Um Reino de Monstros Vol. 2 escrita por Caliel Alves
O conde caminhou até uma parte do extenso bosque que rodeava Alfonsim. Uma enorme placa recebia os intrusos com um amistoso anúncio: “NÃO ENTRE, ÁREA PRIVADA DA RFE”.
Mais adiante, ele encontrou algo que parecia uma base abandonada. Constituída de um aeroporto e mais quatro pavilhões já cobertos por copas de árvores. O velho nobre ouvia uma medonha cacofonia vinda de dentro de um dos galpões.
É bom que os trabalhos estejam sendo adiantados!
Lá, uma centena de alquimistas trabalhava no enorme constructo conhecido como Deus Ex Machina, ou “exterminador de monstros” pela Resistência.
O constructo, como uma máquina movida à energia mágica, necessitava de um usuário de magia ou de uma fonte de energia, por exemplo, um artefacto.
Para a ativação da arma suprema desenvolvida pelo Conde Verdramungo, ele só precisava da Pedra Filosofal. Ela garantiria a vitória do seu exército sobre a Horda.
Quando os oficiais viram o seu superior, fizeram continência e estalaram as botas. Aquilo soou como música aos ouvidos do nobre, que permitiu o descanso da tropa. O engenheiro-chefe veio até o velho de cabelos grisalhos e disse receoso:
— Perdão, comandante, o senhor demorou-se a chegar, ocorreu algum problema?
— Nada demais, oficial, apenas um contratempo.
O aristocrata olhou para a sua mão direita e percebeu que a Pedra Filosofal o tinha curado. A mão foi erguida de modo triunfante. O subordinado ficou sem entendê-lo.
— Algo errado, senhor?
— Vejam, homens, durante a manhã eu levei uma punhalada no dorso de minha mão direita, e automaticamente a ferida foi curada pela Pedra Filosofal, sem nem ao menos ativá-la. Não é incrível, oficiais?
A joia rubra foi tirada do coldre e entregue ao engenheiro-chefe. Ele a pegou curioso.
— Ela foi desenvolvida para o propósito da Transmutação Humana, senhor.
Os militares foram irradiados pelo matiz escarlate. A luz do artefacto brilhou no galpão e foi sendo refletida nas peças cromadas do constructo.
Os dois se encaminharam para um elevador. Alguns alquimistas faziam um trabalho de solda, outros poliam a couraça do Deus Ex Machina. O constructo tinha o tamanho de um gigante.
— Mais armas foram anexadas ao projeto original, comandante, e poderão ser ativadas.
— Confio no seu trabalho.
À medida que o elevador subia, Verdramungo ficava maravilhado com o tamanho do seu projeto, era uma das suas poucas ideias que tinha vingado. Dentre elas, a expulsão de mulheres da Real Força Espagíria e o alistamento compulsório a partir de 12 anos foram reprovados pelo Estado-Maior e vetadas pelo Barão de Alfonsim.
Para uma nação tão progressista como o Baronato de Alfonsim, ele tinha uma mentalidade conservadora demais. Graças a sua posição e apelando a militares tão radicais quanto ele, de modo oculto, trabalhou na construção do Deus Ex Machina.
— É uma pena que os nossos compatriotas foram contra nossos esforços de proporcionar uma esperança que não deixasse dúvidas ao acaso.
— Realmente, é uma pena, comandante Verdramungo. Mas não pense mais nesses tolos, eles se agarraram aos seus ideais humanistas. Na guerra não existe humanidade, só existe o útil à causa.
— Sabias palavras, engenheiro-chefe. Queria que no lugar de um barão fraco e omisso, estivesse homens de fibra como o senhor. Está na hora de nobres fajutos saírem do poder e pessoas qualificadas tomarem o lugar dos tronos de Lashra. Imagine um lugar sem inúteis, sem igrejas mesquinhas usando a fé dos seus fiéis para louvar entidades que em nada contribuem para a nossa vida. Ainda vejo um lugar onde pessoas racionais como eu e o senhor possa governar de maneira legítima a sociedade.
O militar que nada mais era do que um jovem alquimista, sentiu-se orgulhoso de seu trabalho antes tão repudiado receber uma lisonja do seu amado comandante. O nobre era uma daquelas figuras cheias de empáfia e militarismo. Se seu sistema de governo fosse implementado, o contrato social seria escrito e legitimado não pelo povo, mas por ele mesmo.
— O nosso barão “reina”, mas não governa oficial.
Para ele, o governo não era uma cadeira cativa como o atual sistema monárquico que imperava em Lashra determinava. No atual sistema, a Coroa centralizava o poder no continente. A não ser bem poucas nações a manter sua independência, os diversos baronatos tinham governantes indicados pelo rei.
Essa centralização era a fraqueza do sistema. Assim como no xadrez, rei morto, rei posto! Tanto é que assim se sucedeu com os Habsburgos e Zarastu.
Encarando a sua obra, o conde expirou o ar e deixou escapar sua completa satisfação.
— Essa será a nossa resposta a ignorância de nossos militares de alta patente. Com este constructo, oficial, não existirá mais barreira para Alfonsim!
— Desculpe, senhor, não estou entendendo aonde quer chegar.
— Ora, não seja tolo. Imagine o poder que temos nas mãos. Depois que derrotarmos a Horda, nada nem ninguém ficará em nosso caminho.
O jovem alquimista sorriu. O conde ficou satisfeito pelo seu subordinado tê-lo entendido. O nobre pediu para que ele mirasse a entrada do galpão, este o fez.
— Veja, quando o DEM sair por aquela porta, eu o estarei controlando. Imagine que isso não será apenas um passo para Alfonsim, mas uma divisão em toda a história de Lashra. Esse será conhecido como “o dia em que o Conde Verdramungo pilotou o Deus Ex Machina criado por...”.
— Floriano.
— Floriano de quê?
— Floriano de Matos Inocêncio Guerra.
— Ótimo nome, um ótimo nome mesmo. Esse será o nome lembrado na história. Agora imagine esse mesmo nome no Ministério da Defesa ou Ministério da Justiça.
— Mas conspiração é crime de guerra!
O velho nobre sorriu. O jovem alquimista se empertigou. Aquilo parecia uma piada, ainda mais saída de um dos maiores defensores da Monarquia.
O conde alisou os seus cabelos grisalhos. Sua tez manchada lhe conferia um ar de experiência inegável, mas o que saíra dos seus lábios parecia loucura.
Floriano tirou sua boina e abriu mais um botão do seu jaleco. Era um alquimista, muito mais direcionado ao lado científico que místico da alquimia, e mais dado as pesquisas do que a política.
— Nunca imaginei que fosse um republicano, comandante.
— É justamente da República que precisamos. As nações que não aceitaram o pesado julgo da Monarquia prosperaram por tempo maior que os baronatos. Verdade seja dita, por muitos anos fui iludido pelas promessas de um governo forte e centralizado pela casa do Habsburgos, mas os tempos são outros, e os fortes são os que se adaptam as mudanças...
— O senhor deseja governar Alfonsim?
— Não vejo melhor opção, se é que me entendi.
Floriano pôs a mão segurando o seu queixo pontiagudo. Os seus cabelos cortados à moda militar lhe davam um ar sisudo, e o jaleco alargava sua estreita circunferência.
Possa ser que ele esteja projetando o futuro de modo precipitado demais. Entretanto, me parece uma proposta razoável a cadeira de um ministério...
Apesar da boa altura, ele era muito jovem, completara a Real Academia Alquimista junto com Letícia, Bernardo e o irmão mais novo de Letícia e seu odioso rival. Ambos eram grandes alquimistas. Haviam feito descobertas e criado projetos que revolucionaram Alfonsim!
Era correto dizer que os inventos de Floriano tinham extrema qualidade bélica, enquanto os do jovem Dumont tinham utilidade prática. O conde viu os talentos do rapaz e praticamente o apadrinhou na RFE.
— Eu estarei com o senhor onde quer que esteja!
— É bom ouvir isso. Eu preciso de pessoas de confiança como você. Praticamente, tu és um filho para mim, engenheiro-chefe Floriano. Vejo em ti qualidades das quais nem um homem bem-nascido como eu tenho a oferecer a essa Nação. Mas contigo, e mais alguns de vocês, eu posso criar uma nova Alfonsim.
— O senhor não o fará sozinho.
— Ótimo, assim espero.
Floriano acionou o elevador e ambos desceram alguns metros aonde a Pedra Filosofal seria colocada. O subordinado se virou para o conde e colocou a joia na mão dele.
— Faça às honras!
— Pois não, esta obra-prima precisa de vida.
Colocando a Pedra Filosofal dentro de uma campânula de cristal reforçada com um campo de energia mágica, finalmente o DEM estava pronto.
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