo, nisso o mais novo era incapaz de mentir. 

 

“Eu preciso muito revê-lo, meu irmão. Quero ver o progresso do seu tratamento com os meus próprios olhos e também matar as saudades. Eu entendo que não posso chegar perto do território dele outra vez sem ser convidado. Que tal realizar esse encontro em um local neutro? Assim não traremos problemas a ninguém. O que acha?” — foi o que Ikki escreveu no e-mail.

 

— Acho que mais polido e menos ameaçador do que isso eu não consigo — riu de si mesmo — Não quero por mais pressão em seus ombros, Shun.

 

 

No tribunal de Hades, o Imperador ocupava seu lugar julgando as almas que se apresentavam para serem julgadas. O que indicava mais um dia normal na rotina do Submundo, mas algo não estava certo ali. O consultor de Hades se manteve calado a maior parte do tempo e mal falava quando era solicitado. Antes de prosseguirem para o próximo julgamento, Hades decidiu fazer uma pausa e conversar com o rapaz:

 

— O que há contigo hoje?

 

— Não há nada — a instabilidade em seu tom denotava a mentira contada.

 

— Está mais calado, parece distraído e ainda diz que não há nada acontecendo? — suspirou — Caso não esteja apto para continuar aqui, fale. 

 

— Ok. Então eu posso ir embora? — deu-se por vencido, não haveria maneira de enganar um deus astuto como Hades.

 

— Eu preciso de um motivo, conte-me.

 

— Não é nada importante, senhor.

 

— Sabe, Shun. Eu além de um deus, trabalho como um governante e tenho muitas responsabilidades para com meus subordinados e até mesmo essas almas que aqui chegam — continuou sua explicação — Não é justo que haja um tratamento diferenciado, ninguém aqui é mais especial do que outro. Caso eu o trate diferente, isso pode incitar quem trabalha comigo. Não que seja algo que importa, já que os demais me juraram lealdade e eu sou o soberano. No entanto, é prudente dar bons exemplos.

 

— É compreensível. Não desejo um tratamento especial de qualquer maneira e nem estou em condições de pedir — disse resignado ainda temendo o contato visual com o deus.

 

— Então diga o que há ou tenho outros meios de saber — disse já impaciente e o jovem entendeu levando as mãos até a cabeça.

 

— Por favor, não precisa disso. Eu falo! — tentava controlar o seu tremor, não queria aparentar ser uma criança assustada aos olhos de seu senhor — Não encontrei o meu lugar aqui. Pensava que estava ajudando, mas durante a maior parte do tempo, estar aqui é torturante. Por acaso foi essa a sua intenção ao me colocar aqui ao seu lado nos julgamentos?

 

— Pensa que eu estou te torturando, por quê? — indagou — Diga olhando em meus olhos — ergueu levemente o queixo do subordinado com o dedo.

 

— Conseguiu provar o seu ponto, o que eu não quis enxergar, o que estava querendo me dizer quando esteve em minha mente na batalha — disse em um fôlego só — A humanidade está seriamente corrompida e eu tenho sérias dúvidas se é possível reverter esse quadro.

 

— Ah! Isso? — riu — É o que eu e os outros juízes estamos acostumados a ver todos os dias. A diferença é que desde que você começou a me acompanhar, pude ver mais coisas com um olhar mais misericordioso. Afinal, a vida na Terra tornou-se mais complexa e eu pude reconhecer isso.

 

— Então quais são suas intenções comigo? Estou confuso! Droga! — se afastou dando uns passos para trás após perceber sua explosão com o soberano — Perdão! Não queria que as palavras saíssem desse jeito.

 

— Pelo menos foi honesto — falou irônico — Não tenho porque revelar minhas motivações. Conforme-se com o lugar em que está! — já falava estressado e antes que perdesse completamente a paciência com o rapaz decidiu afastá-lo de suas vistas — Já que falou sobre tortura, irei dar o que quer. Ficará preso pela sua insolência no calabouço por um tempo.

 

Shun ficou estático por alguns momentos e processava em sua mente o que havia acabado de acontecer. Ele foi insolente com Hades. Sabia que tinha que ser punido e assim não ofereceu resistência, dizendo:

 

— Tudo bem. Eu mereço — curvou-se levemente, mas manteve sua cabeça abaixada tentando conter o choro e regular sua respiração.

 

— Markino! — chamou o espectro enquanto massageava as têmporas.

 

— As ordens, senhor Hades! — apresentou-se rapidamente.

 

— Acompanhe Shun até uma das celas de castigo do calabouço. Ele passará um tempo lá.

 

— Sim senhor! — pegou as algemas para colocar nos pulsos do ex-cavaleiro e puxou-o devagar com a corrente para deixarem o recinto — Com licença.

 

O jovem nada disse durante o caminho. Ouvia alguns burburinhos, sabia que havia gente o encarando, mas seguiu andando e olhou para os próprios pés. Markino rompeu o silêncio quando chegaram próximos da cela.

 

— Desde que chegou aqui foi sempre tão responsável e comportado. O que fez ao senhor Hades?

 

— Acredito que o ofendi — limitou-se a responder. 

 

— Então tem sorte de ficar na cela de castigo. Caso fosse em outros tempos, quando estava de mau humor, o senhor Hades teria feito algo muito pior!

 

— Compreendo, Markino — suspirou — Então eu tenho sorte… — deu um sorriso fraco quando teve as algemas removidas.

 

— Eu não lembro da hora que servem as refeições por aqui, depende muito da boa vontade dos guardas — disse — Procure se acalmar e refletir sobre as suas ações. Nós não somos mais inimigos, Shun. Não precisa ter um muro entre nós, construa pontes. Adeus!

 

— Adeus!

 

 

Horas haviam se passado e Hades havia se cansado de ficar julgando almas. Na realidade, sentia falta de seu pequeno consultor ali. A visão de Shun fazia juz ao título de “a alma mais pura”. O deus não havia mudado completamente seu modo de pensar nos últimos meses por causa do garoto, mas uma fagulha de esperança na humanidade surgiu por causa dele.

 

— As chances da humanidade melhorar são ínfimas — abriu um portal para Giudecca — Há tantos líderes corruptos na Terra e pessoas inocentes vivendo à mercê dos mandos e desmandos dessa gente.

 

— Senhor Hades — chamou a voz de Pandora — Atrapalho?

 

— Não. Pode falar — fez um sinal para que se aproximasse — Eu estava apenas pensando alto em algumas coisas.

 

— É algo que pode ser compartilhado? — perguntou receosa.

 

— Sim, posso compartilhar esse pensamento — sentou-se no trono — Pensava sobre a humanidade. Em como está corrompida e pessoas boas pagam por isso.

 

— O mundo humano está caótico. Pelo pouco que vejo quando estou na superfície, as notícias não costumam ser boas. Nos noticiários, quando não há notícias ruins falam sobre futilidades.

 

— Compreendo. Traga-me alguns jornais quando puder — pediu — Não creio que Athena, mesmo com a ajuda do meu irmão consiga colocar tudo nos eixos sem que se revelem como deuses.

 

— Então acredita que a humanidade tomará jeito apenas se um deus se revelar diante deles?

 

— Do jeito que a maioria está iludida com outros deuses ou incrédulas, acho difícil. Talvez conseguisse pela força.

 

— De fato seria efetivo a curto prazo, mas não consigo mensurar os possíveis desdobramentos disso. Desculpe.

 

— Está tudo bem. Trouxe o que eu pedi?

 

— Sim! Está aqui uma cópia da pasta do senhor Amamiya — retirou de sua bolsa — Caso tenha algum termo que não conheça, eu posso pesquisar ou pedir ajuda na enfermaria.

 

O imperador do submundo pegou os documentos e começou a ler. Fisicamente o ex-cavaleiro havia melhorado, apesar de estar um pouco abaixo do peso ideal. Quando viu as anotações do psicólogo achou um pouco de graça sobre parte da história contada por Shun. Ele realmente estava inserido em um contexto familiar complicado. Logicamente que detalhes importantes da história não poderiam ser revelados, até pela incredulidade dos médicos, mas percebeu que nem com o profissional o rapaz se abriu como fez com ele quando confrontado.

 

— O que significa essa parte dos diagnósticos?

 

— Deixa eu ver por alguns momentos — pegou a folha para ler — Ah sim, compreendi! — seu tom de voz mudou para pesaroso — A suspeita sobre depressão se confirmou e aqui sabemos qual tipo se trata. O médico colocou como uma depressão funcional, distimia.

 

— O que isso quer dizer?

 

— Com os dados cruzados do Japão, o médico de lá já havia diagnosticado em uma época anterior ao nosso confronto na guerra. É algo que persiste apesar do tempo, mas ocorre de forma mais "branda", o que não atrapalhou suas funções como cavaleiro e agora como seu consultor.

 

— É algo que eu preciso me preocupar? — perguntou seriamente por não conhecer tantos dilemas humanos.

 

— Isso o afeta, em sua energia, disposição. Ele pode ficar mais distraído mesmo se esforçando para se concentrar — voltou a ler o documento — O médico observou alguns sintomas como traços de ansiedade nele. O quadro pode piorar e ele teve crises, mas escondeu de nós.

 

— Quantas ele teve desde que chegou aqui?

 

— Cinco — disse triste ao constatar o estado de seu novo companheiro — Por isso a medicação foi reajustada algumas vezes. Shun toma alguns remédios antes do desjejum para começar bem o dia e outro para conseguir dormir.

 

— Então ele realmente está vivendo uma tortura aqui — pensava nas palavras do jovem.

 

— Estamos fazendo o nosso melhor, senhor.

 

— Não pude ser tão compreensivo ao ser irritado.

 

— O que fez a ele?

 

— Está na cela de castigo — levou a mão até a cabeça pensando no problema — Shun precisa continuar lá por causa da sua insolência e também para pararem de dizer que ele é meu protegido aqui.

 

— Por quanto tempo ele ficará lá?

 

— Quatro dias. Creio que seja o suficiente para que prepare tudo para a viagem a Londres. Novos ares o farão bem.

 

— E quanto ao cosmo dele? Os outros podem se aproximar.

 

— Hécate me fez um favor e enfeitiçou esse anel — entregou a Pandora — Com isso o garoto terá seu cosmo camuflado, mas há limites. 

 

— Limites?

 

— Shun não pode elevar seu cosmo. Não creio que ele faça isso, talvez em alguma situação de perigo, mas deve evitar ao máximo. Entendido?

 

— Ok. Vou adiantar tudo e talvez ele possa até ser liberado mais cedo do castigo.

 

— Garanta que a medicação dele e uma alimentação decente cheguem à cela.

 

— Entendido — a moça sabia que essa era a maneira de seu senhor demonstrar preocupação e benevolência, apesar de não dizer abertamente do certo arrependimento que teve de castigar o virginiano.

 

— Eu realmente pensei que naquele dia no Muro das Lamentações, o rapaz havia expurgado além de minhas lembranças, os próprios demônios — comentou com um semblante preocupado.

 

— Talvez ele ainda se sinta responsável por muita coisa. Ele não se esqueceu de tudo e creio que pensa sobre o passado quando está só. Isso alimenta suas culpas e medos.

 

— Humanos são complicados demais! — levantou-se do trono — Irei me recolher mais cedo hoje e não quero ser incomodado. Confio no trabalho de vocês.

 


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Notas finais do capítulo

Quem esperava que Hades e Shun iriam conviver sem nenhum atrito sequer, erraram. O contexto da relação deles é complexo, por mais que Shun seja um garoto bonzinho que detesta conflitos e Hades esteja em sua versão mais "amigável" , em algum ponto os calos emocionais apertam e tudo explode.
Espero voltar em breve! Até o próximo capítulo!



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