O Bailarino escrita por Mayara Silva


Capítulo 9
O Bailarino


Notas iniciais do capítulo

Oooi gente, eu de novo 'u'

Bom... nesse capítulo vou fazer uma coisinha diferente. Eu gosto de postar caps de mínimo 1k e máximo 3k de palavras, mais do que isso acho muito cansativo pro leitor.
Porém, eu já percebi que eu to dividindo demais os capítulos dessa fic kkkkkkkk e como eu só posto 1 vez por semana, é tempo suficiente pra ler capítulos maiores, então acredito que não vai cansar tanto.

A nova proposta é capítulos de no mínimo 1k e máximo 4k, beleza? Me deem feedbacks sobre isso, pfv ♡

Boa leitura! ♡ ♡ ♡



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Assim que montou o quebra-cabeça, ouviu o estalar da tranca. Alguém havia aberto a porta.

 

Virou-se em direção ao ruído e notou uma pessoa espreitando pela fresta. Por um segundo Anelise teve medo, mas a curiosidade ingênua e infantil falava muito mais alto em sua mente e coração. Ainda de joelhos, se acomodou melhor no piso de madeira e continuou a observar o estranho. Não era possível vê-lo muito bem, a lareira iluminava apenas aquele cômodo e os corredores estavam em completa escuridão, mas ele não parecia ameaçador. Tinha olhos grandes, pretos e brilhantes, e isso ela conseguiu enxergar muito bem, pois eram os destaques do seu rosto e lhe traziam uma expressão curiosa, algo que ela somente conseguia notar em crianças da sua idade: um olhar inocente, complacente, obediente.

 

— Oi?

 

Murmurou, mas não obteve resposta. Eles ainda se encararam por um pouco mais de tempo antes que ele tomasse coragem para entrar no cômodo com uma bandeja nas mãos. Anelise arregalou os olhos quando o viu e isso o deixou em estado de alerta.

 

Recuou quando notou que a menina parecia assustada, todavia, não, ela não estava. Estava curiosa. Ele era um rapaz estranho, ela nunca tinha o visto ou visto alguém parecido com ele na vida. Era alto, magro, tinha as mãos grandes, os cabelos curtos e os olhos brilhantes. Ela olhou para todos os detalhes que nunca havia visto em um adulto: os cabelos encaracolados, com lindos cachinhos escuros e fechados, os lábios levemente carnudos, o nariz um pouco largo, os olhos pretos, mas o que realmente havia chamado sua atenção era aquela pele estranha que não sabia ser negra ou branca. Era uma pele diferente, morena clara, cor de avelã, e ainda sim não parecia ser o tom de nascimento daquele rapaz, pois em outras partes de seu braço e rosto haviam tons diferentes como chocolate e café com leite. Atrelado a isso, grandes e indiscretas manchas esbranquiçadas imperavam, pouco a pouco, sobre as outras. Aquilo era demais para uma menininha branca que nunca havia visto o mundo pelo lado de fora do seu convívio.

 

Antes que ela gritasse — a reação esperada por ele —, o jovem rapaz rapidamente deixou a bandeja ali e retornou ao escuro de sua solidão, para observar de longe com seus olhos curiosos. Anelise enfim conseguiu desviar o olhar para baixo e contemplar um lindo conjuntinho de xícara com chocolate quente e pratinho com biscoitos e pãezinhos assados. Parecia gostoso e ela logo quis provar.

 

Se aproximou e começou a comer. Quando já estava levando o quarto biscoito à boca, voltou a observar aquele moço que assustadoramente não havia movido um músculo desde que deixou a bandeja lá. Ela colocou seus parafusos para funcionar e tentou uma abordagem.

 

— Você quer?

 

Estendeu a mão e lhe ofereceu um daqueles quitutes. O rapaz parecia ter elevado as duas sobrancelhas, pois os seus olhos brilhantes se tornaram ainda maiores. Lentamente se aproximou, ainda temendo que ela se assustasse, e aceitou o doce da menina.

 

Anelise sorriu. Quando suas mãos se tocaram, ele enfim percebeu que ela não o temia. O jovem se sentou ao seu lado, no chão, e saboreou pedaço por pedaço daquele doce, olhando para a lareira com um semblante distante. Sentiu uma mão pequena tocar o dorso da sua e, sabendo se tratar da menina, logo virou o rosto para ver o que ela queria.

 

— Você tem todas as cores do mundo…

 

A ruiva sussurrou, com os olhinhos azuis cintilando e um sorriso genuíno no rosto. Aquele comentário, por mais inocente que fosse, havia penetrado o seu coração profundamente. A partir daquele momento, passou a acreditar que o amor ainda existia… e que ele habitava nos corações das crianças.

 

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Ruínas dos alforriados, Londres – 21:03 hrs

 

Quando abriu os olhos, a primeira coisa que viu foi o luar inundando o vazio daquela sala velha e empoeirada.

 

Anelise ainda estava atordoada, sua mente latejava freneticamente, o corpo fraco pendia para o chão e os ombros ansiavam para relaxar, contudo, mesmo aquele piso nivelado estava destruindo seus ossos, sentia que seria pior para si própria manter-se naquele lugar.

Lentamente se inclinou para frente, manteve as pernas relaxadas no chão e olhou em volta. Aparentemente não havia ninguém, era uma sala vazia, as paredes descascadas, os cantos mofados e as teias de aranha visíveis. Ela suspirou, não fazia ideia do que havia acontecido nesse meio-tempo em que estava adormecida, mas não ficaria para descobrir. Virou em direção à única janela que iluminava o cômodo e tomou um susto com o que viu.

 

— Ai!!!

 

Sim, havia uma pessoa ali.

Anelise se arrastou para longe, todavia, aquela estranha não parecia ameaçadora. Estava em uma cadeira de balanço que serenamente pendia para frente e para trás, apenas sua silhueta era perceptível, os traços de seu rosto estavam ocultos pela escuridão da sala, mas alguns trejeitos entregavam a sua idade.

 

— … Quem é você?

 

Murmurou, apreensiva. A mulher desconhecida ainda tinha o rosto inclinado para a lua, a admirava com um semblante triste e disperso. Era possível ver os seus traços através do pouco iluminado pelo luar, e então, só nesse momento, Anelise finalmente realizou que ainda estava nas ruínas da antiga comunidade de alforriados, pois a cor da pele daquela mulher era diferente de tudo o que se lembrava.

 

— Menina…

 

A ruiva suspirou. Pelo tom, era uma senhora. A voz era forte, mas naquele momento estava rouca e desgastada, áspera e melancólica.

 

— Ele estava morto. Estava morto. Depois daquele dia, ele nunca mais voltou a viver.

 

Ela arqueou a sobrancelha.

 

— O bailarino?

 

Sussurrou, inconscientemente. Não sabia por que havia dito aquilo, mas havia acertado. A senhora não se mexeu.

 

— Ele não queria dançar. Ele queria cantar… Ele não queria ser diferente.

 

Ela se aproximou, em passos lentos e cuidadosos.

 

— Quem? Quem?!

 

O seu eco espargiu pelo ambiente, quase levantando a poeira daquela salinha estreita. A mulher, calma e nada oprimida, continuou.

 

— O meu filho.

 

Anelise soltou o ar que havia trancafiado em seus pulmões e relaxou os ombros. Antes que pudesse reagir àquela informação, foi interrompida pela senhora.

 

— Se acomode, menina. Eu vou te contar uma coisa.

 

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Sala de música, Casebre dos Jackson (memórias de Katherine) – 16:12 hrs

 

Era uma salinha minúscula e apertada, onde deixavam todo material de música que conseguiam e faziam seus ensaios.

 

Meu pequeno Michael espiava tudo pela fresta. Com quatro aninhos de idade, os braços mirradinhos e os cabelos crespos e curtíssimos, meu menininho de olhos brilhantes sonhava em estar ali, com eles. Queria tocar, cantar ou até mesmo dançar, qualquer coisa desde que o fizesse sentir-se útil para o grupo musical. Ele sempre me mostrou esse desejo, porém eu sabia que os outros não pensavam da mesma forma.

 

— Ei, sai daí! Vai importunar sua mãe!

 

Ouvi quando meu marido Joe exclamou, fechando a porta na sua cara. Sem guardar nenhum tipo de mágoa, meu menininho seguiu em direção ao quarto que dividia com seus irmãos e me encontrou no momento em que eu dobrava os lençóis alvos.

 

— Mamãe, posso ajudar?

 

Indagou, sorridente. Sorri e deixei os lençóis parcialmente dobrados na cama.

 

— Sabe fazer isso?

 

— Sei!

 

Ele se aproximou e começou com o afazer. Acariciei seus cachinhos curtinhos e, lentamente me afastando, passei a observá-lo. Michael é o meu filho mais novo e o único menino negligenciado por Joe, por isso, passou a maior parte do seu tempo com suas irmãs Rebbie e La Toya. Sempre me perguntei o porquê daquilo… Não havia diferença alguma entre Michael e seus irmãos, todos tinham a mesma força de vontade, as mesmas capacidades, mas eu sentia como era subestimado. Eu odiava ser a única a notar todo o potencial do meu garotinho, mas vê-lo sorrir, apesar dos maus bocados, ainda me trazia um pouco de felicidade.

 

A comunidade era um bom refúgio para nós, ali éramos respeitados como pessoas. Cada um tinha o dever de colaborar para o crescimento e a harmonia do lugar, e cada Jackson na família tinha o seu serviço, seja ele doméstico, intelectual ou braçal, todavia, à tarde, os garotos se reuniam para tocar em bares por aí afora em busca de alguma aceitação, prestígio e dinheiro — ao menos, assim dizia Joe. Eu nunca gostei de saber que meus meninos estavam tocando nesses lugares indecentes, buscando a aprovação daqueles que um dia escravizaram a minha mãe e a minha avó. Eu lembrava-os, todos os dias, como nossa vida simples era agradável, mas Joe sempre quis mais. Ele nunca achou justo que vivêssemos para sobreviver enquanto os filhos e netos de nossos malfeitores desfrutavam do melhor que essa terra poderia oferecer. O que eu podia fazer? Ele estava certo, mas até que ponto aquele sonho absurdo valia a pena? Até que ponto ter a atenção daquelas pessoas valia a pena?

Sim, eles eram muito bons, meus filhos eram verdadeiros artistas, e alguns daqueles burgueses admitiam antes de conhecer as suas histórias, mas era impossível driblar aquelas barreiras. Não havia disfarces, nem música boa, que os impedissem de serem vistos apenas como filhos e netos de escravos.

 

Porém, sinceramente, isso não me preocupava. Eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, coisas brilhantes aconteceriam na vida dos meus pequenos, sobretudo do Michael.

 

"À luz do luar, meu amigo Pierrot

Empresta-me tua caneta para que eu possa escrever

Minha lanterna se apagou, não tenho fogo para ver

Abri-me tua porta, pelo amor do bom Senhor"

 

Não pude conter um olhar espantado ao ouvir como o meu filho havia entoado aquela canção. Não estava em inglês, estava em francês, o que me deixava ainda mais surpreendida. Eu até teria o questionado sobre onde havia aprendido, mas não foi apenas isso que me deixou sem palavras.

 

Não pensei duas vezes: em passos apressados, fui atrás do Joe para lhe mostrar como o Michael poderia somar ao grupo musical dele. Sei que sou suspeita pra falar, mas eu nunca tinha ouvido voz como aquela. Era doce, suave e inebriante, era melódica e contagiante, e não era exagero classificá-la como angelical. Ele nunca teve aulas de canto e, mesmo assim, era tão afinado… Eu não sabia se era ingênua, mas tinha certeza que nem o desprezo daquelas pessoas pelas nossas raízes seria forte o suficiente para negar a belíssima voz do meu garoto.

 

— Mamãe?

 

Pensei que tinha sido discreta, mas Michael conseguiu ouvir os meus passos ansiosos através do ranger da madeira velha do piso. Como toda criança curiosa, ele lentamente se esgueirou pelos cantos para ouvir a minha conversa com Joe, e era isso que me preocupava, porque eu não queria que ele soubesse… eu não queria que ele visse o que poderia ocorrer caso eu não conseguisse ser ouvida.

 

E o que eu previa de pior, de fato, aconteceu.

 

Um tapa.

 

Foi o que ouviu e viu. A única coisa que vinha à minha mente eram seus olhinhos grandes e inocentes se arregalando quando viram o próprio pai desferir um tapa contra a própria mulher após um diálogo que quase não se estendeu. A dor física era insignificante para mim, as minhas ancestrais sofreram martírio pior, o que realmente me machucava era mensurar o quanto essa cena havia marcado em sua cabecinha inocente de criança. Meu filho era muito pequeno para entender a gravidade daquilo, mas ouviu o seu nome no meio da conversa e bastou apenas isso para se sentir a criança mais culpada do mundo.

 

 Ele correu para me fazer um presente. Eu já sabia… Eu ouvi os seus velozes e pequenos passos pelo corredor afora. Ele estava se sentindo culpado — ele sempre o fazia quando se sentia culpado — era a sua forma de pedir perdão.

Pegou suas tintas de desenho e buscou em suas coisas algum papel disponível para desenhar. Não encontrou, então correu por todos os corredores, que não eram muitos, fuçou em todos os armários que pôde alcançar, que também não eram tantos, até enfim achar os benditos papéis. Com um puxão, veio abaixo também meu pequeno relógio de ouro que eu guardava com muito carinho.

 

— Ops…

 

O relógio fez um tilintar e soltou o ponteiro. Ele se aproximou e o examinou por alguns instantes. Era um relógio caro, presente do meu marido. Não tinha ideia de como havia conseguido, porque certamente não compramos, mas era de toda maneira único e especial.

Teve medo. Tentou unir a pecinha ao relógio mais uma vez, sem sucesso. Eu sabia que ele não desistiria — não era do seu feitio desistir — consertaria aquele pequeno presente a qualquer custo, esse era o meu pequeno Mike. Todavia, agora só podia lamentar. Escondeu as "provas do crime" debaixo dos papéis que sobraram, no cantinho do armário, e correu para iniciar o seu desenho.

 

Porém, nesse exato momento, nossos olhares se encontraram.

Congelou. Os seus olhinhos arregalados claramente entregavam a culpa que sentia. Ele era tão pequeno para notar que aquilo realmente não me importava. Eu só queria abraçá-lo mais uma vez e dizer o quão importante ele é para mim — e não um singelo relógio de ouro — porém, ainda dispersa, apenas me aproximei e acariciei o seu cocuruto.

 

— Michael…

 

Minha voz já não era animosa, era trêmula e rouca, contudo ainda me esforçava para manter o tom doce que o apascentava. Ele olhou para minhas bochechas iluminadas pelas lágrimas que secaram e, então, um sorriso tremido surgiu sutilmente no canto dos meus lábios.

 

— Pode cantar para mim?

 

Supliquei, e ele assentiu sem pensar duas vezes. No fim daquele dia, a coisa mais importante que tinha para oferecer e que sempre atraiu minha felicidade não era um desenho ou um relógio de ouro: era a sua voz, e ele ainda não tinha plena percepção daquilo.

 

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Sala de estar – 09:30 hrs

 

Meu pequeno Michael, em toda sua inocente forma de ver as coisas, não havia percebido como aquele dia atípico não terminaria bem. Mesmo eu não havia percebido. Não há um dia que eu não me culpe por isso: minha desatenção tirou a vida do meu filho.

 

Estava brincando na frente de casa quando viu os seus irmãos mais velhos passarem em uma fileira organizada. Todos seguiram, com suas bolsas, malas e instrumentos, para uma carroça do lado de fora. Ele arqueou a sobrancelha, sem entender do que se tratava aquilo, até que decidiu ir perguntar.

 

— Pra onde vocês estão indo?

 

— Não é da sua conta, bebê. Volta pro seu quarto!

 

Michael não se abalou, do contrário, correu para perguntar a mim, sabia que eu contaria, porém não estava com sorte quando deu com o narizinho na perna de Joe que já estava o esperando.

 

— Desculpa…

 

Murmurou, baixinho. De longe, eu observava tudo.

 

— Venha cá.

 

Disse meu marido, sucinto, sem maior reação. Michael o seguiu, sem saber o que estava acontecendo.

Passaram pelos corredores, seguiram em direção a um dos armários e, somente naquele momento, senti um arrepio gélido e desconfortável subir a espinha. Quando vi os seus olhinhos pretinhos e brilhantes arregalarem, tive certeza de que precisava fazer alguma coisa.

 

Porém, antes que eu pudesse me mover, vi quando Joe segurou alguma coisa e a chocou contra a bochecha esquerda do meu menininho. O golpe, de tão profundo, lançou o corpinho frágil do meu filho até o chão e o fez bater com a cabeça no piso de madeira precário da casa. O objeto se desfez em mil pedaços e, somente após ver o tilintar dos fractais semelhantes a gotas de chuva dourada, percebi se tratar do relógio de ouro quebrado. Michael apagou por alguns instantes, naquele momento gritei com todas as minhas forças. Eu confesso que dificilmente contrariava as decisões do Joe, ou sua forma de resolver as coisas, mas aquilo… eu jamais poderia aceitar. 

Percebi que minha reação extravagante acordou o meu pequeno e aquilo novamente me encheu de esperanças. Corri com todas as minhas forças para tentar defendê-lo.

 

— Pare com isso, Joe, pare com isso!! Eu já disse que fui eu!! Não foi ele!!

 

Tentei tomar aquele castigo para mim. Eu não tinha forças contra meu marido, então, que ele me tivesse em suas mãos, mas que deixasse o meu filho em paz. Meu olhar alcançava em concomitância o semblante frio de Joe e as expressões vagas do meu Michael. Capturei o momento em que ele lentamente levou a mão ao rosto, notou o sangue em sua palma e as pecinhas do tal relógio espalhadas pelo chão como poeira. Aquela visão destruiu o meu coração.

 

— Você vai matá-lo!!!

 

Ele me empurrou, ouvi gritos, ouvi ofensas, mas nada disso me importava, eram como ruídos sem nexo, minha mente estava concentrada em proteger o meu filho. Pensei que desferir aquelas palavras a mim fosse o suficiente para acalmar a sua fúria, porém notei como ele não estava satisfeito quando puxou meu menino pelo braço e, longe da minha presença, disse-lhe coisas que ninguém jamais deveria dizer a um filho seu.

A partir daquele dia, meu pequeno Michael perdeu toda a animosidade de sua voz e não falou mais, não cantou mais, não viveu mais. Joe havia o silenciado para sempre.

 

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Ruínas dos alforriados, Londres (retorno ao presente) – 21:29 hrs

 

Anelise não disse uma palavra. Silenciosa, pensativa, não ousou desviar o olhar daquela senhora enquanto permitia que cada ponto daquela história inundasse sua imaginação.

 

Não conseguia escolher qual daquelas revelações era a mais absurda: abusos, um refúgio de descendentes de escravos, tentativas de sobrevivência pela música, o silêncio misterioso do bailarino… as suas raízes… Ela não fazia ideia se acreditaria mesmo em todas aquelas coisas, mas o que ouviu instantes após um breve silêncio da velhinha levou todos os seus pensamentos embora.

 

— Ele está morto. As coisas que aconteceram o transformaram no que é hoje… e explicam o que ele faz para se preencher. Eu nunca mais pude ouvi-lo cantar novamente… mas… isso mudou. Isso mudou quando ele trouxe para casa uma menininha com os cabelos de fogo.

 

A ruiva estarreceu.

 

— Pela primeira vez, eu ouvi a voz madura do meu menininho. Ela conseguiu fazê-lo sorrir. Ela conseguiu fazê-lo falar. Era pouco e eu não ouvia muito, era quase um segredo. Eu não sei quem era ela… mas ela trouxe a vida do meu filho de volta.

 

A menina suspirou, quase sem fôlego diante daquelas revelações. Sempre foi curiosa quanto ao seu passado, contudo, agora, este estava sendo lançado diante dos seus olhos, e ela não tinha dúvidas.

 

— Sou eu. Só pode ser eu… Os sonhos que eu tenho, o quebra-cabeça, a pessoa estranha dos meus pensamentos… Eu preciso encontrar o bailarino, senhora, o seu filho é o único que pode esclarecer essas coisas. Onde ele está?

 

— Não…

 

Murmurou a mulher, enfim a fitando nos olhos pela primeira vez. Quando notou os seus olhinhos tristes e pequenos a contemplarem, Anelise sentiu um arrepio estranho e recuou inconscientemente.

 

— … não?

 

— Não… Michael, não faça isso!!

 

Repentinamente, duas mãos grandes de dedos esguios violentamente cobriram a boca da menina, a impedindo de emanar qualquer som. Tentou gritar e se debater, mas foi arrastada com brutalidade para fora daquele quarto. Fincou propositalmente as suas botinhas de salto baixo no piso velho de madeira, todavia era um material muito decomposto pelo tempo para segurá-la com afinco.

 

— SOCORRO!!

 

Enfim conseguiu gritar, mas era tarde. Ele a arrastou para uma sala diferente, a soltou por lá e trancou-se com ela. Anelise correu para a parede mais próxima, perguntava-se o que diabos havia dado nesse homem para atacá-la com tamanha grosseria, como se fossem completos desconhecidos, como se ele nunca tivesse tocado com aqueles lábios em sua pele.

 

— Ora… Já esqueceu que nós nos beijamos, "senhor" Michael Jackson?!

 

O bailarino parecia sem reação ao ouvir o seu nome. Ela notou, notou também o seu pomo-de-adão movimentar-se como uma onda no mar, sinal de que havia engolido seco, notou os seus dedos direitos discretamente acariciarem o próprio dorso da mão esquerda em um gesto pacificador, notou como parecia nervoso e desconfortável. Pelo visto, não teria o privilégio de ouvi-lo falar mais uma vez. Não, não agora.

 

— A sua mãe me contou tudo. Tudo. Você não quer me contar nada? Não quer complementar, desmentir, se explicar?

 

Aparentemente a resposta para todas aquelas perguntas era "não", pois o homem passou a ignorá-la. Foi até a única janela da sala e abriu ainda mais as cortinas, permitindo que o luar alcançasse os cantos mais escuros, e, só assim, Anelise pôde observar melhor aquele quartinho.

 

Era uma sala de dança. Por mais que aquela construção fosse uma ruína infestada de pestes e ervas daninhas, o quartinho em que estavam era muito bem cuidado. Não havia luz, exceto a do luar, mas era perceptível as paredes em sutis tons de rosa claro, barras nas horizontais e espelhos em todos os cantos. O bailarino apoiou-se com uma das mãos naqueles suportes, colocou-se em uma postura ereta e iniciou alguns passos básicos de treinamento, ignorando completamente o que havia acabado de acontecer.

 

A ruiva arqueou a sobrancelha, parecia incrédula.

 

— Quer me fazer de doida, é? Você acabou de me trancar aqui e vai simplesmente ignorar tudo e treinar agora?!

 

Era exatamente isso que ele estava fazendo. Sem ceder às suas provocações, o bailarino deslizou o olhar para o chão e passou a se concentrar nos pontos mortos da sala, enquanto seus braços e pernas faziam os movimentos desejados. Anelise bufou, furiosa, mas não podia fazer muito. Se queria alguma coisa dele, teria que jogar o seu jogo.

 

Segurou a barra e, de frente para o homem, começou a repetir os seus passos. A princípio, ele não se importou, até enfim perceber aquelas tentativas de chamar sua atenção. Anelise fez um biquinho empoderado, elevou o queixo, empinou o narizinho e continuou a copiar os movimentos em um ato de zombaria.

 

Mas — se as suspeitas dela estivessem corretas — sim, ele a conhecia muito bem e sabia que, para conseguir provocá-lo, ela copiaria tudo.

 

Ligeira e propositalmente, o bailarino alterou o passo cinco e pôs-se na ponta dos pés por alguns segundos. Bastou isso para que Anelise tentasse repeti-lo sem questionar e caísse de forma desengonçada ao forçar um sapatinho de passeio a manter o calcanhar empinado.

 

— Aaai!!

 

Desta vez, ele a deixou cair. O barulho ecoou pela casa inteira, levantando uma poeira considerável que desapareceu gradativamente e revelou uma Anelise atordoada, mas bem. Seus olhinhos claros piscaram por alguns instantes antes de contemplar os olhos escuros do homem e o seu sorriso discreto. Parecia emocionado, embora contido.

 

— Helena… homens não ficam na ponta.

 

E ela o ouviu novamente. Seus pensamentos se dispersaram mais uma vez, era o que acontecia sempre que ouvia aquela voz suave e enigmática. Sem forças para se levantar, permaneceu jazida sobre o piso velho. O homem lentamente removeu as luvas que usava e passou a caminhar em passos lentos pelo salão, distanciando-se dela.

 

— Eu… sei o que ela disse a você. Mas, se quer conhecer alguém, faça perguntas a essa pessoa, não a terceiros. Se mesmo surpreendes-te com a ti próprio, que dirá alguém que não conhece os teus demônios? Lembre-se disso.

 

A ruiva permaneceu em silêncio, ainda surpresa com o que estava ouvindo. Demoraria alguns instantes até que pudesse se acostumar com aquela voz doce e inebriante — nisso, aquela senhora não mentiu — o que serviu para que o moreno pudesse contar a sua história.

 

— Você ainda era muito pequena quando apareceu na minha vida.

 

Suspirou e, então, o olhar vago pendeu para uma outra direção que não fosse a dela.

 

— Era inverno. As pessoas estavam evitando sair de casa, estocavam comida como animais enjaulados e se agasalhavam em seus lares. Eu não tinha direito a essa opção, porque morreria de fome. Isso foi a anos atrás, quando ainda era aprendiz. E tudo… tudo isso começou… após ouvir as palavras do meu pai.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:

Os de Marlborough acordaram, naquela manhã, com batidas desesperadas na porta. Para os despertar com tamanho espanto, era certamente uma emergência.

— O que foi?! Senhora Everglow, o que está fazendo a essa hora do dia?!

— Anelise não está em casa!! Não está em canto algum!!

Aquilo levou embora todo o cansaço do homem.



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