O Bailarino escrita por Mayara Silva


Capítulo 7
Lembranças - Parte I


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura ♡ ♡ ♡



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Corredores, Casa dos Marlborough – 08:50 hrs

 

Após a noite anterior, o mormaço sufocante do assassinato tomou conta daquela manhã triste e nebulosa.

 

Ninguém lembrou de acordar a jovem Anelise. Os corredores estavam silenciosos, os empregados cochichavam e faziam suas obrigações com muita discrição, e os patrões haviam saído para resolver alguns negócios. A polícia visitou o casarão no dia do crime e fariam outra visita naquela manhã, todavia não haviam chegado ainda.

De qualquer maneira, os pensamentos da ruiva não estavam nesses detalhes. O que vivenciou com o bailarino dos seus sonhos havia sido um passeio consecutivo ao céu e ao inferno, e às vezes concomitantemente, pensar sobre aquela noite sempre lhe trazia maus presságios. Não só isso, ouvia aquele nome martelando em sua mente: "Helena"… O que era aquilo? Quem era aquela? Por que ele tinha tanto medo?

 

Temia que toda aquela situação tivesse o assombrado para sempre. Temia nunca mais vê-lo de novo. A rosa, já envelhecida e de pétalas levemente enegrecidas nas extremidades, repousava delicadamente em suas mãos de dedos finos e ela ainda insistia em arrancar um pouco de seu cheiro, de sentir o seu perfume. Tornou a colocá-la nos cabelos e caminhou pelos corredores em direção ao salão de refeições, até passar pelas portas dos quartos e ouvir uma melodia ecoar de um deles.

Era no quarto de Sofia. Anelise se aproximou com curiosidade, pensou em bater à porta, mas, antes que o fizesse, viu um homem sair logo após.

 

— Voltarei amanhã, senhorita, mas, se continuar progredindo assim, seu tratamento logo terminará.

 

Disse, antes de tomar o seu rumo em direção à saída da mansão. Era um homem alto, barba grisalha, óculos de armações circulares, casaco marrom, lenço vermelho e calças xadrez em preto e branco. Carregava uma pasta e parecia bastante inteligente, talvez um pouco simpático. Anelise arqueou a sobrancelha e o deixou partir antes de entrar no quarto da irmã e questioná-la sobre isso.

 

— Sofi?

 

— Oi, irmã. Bom dia…

 

Murmurou a menina enquanto guardava a sua vitrolinha preferida. Ela parecia um tanto cabisbaixa, mas a ruiva não podia fingir que não havia motivos para tal.

 

— Quem era o velho?

 

— Um hiptone… um hinopte… um hipoterapeuta.

 

— Ah, um hipnoterapeuta. Você tá com algum problema, irmã?

 

— Eu… ontem foi horrível.

 

Sofia suspirou e se jogou na cama, relaxando o seu corpo. Anelise se sentou na beira e ficou a observando.

 

— Eu não consegui dormir nem um segundinho… Mamãe achou melhor contratar um pra mim, mas ele só pôde começar as sessões agora, pela manhã.

 

— Não vai tomar café da manhã comigo?

 

— Eu até ia, mas quero tentar dormir um pouco, pelo menos enquanto o efeito tá fresco em mim.

 

Anelise arqueou a sobrancelha.

 

— Falando nisso, é curioso… O que um hipnoterapeuta faz, na verdade?

 

— Eu nem sei. Ele só me pediu pra deitar e ficou fazendo umas perguntas… Foi relaxante, mas depois eu acordei e, não sei como, me senti um pouco mais calma.

 

A ruiva ponderou sobre aquilo.

 

— Sofi… você acha que ele poderia… não sei… acessar os meus sonhos?

 

A menina franziu o cenho.

 

— Por que você quer isso?

 

— Se lembra que eu sempre estou sonhando com uma casa no inverno e um quebra-cabeça? Depois da noite passada, eu estou desconfiando de algumas coisas do meu passado.

 

— Que estranho… A sua infância não foi diferente da minha, a gente sempre viveu aqui.

 

— Não sei… Eu queria muito descobrir. Você me emprestaria o seu hipnoterapeuta?

 

Sofia lentamente esboçou um sorriso e assentiu.

 

— Claro! Mas só se você me contar depois o que descobriu!

 

— E você acha que eu ia deixar uma fofoca dessas passar despercebido?

 

Elas gargalharam, mas não durou muito, Sofia rapidamente notou um detalhe.

 

— Você quer isso pra hoje?

 

— Quanto antes, melhor.

 

— Então é melhor correr, porque, a essa altura, ele já deve estar do outro lado da rua.

 

A ruiva arregalou os olhos. Não que realmente tivesse pressa, mas era uma menina ansiosa e não podia perder a oportunidade. Levantou-se rapidamente e correu em direção à janela do quarto da irmã.

 

— Ô velho!! É, você!! Espera aí, fica aí!!!

 

Sem nenhum receio, se retirou e catou um casaco no meio do caminho. Sofia permaneceu no quarto, a gargalhar. Sua irmã era a única que conseguia lhe arrancar um sorriso genuíno em tempos tão tenebrosos.

 

x ----- x

 

Quarto de Anelise – 09:41 hrs

 

— Está pronta, senhorita Anelise?

 

— Manda bala.

 

O homem arqueou a sobrancelha.

 

— O quê?

 

— Digo… vamos, siga em frente.

 

Ele custou a reagir, mas aquiesceu e continuou com o procedimento. Estavam no quarto da ruiva e as etapas eram exatamente as que Sofia havia descrito para ela. O homem pediu para que deitasse e relaxasse, pediu também para que lhe preparasse a vitrola, pois a música era um bom estimulante cerebral e poderia conduzi-la nas lembranças com mais facilidade. A melodia era a mesma utilizada nas sessões de Sofia: Moonlight Sonata, de Beethoven. Calma, harmônica, linear.

 

— Vamos começar com perguntas simples. Não se importe muito em me fazer entender ou em que palavras vai usar, eu quero apenas que vá me respondendo com conceitos fáceis, tudo bem?

 

— Okay.

 

Após aquela afirmativa, ele pôs a vitrola para tocar e em poucos instantes a melodia inundou os ouvidos da garota. Anelise fechou os olhos e tentou relaxar os músculos como pôde, tentou limpar sua mente de todo e qualquer pensamento, e se concentrar apenas na voz daquele homem.

 

— Me diga o seu nome.

 

— Anelise.

 

— Olá, Anelise. Quantos anos você tem?

 

— Dezessete.

 

— Certo. Anelise, no sonho, onde você se encontra?

 

As imagens vieram à sua mente. Ela inspirou o ar com serenidade e prosseguiu.

 

— Estou numa casa. É uma casa de madeira.

 

— É uma casa simples ou muito glamourosa?

 

— É… está no meio. É menor que a do papai, mas é bonita. Está frio…

 

— E o que mais você vê nessa casa? O que mais você percebe no ambiente?

 

— Vejo… vejo…

 

Ela apertou os olhos. O doutor procurava não a pressionar muito para que as imagens viessem naturalmente, mas, em determinado momento, Anelise não se sentia mais estimulada a responder, pois sua visão tomou conta de todos os seus demais sentidos.

Viu-se em uma casinha rústica, estava fazendo frio. Os pelos dos braços e da nuca da garota se eriçaram por completo, como se estivesse mesmo nesse lugar. Ouviu um barulho ao fundo, alguns gemidos de dor e súplica sem palavras, e, após, o famigerado quebra-cabeça. Com suas mãozinhas pequenas, muito menores do que se lembrava, passou a montar o brinquedo com pouca dificuldade. Uniu peça a peça enquanto o calor da lareira aquecia as suas bochechas, embora ainda conseguisse sentir o ar gélido pelas suas costas. Não sabia se era efeito da música, mas ali, perto de si, viu uma vitrola a tocar a mesma melodia. O som alto abafava os ruídos mais assustadores, um barulho sutil de algo a ser apunhalado, algo que ela ignorou e tornou a brincar.

 

Encaixou a última peça. Ouviu, ao fundo e mais uma vez, uma voz a tentar fazer contato consigo.

 

— Anelise… Anelise…

 

Ela olhou para a figura que havia se formado. O seu sonho nunca prosseguiu mais que aquilo, todavia, agora, ela estava ali, admirando aquela imagem.

 

— O que é que você vê? O que está na sua frente agora?

 

— Eu vejo… um vilarejo.

 

O homem ficou em silêncio por alguns segundos.

 

— Doutor?

 

— Volte. Feche os olhos, Anelise, relaxe e volte para o seu quarto.

 

Em poucos instantes, ela acordou. Ainda atordoada, com os olhos mal acostumados com a luz, piscou algumas vezes e olhou para o lado. O homem desligou a vitrola e fechou o seu bloco de notas.

 

— O… o que eu disse?

 

— Não se lembra?

 

— Eu… lembro um pouco, mas agora parece que não faz sentido. Eu falei coisas com sentido, não falei?

 

O homem assentiu.

 

— Isso é uma memória trancafiada. Geralmente essas coisas acontecem após um ou mais episódios de trauma, é uma reação do cérebro a lembranças muito prejudiciais.

 

Disse-lhe, enquanto guardava as suas coisas em uma maleta preta.

 

— Você me disse que sonha que está brincando com um quebra-cabeça, mas não conseguia adivinhar que figura o brinquedo formava. Pois bem, agora, você não conseguiu me descrever muita coisa, passou a maior parte do tempo em silêncio. Precisarei fazer mais sessões com a senhorita.

 

Anelise suspirou, frustrada.

 

— Então, essa primeira sessão não deu em nada?

 

Ele suspirou.

 

— Acredito que a imagem do quebra-cabeça seja um vilarejo, foi a última coisa que me disse antes que eu lhe acordasse. Como você estava perdendo o contato comigo muito facilmente, achei prudente não forçá-la a descrever o desenho com minúcias. Podemos tentar mais uma vez na próxima sessão, mas agora você precisa descansar a mente.

 

Ela assentiu, continuou na cama enquanto o homem saía e lhe deixava em sua privacidade. Assim que ele deixou o quarto, a garota relaxou o corpo mais uma vez e tentou dormir um pouco, sua cabeça realmente doía, pelo visto essas sessões seriam desgastantes.

Contudo, enfim havia entendido as palavras de Sofia quando disse que "o efeito ainda estava fresco", pois, ao fechar os olhos, a primeira imagem que veio em sua mente foi a exata forma do vilarejo em todos os seus mínimos detalhes.

 

x ----- x

 

Quarto de Sofia – 21:35 hrs

 

Sofia ainda não conseguia dormir e a próxima sessão seria apenas para o dia seguinte, portanto, ainda um pouco acesa, chamou a irmã para jogar papo consigo enquanto o sono não chegava. Anelise veio logo em seguida, com alguns quitutes que pegou escondido na cozinha.

 

— Mamãe não vai brigar?

 

— Talvez a senhora Everglow brigue, mas a mamãe nem vai dar por falta.

 

Elas riram baixinho e se acomodaram nos lençóis. A ruiva colocou a tigela de porcelana com docinhos no centro da cama e relaxou os ombros.

 

— Pois bem! E as novidades?

 

— Eu tô com um pouco de medo… O barão Ortega morreu nos corredores pro primeiro andar. Eu não vi o corpo, mas… não sei… e se o fantasma dele tiver por aqui?

 

— Você acredita nessas coisas?

 

Indagou a garota, pouco preocupada, enquanto devorava um docinho. Sofia moveu os ombros.

 

— Você não acredita?

 

— Eu, não.

 

— Bom… eu tenho medo. Essas coisas do além são bem desconhecidas, você nunca vai conseguir me garantir que não existe.

 

— E nem que existe, mas, se isso te conforta, reza a lenda que só os fantasmas com pendências na Terra ficam pra assombrar. Vamos torcer pra ele ter conseguido resolver tudo a tempo.

 

Anelise gargalhou, sem ser retribuída.

 

— Mamãe disse que ele era ranzinza porque a esposa dele tinha falecido.

 

— Ótimo, isso significa que ele vai ficar bem feliz do outro lado. Não se preocupe, irmãzinha. Olha, se você se sentir insegura, é só pedir, que eu fico aqui, okay? Eu protejo você.

 

Sofia riu baixinho.

 

— Isso eu gostaria de ver! A lady livre de maridos, apaixonada pelo rebelde bailarino e, agora, caça-fantasmas!

 

— Se continuar me azucrinando, eu vou chamar o barão pra puxar o seu pé!

 

Elas gargalharam, o que não durou muito, pois Sofia começou a sentir calafrios mais uma vez.

 

— Vamos parar, melhor não brincarmos com isso. Ah, e como foi hoje com a sessão?

 

Quando aquele assunto iniciou, Anelise soltou um suspiro frustrado e passou a brincar com uma mecha do próprio cabelo.

 

— Foi bom e não foi… Não vi muita coisa do meu sonho, mas o desenho que o quebra-cabeça formava era um vilarejo.

 

— E o que isso significa?

 

— Acho que nada. Okay, é um vilarejo. E daí? Acho que eu devo ter batido a cabeça forte e essa foi a minha última lembrança desse dia.

 

— Tem razão. E o bailarino? Você conseguiu falar com ele?

 

Outra pergunta difícil. Bastou ouvir aquele título que os pensamentos da ruiva foram preenchidos com memórias daquela fatídica noite, de todos aqueles momentos, da dança, dos toques, do beijo e, sobretudo, das suas últimas palavras.

Todavia, diferentemente do que havia prometido a Sofia, Anelise não estava se sentindo muito instigada a contar todos os detalhes de sua aventura.

 

— Eu o vi. Nós dançamos um pouco… só isso.

 

— Oh! Que momento, irmã! E isso é tão romântico… Ele se declarou pra você? A essa altura, já devia estar pedindo em casamento!

 

— Não! Não, ele… acho que ele não quer essas coisas, Sofia.

 

A garota fez uma expressão emburrada e suspirou.

 

— Então ele tá te enrolando. Esses tipinhos usam e jogam fora.

 

— De onde você tira essas coisas, hein?

 

— Da mamãe. Eu escuto ela conversando com as amigas, às vezes.

 

— Hunf… tá na hora da mamãe comprar tampões de ouvido pra você, ou ficar mais atenta.

 

Ela puxou os cobertores quentinhos para perto de si e colocou a tigela na mesa de cabeceira ao lado.

 

— Vamos dormir, senão, mamãe vai ficar furiosa por te ver ainda dormindo pela manhã.

 

— Nem me fale… Hoje foi difícil. Boa noite, irmã!

 

— Boa noite.

 

As duas se aninharam nos cobertores e a pequena desligou a luz do abajur. Quando apenas o luar se espargia pelo quarto, Anelise pôs a cabeça no travesseiro com os pensamentos acesos. Aquele maldito vilarejo não saía de sua mente e ela sabia que não ficaria em paz se não tomasse alguma providência. Felizmente não estava centralizada apenas em desgraças, pois, juntamente com o problema, veio-lhe a solução embaralhada em reflexões dispersas, e essa solução tinha nome e sobrenome.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:

O garoto arqueou a sobrancelha.

— O que você quer?

Era a pergunta que ela precisava. Sorriu e enfim lhe mostrou o quadro que segurava. Era uma belíssima pintura, em aquarela, de um vilarejo no meio da floresta. [...]

— Eu quero que me diga se esse lugar é familiar pra você. Você tem os olhos das ruas, conhece cada canto dessa cidade.

Ele suspirou.

— [...] Esse canto é uma antiga comunidade de escravos alforriados próximo da floresta. Alforriados, recém-libertos, fugitivos, descendentes, todo tipo de ex-escravo que você possa imaginar.

[...]

A ruiva ponderou em silêncio sobre todas aquelas informações.

[...]

— Me leve até lá. Eu quero ver com os meus próprios olhos.

Disse, decidida. Não sabia por que o seu passado a conduzia até esse lugar, mas descobriria por bem ou por mal.



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