Um Reino de Monstros Vol. 2 escrita por Caliel Alves


Capítulo 17
Capítulo 4: Dobrando a matéria - Parte 2




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Um candelabro iluminava a mesa de modo intimista e aconchegante. Da mesa dos alto-oficiais da RFE, só o vento cortava o silêncio ao resvalar nas janelas. Os militares de feições muito sérias jantavam a atual e improvisada ração militar com uma resignação digna de quem vive à guerra.

Para os recém-chegados, aquele era um cardápio exótico ao paladar. Seria antiético dizer terrível, medonho ou nojento até mesmo por pensamento!

— O que está achando do nosso jantar, Saragat?

— É incrível como a gastronomia alfonsina pode ser inventiva, general-brigadeiro Letícia.

O full-course menu estava um tanto “intragável” para o trio de heróis — quarteto se contássemos com Index —, o prato de entrada tinha sido uma sopa rala de ingredientes não-identificados. Depois disso, uma sardinha semidesidratada acompanhada com raízes tostadas, ou seriam sapecadas?

Para arrematar, um copo de uísque feito com batatas. O prato principal foi uma cabeça de cavalo recheada com farofa. A sobremesa foi um pão-preto, muito preto.

Esse pão parece mofado, veio!

Rosicler sentia o seu estômago revirar. Quando os enviados de Flande terminaram, um militar balofo e de tapa-olho empurrando um carrinho perguntou se eles queriam mais.

— Oh, não senhor, muito obrigado. A minha deusa não permite que eu incorra no pecado da gula.

— E vocês dois aí, querem mais?

— Obrigado, obrigado, mas uma garota tão bonita quanto eu precisa manter a dieta.

— Eu também agradeço, senhor. Mas se, se, se eu comer muito, sabe, eu acho que não posso usar o Monstronomicom.

— Se quiserem é só pedir. Nós ainda temos muito consomê de avestruz...

— NÓS AGRADECEMOS, MAS JÁ ESTAMOS SATISFEITOS!

De modo entusiástico, os três deram a resposta e o cozinheiro saiu a mancar pelo corredor levando a louça do jantar. O suspiro de alívio na mesa foi inevitável. Após safarem-se daquela tortura gastronômica, o grupo foi sabatinado pelo Estado-Maior. Os alquimistas precisavam obter alguns informes sobre o Baronato vizinho.

— Gostaríamos de saber dos enviados de Flande como anda a retomada e o controle do território?

— Nós precisamos também da posição de vocês em relação ao novo quadro de alistamento?

— Seria possível formar uma coalizão...

— Senhores, senhores, tenham calma, por favor. Deixem que nossos convivas relatem as suas aventuras, ou seriam desventuras?

Os velhos militares se calaram depois da repreensão de Letícia. Esta já estava bem disposta e possuía uma voz muito ativa, uma das poucas mulheres a alcançar a alta hierarquia da Real Força Espagíria. Ela fez sinal para Saragat e disse:

— Por favor, conjuradora de Nalab, fale.

— Eu não sou uma “conjuradora”, general-brigadeiro Letícia, eu sou um conjurador.

Os militares começaram a cochichar por toda a mesa. Embora Alfonsim não fosse o baronato mais fervorosa do mundo, eles ainda assim conheciam das religiões.

— Perdão, verdade seja dita, nossa nação não é amante de culto. Mas, é do conhecimento geral que de todos os deuses existentes no panteão lashriano, Nalab é a única que só aceita mulheres, sendo que só pode existir um conjurador para cada ente divino. Então ficamos numa encruzilhada, como você pode ser um “conjurador das sombras”?

— Não tenho que te dizer nada. Eu nunca me senti na obrigação de dar satisfação da minha vida a ninguém, e não será a vocês que eu vou dar.

Cruzando os braços, o mascarado soltou um profundo suspiro e ergueu o rosto em desafio aos militares que logo se desculparam. Alguns se autoproclamaram rudes.

O mistério persistiu ainda mais na cabeça de Tell.

Agora eu fiquei ainda mais confuso, Saragat, seria você “ele” ou “ela”?

Tentando desviar o foco das atenções, o conjurador deu uma cotovelada no garoto.

— Diga como tudo aconteceu.

— Aí, ah, sim, bem eu... como todos sabem, o meu avô é Taala de Lisliboux, é um mago nascido em Flande. Eu vivia com o meu avô, ele dizia-se um mago aposentado, e por isso, se fazia passar por um escritor na minha presença. Mas eu sabia que tinha algo a mais! Um dia ele me pediu para levar um manuscrito ao correio da vila, mas...

Retirando o livro da capa, Tell o pôs na mão dos alquimistas que fizeram o tomo chegar à cabeceira da mesa, lugar onde Letícia estava sentada. Ela o pegou com as mãos sentindo o seu peso. A general-brigadeiro o abriu maravilhada.

Ela viu a figura da caveira, passou a página e viu a imagem da ardilosa alma de gato. Mas as representações estavam menos cruéis do que a verdade.

Enquanto isso, o mago-espadachim chegava à parte que mais interessava os presentes.

— Zarastu estava mesmo no encalço de seu avô? Ele deveria ter conhecimento do Monstronomicom. O que acha disso, Tell?

— Não saberia dizer. Eu só posso dizer que ele era alguém poderoso. Defendeu o meu maior Projétil de Luz com apenas uma mão. E o que dizer dos monstros que o acompanhavam, eu só sobrevivi graças à inteligência do meu avô.

Um dos generais pediu a palavra e disse de modo bastante técnico:

— Ao que tudo indica, os outros monstros que acompanhavam Sirius podiam ser dois dos cinco Generais Atrozes. Eles são o grupo de elite da Horda, cada um comanda um batalhão e tem uma legião de bestas assassinas prontas para efetuar qualquer ordem que lhes sejam dadas. O mais conhecido deles é o lobisomem. Acompanha Sua Majestade para aonde quer que ele vá. Ouvi rumores de que é o mais poderoso da Horda.

Rosicler se sentia entediada com a conversa, e antes que pudesse colocar uma colher de prata no bolso da calça, o encapuzado lançou lhe um olhar tão afiado quanto um gládio. Ela soltou um sorriso amarelo e pôs o utensílio em cima da mesa. Ambos trocaram olhares acusadores, de modo que ninguém percebeu o embate dos dois.

Outro general ficando ainda mais curioso com a saga do mago-espadachim, comentou:

— Depois da Primeira Grande Guerra, Taala se isolou junto com o Mago Dourado, Zarastu, e aquela mulher, eu nunca lembro bem o nome dela... Mas, de uma maneira inusitada, o Lisliboux começou a entrar em contato conosco e formou uma rede de espionagem que geriu a Resistência durante anos. Aliás, sem ele, não haveria nenhuma Resistência. Era um homem pacato, mas obstinado e de muita coragem. Não sei se o perdemos, mas alguém como ele faz muita falta.

O garoto ficou abalado pelo comentário. Index, que estava pousado em seu colo, o abraçou.

Letícia percebeu esse amável carinho e sentiu simpatia pela criatura. Para evitar um maior aprofundamento das emoções do jovem, ela perguntou:

— E como o nosso “conjurador” aqui entra na história?

— Depois de eu ser teleportado no tempo, cheguei até Flande, dez anos depois de ter batalhado com Zarastu e seus três Generais Atrozes. Saragat fugia de um grupo de caveiras. No meio da confusão eu me juntei a ele e acabamos nos unindo para fugir dos monstros. Realmente, foi um momento muito difícil, eu não gosto nem de lembrar.

— Difícil um caramba, seu idiota! Foi por sua causa que eu me meti nisso tudo. Mas de todo modo, agora entendo que tudo teve uma orientação divina...

Os militares gargalharam com as últimas palavras do mascarado. Para eles, os deuses em nada influenciavam na vida das pessoas, pois, estes também estavam sujeitos as mesmas leis naturais das quais os seres se subordinavam.

Para os alquimistas, o universo era um sistema, e esse sistema tinha como núcleo a natureza. O conjurador sentindo-se ofendido, se ergueu furioso e rosnou:

— O quê? Eu disse alguma piada, senhores de coturno lustrosos?

— Não é isso, meu jovem, nós apenas...

Antes que um de seus generais pudesse iniciar um acalorado debate teológico, Letícia os dispensou e permitiu ao garoto continuar o seu relato em momento oportuno. De modo respeitoso, eles acataram a ordem do então comandante-geral de Alfonsim, a general-brigadeiro.

Dumont esperou que até o último general saísse e devolveu o Monstronomicom ao Lisliboux.

A ladina que a tudo assistia com um sorriso de orelha a orelha, puxou o servo de Nalab pela capa.

— Senta aí, seu tapado, estragou o jantar, mano, que vexame!

— Ora, cale-se, sua larapia!

— Ei, parem com isso. Ainda estamos à mesa, tenham modos.

O mascarado agitou o seu cajado e a gatuna empunhou a sua lâmina. Quando os dois estavam prestes a derramar sangue, Letícia soluçou. Os três se viraram para ela.

Uma lágrima escorreu do seu belo rosto de maçãs salientes e nariz aquilino. A face agora parecia uma moldura de pura beleza graças ao corte de cabelo aplicado pela chokuto de Kuromaru. Ela jurou para si mesma que faria o tengu pagar!

— Vocês me lembram até as birras do meu irmão mais novo.

O grupo recobrou a postura na mesa, a garota guardou o seu punhal e o fiel de Nalab abaixou o Cajado Nebuloso. Index aproveitando o momento de calmaria, adormeceu.

Saragat lembrara que a todo o momento na enfermaria, enquanto convulsionava devido à magia divina do tengu, ela relatara episódios completos com o seu irmão. Mas as informações eram espaçadas, e de acordo com a alquimista, ele havia sido levado pelos monstros há um ano. O conjurador perguntou a alquimista sobre o seu irmão mais novo.

— Nos conte sobre Azambuja Dumont, por favor.


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