The Sandman — Olhando Para Dentro escrita por Darleca


Capítulo 6
Capítulo VI — A Culpa




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               O APARTAMENTO CONTINUA O mesmo da última vez que esteve ali; o puro caos de uma recente mudança. Embora seja curioso o aspecto de abandono que se apresenta, como quem simplesmente usa o lugar apenas como depósito de tralhas, há vida ali; um vaso de cacto.

Morpheus tenta não demonstrar o incômodo com a bagunça, matando a sua vontade de reorganizar as coisas que sequer lhe pertencem apenas focando em sua busca, como a frustração por não encontrar a residente presente, mas não consegue ignorar a sensação regelada que o acompanha desde quando esteve nos domínios de sua irmã mais velha.

Sensação esta que o faz lembrar de Lugar Nenhum; um lugar que não é bem um lugar, é o vazio entre lugares, o nada entre mundos, que seres como um Perpétuo conseguem transitar. De um vazio contemplativo e sedutor como uma fuga, Morpheus já pensou várias vezes em ficar por lá.

"Seria tão fácil... deixar tudo pra trás... Sem qualquer preocupação ou responsabilidade... Mas não farei isso, porque sei o meu dever". Morpheus decreta em pensamentos. Não será desta vez que ficará diante de uma tentação que irá ceder. Não hoje.

Por um tempo indeterminado, esteve no encalço da mulher – considerando Constantine como sua única esperança – muito por Morpheus se recusar a viajar pelos sonhos dos humanos estando em posse do tomo mágico, por não querer dar brechas ao livro possuído de continuar registrando seus segredos e poderes, podendo forçar o Monarca a usá-los contra a própria vontade.

No entanto, Sonho não sabe dizer quanto tempo passou entre o seu encontro com Morte e a sua chegada ao apartamento de Constantine... e esse lapso o faz indagar a realidade que o cerca...

Percebeu que é a segunda vez que você invade o “mundo” dos outros sem ser convidado a entrar? A voz debocha para quebrar o silêncio. Ou pelo puro prazer de interromper a linha de raciocínio do Rei Sonho.

━━ Vejo que sabe muito bem sobre invadir mundo alheio — retruca enquanto esquadrilha o cômodo com os olhos e se aproxima de uma caixa de papelão sobre uma mesinha de centro soterrada de coisas aleatórias, como um amontoado de panos e pilhas de papéis, tirando de lá um porta-retrato, descobrindo-o vazio, mas real.

É como se Constantine se recusasse somente a fincar raízes... ou esperasse por uma nova mudança em breve.

Eu não invadi seu mundo, pra começo de conversa... diz a voz, como quem se isenta da culpa que lhe fora atribuída. Fui levado para lá. Como um presente.

━━ Por quem? — Morpheus devolve o porta-retrato no lugar e espera por uma resposta que sabe que não virá fácil.

E sem surpresa alguma, a voz novamente se cala após ecoar uma gargalhada. Porém, outro som não demora muito para preencher o ambiente silencioso, já que a dona do apartamento adentra, logo em seguida, de supetão.

━━ Ah, mer...! O que está fazendo aqui, hein? — Constantine aparece assustada, e não tira os olhos de Morpheus enquanto tranca com a chave as inúmeras fechaduras e trincos que a porta possui.

Dada as circunstâncias que se encontra, embora a camisa de seda preta esteja rasgada na manga comprida esquerda, e a calça jeans, suja de sangue, a exorcista continua muito elegante em suas vestimentas.

Ao terminar de trancar a porta, Joanna Constantine se volta ao Rei Sonho.

━━ Não vou nem perguntar, porque duvido muito que seja só uma visita. — Suas botas soam pesadas no piso ao se aproximar do Perpétuo.

━━ Não, não se trata de uma visita. — Em resposta à aproximação de Joanna, Morpheus aperta o livro contra o corpo, como se quisesse protegê-la daquela maldição mesmo que ela fosse a única pessoa que saberia resolver aquela “encrenca”.

━━ É! Foi o que eu disse! — esbraveja ela com impaciência incomum. ━━ Agora, você pode fazer a sua mágica e me ajudar? — Joanna move os dedos bem na frente do rosto de Morpheus, replicando um gesto estereotipado de magos em filmes.

E o brilho rubro na palma da mão da mulher não passa despercebido pelos olhos azulados do Perpétuo.

━━ Você está sangrando. — Ele segura a mão ferida de Joanna pelo pulso, fazendo-a parar de se mexer.

A exorcista bufa como quem não se importa com o próprio estado.

━━ Isso? Não é nada... Você tem que ver como o outro cara ficou. — Ela sorri, mas sons de batidas na porta fazem com que a mulher fique séria de novo e solte o pulso do aperto de Morpheus. ━━ Tá bom, não fica aí parado, vamos cair fora daqui antes que–

━━ Constantine! Abra essa porta, podemos resolver isso da melhor maneira possível! — Um homem grita atrás da porta numa voz gutural. Além disso, é fácil supor que o sujeito não está sozinho. Morpheus percebe a presença de mais três com o que se anuncia.

Joanna fica ansiosa; olha para porta e responde para o seu perseguidor:

━━ Ah, é?! Achei que estava tudo indo conforme o plano de vocês... — Ela dá alguns passos para perto da porta e se convence de que não há saída a não ser deixar o apartamento para trás por já está comprometido. ━━ Droga, eu gosto tanto desse apartamento... — ela sussurra com pesar.

Morpheus pondera se deve ou não intervir, ainda que em seu âmago ele saiba que não há outra opção a não ser ajudar, ou seja, usar seus poderes mesmo estando em posse daquele exemplar maldito... porque sabe que, ajudando Constantine, haverá solução para o seu próprio problema. 

━━ Posso resolver isso se você me ajudar...

Joanna encara Morpheus por um longo minuto, aos sons de batidas na porta e ameaças de arrombamento aos gritos quase animalescos, assustadores.

━━ Ótimo momento pra me forçar a aceitar a sua condição de ajuda — ela responde. ━━ Fico me perguntando qual é a diferença entre você e o invasor atrás da porta.

Morpheus não espera por qualquer aprovação ao caminhar até a porta.

━━ A diferença, Joanna Constantine, é que sou o único que pode oferecer uma boa noite de sono... A qualquer um.

Sem tocar nas fechaduras, Morpheus destranca a porta e surpreende os capangas – que esperam lidar com apenas a exorcista – com uma lufada de areia jogada sobre seus rostos, não dando tempo de qualquer reação além das perguntas banais como “o que está acontecendo?” que são proferidas, trazendo graça à situação.

O Rei dos Sonhos e Pesadelos está acostumado a ouvir esses questionamentos que todas as criaturas pensantes fazem quando algo acontece cujo qual não se têm controle ou conhecimento, ainda que o próprio Sonho não entende por que elas persistem nisso.

Mas, apesar da incerteza e do medo que os surpreende no começo, os homens que vieram capturar a exorcista recobram suas forças e derrubam aquele cara estranho na soleira da porta sem qualquer obstáculo, e depois atacam Joanna Constantine como foram pagos para agir. Saem triunfantes de sua missão e vão comemorar a grana mais fácil que ganharam naquela noite... ainda que, na verdade, os homens estejam no chão, um sobre o outro, deixando um pé de cabra e uma escopeta de cano duplo largados, sem forças contra um sono profundo que os toma assim que a areia poderosa os atinge. Sem se darem conta de que o sucesso daquela empreitada só reside em suas mentes sonhadoras... e que nada do que eles vivenciaram em sonhos é real.

Morpheus não se faz de rogado e se deleita com o próprio poder.

━━ Certo... isso não resolve muito o meu problema — Joanna chama a sua atenção. Embora a voz dela demonstre impaciência, Morpheus sabe que a mulher está muito agradecida por ter sido pontualmente ajudada. ━━ Fazê-los dormir na soleira da porta me deu algum tempo pra gente conversar... Então, me diz o que precisa, “homem da areia”? O que te devo por ter salvo a minha vida?

Morpheus se volta para Joanna e mostra o livro que ainda carrega consigo como uma penitência autoimposta.

━━ Exorcismo — responde com certo ceticismo.

Ainda que Joanna venha a ser a única ajuda que lhe resta, Morpheus ainda não está confiante de que basta exorcizar o livro para se livrar daquela voz maldita.

Poderia ser apenas um demônio que fora aprisionado ao livro sem que tivesse qualquer intenção de fazê-lo, e agora, só permanece nele porque não há outra alternativa de voltar ao mundo infernal ou qualquer outro universo de onde viera? Seria algo tão simplório e ridículo e que, mesmo assim, desse nessa tremenda dor de cabeça?

━━ Hm... e trouxe o próprio tomo pra praticar? — Joanna indaga em tom de piada.

━━ Há uma criatura possuindo este livro e força um vínculo com quem o toca. Preciso dos seus serviços antes que a voz na minha cabeça me faça cometer alguma besteira.

━━ Essa voz... ela... está te forçando a agir? — Agora, Joanna demonstra interesse mesclado à preocupação.

Morpheus engole em seco. Seu orgulho parece gritar aos seus ouvidos de que seria terrível admitir para a exorcista de que não pôde lidar com aquele simples problema, sozinho. Ou pior, de que a voz consegue subjugá-lo apenas falando asneiras dentro da sua cabeça, quase como se não quisesse deixá-lo pensar, além de sentir prazer pelo fato de infligir dor ao Perpétuo sem que ele pudesse revidar... o quão patético se mostraria diante de Constantine?

━━ Ainda não. Mas... Ela me fere... — admite, por fim, com muito esforço.

E a maligna voz, de repente, vocifera:

Posso fazer pior!

Morpheus solta o livro e imediatamente cai de joelhos sobre o piso, colocando as mãos em suas têmporas numa expressão dura de dor, numa tentativa de contê-la. Sua mente parece pesada, prestes a explodir, tomada por uma pressão que nunca sentiu antes. Rei Sonho não consegue ouvir Joanna, que tenta ajudá-lo. Só consegue sentir a dor e nada mais... contudo, em dado momento, nada parece pior que a sensação de peso em seu peito quando suas memórias de tempos imemoriáveis são vasculhadas sem qualquer pudor ou cuidado, trazendo à tona dores antigas que o Perpétuo deixara para trás.

Não vai adiantar me fazer dormir, Morpheus! A voz grita e causa dores como golpes físicos no Perpétuo. Ou me enganar! Vocês serão devorados pela culpa... Veja o verdadeiro monstro que você é! Nunca ajudou o próprio filho. Veja! Virou as costas para ele e nunca olhou para trás. Isso não é tudo... Por ego ferido, condenou a mulher que você dizia amar... ao eterno tormento! Ao inferno! E ela continua lá, faz 10 mil anos, porque não aceitou o seu amor. E eu sou o demônio?! Não me venha com essa, Morpheus!

━━ Não a ouça! — Agora é a voz de Joanna que chega aos ouvidos de Morpheus que, caído no chão, ergue os olhos marejados para a exorcista. ━━ Seja lá o que ela estiver dizendo, não ouça a criatura!

Difícil não ouvir quando apenas a verdade é dita.

Morpheus não acredita que tenha forças para lidar com aquele julgamento. Com a culpa que sente afundar em seu peito.

━━ Eu... eu sou... um monstro... Joanna — balbucia enquanto rever, contra a própria vontade, as memórias de um passado distante. Imagens embaralhadas, fora de ordem cronológica, passam diante de seus olhos lacrimejados: um jovem mortal pedindo a ajuda do pai e esta sendo negada com rispidez; uma mulher alegando ter medo do que poderá acontecer ao seu mundo caso aceite o amor proibido; Orpheus sorrindo no próprio casamento momentos antes da tragédia; Nada beijando os lábios de seu amante onírico antes de tomar uma decisão irreversível. Nomes que nunca foram esquecidos, mas que nunca foram mencionados. ━━ Condenei um antigo amor... e meu próprio filho ao tormento e abandono...  Pelo quê?

━━ Lorde Sonho! Rei dos Adormecidos! Por favor, me ouça! — Joanna segura o rosto de Morpheus, o fazendo olhar direta e profundamente em seus olhos. ━━ A criatura não só se alimenta de nossa ambição como também da culpa que carregamos! Ela está muito tempo aqui dentro e acredita que faz parte de mim! E ela pensa que eu não sei nada sobre ela. Mas, primeiro, liberte-se da culpa admitindo seus erros, Senhor! E faça a criatura dizer o próprio nome! Você precisa saber o nome dela, Lorde dos Sonhos, para saber o que fazer! Lembre-se onde você está!

Morpheus tenta se concentrar, embora surpreso com os nomes que a exorcista utilizou para chamar a sua atenção, na orientação que Joanna proferiu, ainda que não fizesse muito sentido num primeiro momento. Com a mente conturbada e invadida por dores terríveis não se torna fácil o simples ato de pensar.

Mas com calma e recuperando a confiança em seus poderes, sem medo de agir, Morpheus se concentra em se habituar. Afinal de contas, não está no Mundo Desperto? Se não, para aonde foi levado quando usou a sua algibeira? E aquela mulher é mesmo quem pensa que ela é? 

O sorriso daquela Constantine cresce no seu belo rosto ao se dar conta de que o Perpétuo recupera a própria força. Mas, de repente, a exorcista é jogada contra a parede, longe de Morpheus, como quem recebe um poderoso golpe e ela desmaia.

O que ela quer dizer com isso?! A voz se faz presente novamente, furiosa. O que diabos ela está falando?

Morpheus se ergue do chão e segura a sua algibeira, sem se importar com as dores odiosas que a voz lhe causa. Enquanto a areia infindável é derramada sobre o piso, escorrendo sobre seus dedos, Morpheus pronuncia:

━━ Eu sou o Soberano do Mundo dos Sonhos e Pesadelos, meu lar e meu domínio... Eu sou o Sonho dos Perpétuos e minha vontade é suprema. É hora de eu enfrentar o abismo que se apossou de mim. E de reclamar aquilo que me pertence...

Morpheus faz uso da areia em si mesmo, coisa que nunca fez antes, colocando-se em sono profundo para, por fim, enfrentar a criatura que habita a sua mente em seus sonhos, frente a frente, de uma vez por todas.

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Notas finais do capítulo

Olá, pessoal! Como estão?
Torço para que estejam todos bem!

Vamos ao capítulo; eu sei! Tudo parece ainda mais confuso, né? O que diabos Joanna quis dizer com aquilo? Afinal, Morpheus está ou não está no Mundo Desperto? Se não, onde ele está? Essa Joanna era a mesma Joanna que vimos na série? Muitas perguntas que terão respostas, mas não agora.

Estou bem curiosa pra saber a teoria de que está lendo, viu, Lilindy? ♡

Olha só! Ainda por cima, vemos o Sonho se pondo pra dormir!

A gente só vê essas coisas aqui, na fanfic da Darleca, kkkkkk

Obrigada, pessoal e até a próxima! ♡



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