Um Reino de Monstros Vol. 2 escrita por Caliel Alves
Através da saliva, Saragat conseguirá diluir a goma amarelada de sua mandíbula. Depois de respirar profundamente, ele tentou consolar o companheiro desolado na grade da cela. Este havia chorado tanto com a traição de Rosicler, que chegava a soluçar.
— Não desperdice mais água, Tell. Eu sempre soube que ela não valia nada...
— Snif-snif, você estava certo, snif.
— Olha, deixa o drama para depois. Agora nós temos que sair daqui e procurar o imbecil do Index, depois à gente pega aquela desgraçada.
O mago-espadachim fez que sim com a cabeça e enxugou as lágrimas nos ombros.
A situação não tá nada boa, o bolo-fofo sumiu, Rosicler colocou mais uma pulga na orelha dos alquimistas. Ai, ai, só o que me resta é fazer o trabalho sujo...
— Deusa que adormece no trono da escuridão, ouve meu clamor e realiza tua obra... Impulso Sombrio.
No mesmo instante, uma sombra fosca percorreu o corpo do servo de Nalab como se fosse um relâmpago. As correntes foram cobertas por uma luz negra. Aos poucos, ela foi se esfarelando e ascendendo ao ar como a poeira no deserto.
Depois disso ele fez o mesmo nas correntes do companheiro, quando ele se viu livre, passou a alisar os pulsos.
Ambos estavam desarmados. O mascarado precisava do seu cajado, ele não era apenas uma simples arma, era o artefacto tocado por uma deidade.
— Agora eu preciso ir atarás do meu cajado, se eu o perder, nem sei o que Nalab fará comigo!
— E eu o meu sabre.
O Cajado Nebuloso era a arma oficial dos conjuradores das sombras, que pela tradição, eram todas mulheres.
Tell, como um espadachim, precisava de sua arma. As suas técnicas mais poderosas eram fusões de esgrima ocidental e magia arcana, aquela que utiliza a energia mágica do usuário para provocar fenômenos e efeitos. O seu arsenal de magias ainda era limitado.
O treinamento dele nem bem havia sido concluído! O Lisliboux realmente precisava do seu sabre. Ele e Saragat miraram o corredor.
O quartel-general dos alquimistas parecia ter sido improvisado numa penitenciária!
— Estou sem o meu sabre, mas talvez eu consiga detonar as grades com...
— Temos que sair sem chamar atenção.
— Tá, desculpa, eu só queria ajudar.
O conjurador tomou posição e recitou o cântico para o Impulso Sombrio, as grades enegreceram e se esfarelaram num piscar de olhos.
Agora a passagem estava livre, entretanto, o garoto estava com uma dúvida.
— Como vamos saber para aonde estamos indo?
— Eu memorizei todo o percurso.
— O quê?
O garoto parecia ao mesmo tempo surpreso e impressionado com a astúcia do outro. O mago-espadachim não conseguira nem mesmo caminhar direito pelo extenso caminho.
— Agora vamos...
Flap-flip-flap, esse som adentrou os ouvidos dos dois fugitivos, e espantados, voltaram-se para trás e exclamaram ao mesmo tempo:
— Index!
Dependurado na grade do catre, a criatura arfava com o tomo entre as patas. Espremendo-se entre as barras de metal, o guardião caiu na cela e rolou pelo chão até bater nos pés de Tell. Index tinha os olhos em formato de X e a língua para fora da boca.
O encapuzado pegou o livro e o trouxe para junto de si, mas antes de devolver o Monstronomicom ao dono, ele o soltou fazendo-o cair em cima da criatura alada, o esmagando. A estafada criatura ergueu-se com um enorme galo na cabeça. Com as veias salientes, ele puxou as golas altas do conjurador, e o enforcou.
— Parem, você dois! Não é hora para brigar, é hora de fugirmos daqui.
O jovem, num rompante de responsabilidade, pegou o livro e o pôs nas alças do seu colete. Index voou e se colocou no alto de sua cabeça. O servo de Nalab fez um aceno e todos se puseram numa fuga desenfreada, tendo o conjurador como guia.
O mascarado seguiu pelo corredor e virou bruscamente. Foi tão inesperado que o garoto que o seguia deve dificuldade em acompanhá-lo.
Ele é veloz demais para alguém que faz conjurações?
— Saragat, vá mais devagar, eu não tô acompanhando o teu pique.
— Aí, que garoto lerdo. É só me seguir. Quer que eu desenhe um mapa pra você?
— Não, eu só não quero me perder aqui. Esse lugar é... bizarro!
— Pra quem quer encontrar o avô desaparecido, você está bem fraquinho...
O encapuzado calou-se, as suas palavras surtiram o efeito desejado, o garoto já o acompanhara.
Agora os dois estavam correndo lado a lado, subindo e descendo escadas, executando um desgastante zig zag pela improvisada sede da Real Força Espagíria.
O Baronato não foi completamente tomado. Se fosse assim, os alquimistas não estariam aqui. Isso significa que não estamos acuados como em Flande...
— Tell, vê se não se perde de mim.
— Pode deixar, é só guiar o caminho.
— Nossa prioridade é alcançar nossas coisas. Depois à gente pega aquela safa pelos cabelos e...
— Saragat.
— Sim, Tell?
— Tem uma coisa que eu quero saber...
— O que é, desembucha?
— Bem...
O Lisliboux tinha uma grande indagação a fazer. Ele ouvira uma conversa entre Clapeyron e Javier sobre o misterioso conjurador das sombras. Para eles, era inconcebível que Saragat fosse um homem, pois os conjuradores de Nalab, por imposição da própria deusa, eram mulheres, de preferência virgens!
Entretanto, o mascarado tinha um timbre de voz extremamente masculinizado.
Devido as suas roupas largas e escuras, era impossível perceber qualquer particularidade do seu corpo. Por tanto, sua androginia causava ainda mais dúvidas.
— Fala, imbecil!
O garoto engoliu saliva com um forte glup, e disse desajeitadamente:
— Desculpe, não era nada, quer dizer, eu esqueci.
— O QUÊ?
Nesse momento, eles haviam chegado à antessala que dava num extenso paiol.
Dois alquimistas executavam tarefas rotineiras. Logo que viram os fugitivos, se armaram com pistolas. O trio recém-chegado ergueu as mãos para o alto. Saragat disse:
— Vocês não vão atirar em pessoas desarmadas, vão?
Os oficiais riram entre os dentes, depois deram uma leve olhada um para o outro.
— Se os nossos alvos são um mascarado com pinta de bandido e um garoto estranho com um monstro na cabeça, sim, nós vamos atirar!
— Assino embaixo, colega.
— Tell, se proteja!
Saragat empurrou o garoto para trás de uma mesa, e ele saltou para cima dos militares.
Os dois homens dispararam no encapuzado enquanto ele lutava corpo a corpo com eles. Para um conjurador, seu estilo de luta e coragem era bastante significativo. Enquanto se digladiava com os dois, ele recitava um dos seus rogos para a sua deusa.
— Deusa que semeia as sombras, ouve meu clamor e atende o meu desejo, Obnubilar.
Saragat criou uma redoma de sombras em volta de seus astutos oponentes. Depois se virou para o filho de Taran e Index que assistiam à luta entre os dois.
— Tell, use o Projétil de Luz quando eu desfizer o Obnubilar.
— Sim...
O garoto lembrou-se instintivamente das palavras que o seu avô usara para lhe ensinar a tal magia.
Respire, agora concentre a sua energia na palma da mão. A comprima até que ela se torne uma esfera maciça. Olhe fixamente para o alvo, e imagine a esfera acertando-o no ponto exato. Esse é o fundamento dessa técnica.
A energia mágica de Tell foi fluindo até a palma de sua mão direita, descrevendo espirais, até formar uma massa energética de lume azulado.
Ele tinha o braço direito concentrando a energia mágica, e com a mão esquerda espalmada, apoiava no antebraço para aumentar o controle. Seu pulso vibrava, ele suava frio. Saragat deu o sinal:
— Agora!
A redoma se desfez, o ataque foi tão rápido que a esfera rodopiou velozmente no ar.
— Projétil de Luz.
Os alquimistas só puderam pôr os braços cruzados numa inútil tentativa de defesa. Entretanto, a esfera passou por eles sem os tocar e acertou a porta do paiol bem atrás.
— Hehehe, que tapado.
— Eh, ele tinha dois alvos e não acertou nenhum.
Saragat pegou o garoto pelo colarinho e o agitou como se fosse um boneco.
— O que pensa que está fazendo?
— Para de me chacoalhar!
— Olha o que você fez! Você acertou o... Paiol!
Os olhares de todos se sobressaltaram. Index voou de um lado para o outro sem rumo e sem direção. O conjurador entoou uma litania.
Tell apertou os chumaços de cabelo com se quisesse arrancá-los. Tentando um último esforço para resguardarem as suas vidas, os invasores se jogaram no chão.
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