O Bailarino escrita por Mayara Silva


Capítulo 16
Ágape - Parte II


Notas iniciais do capítulo

Gentee, estamos chegando perto do fim. À essa altura vcs já conseguiram descobrir o segredo do misterioso bailarino? ~

Boa leitura ♡ ♡ ♡



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Cozinha – 12:13 hrs

 

Sofia juntou uma cadeira próxima ao armário para alcançar um pote de guloseimas enquanto Anelise buscava alguns acompanhamentos doces para dividir com a irmã. Haviam xeretado cada cômodo daquele andar, e, por incrível que pareça, esse era o mais divertido até então.

 

— Cuidado para não se empanturrar, hein? Logo vamos almoçar.

 

— Eu sei! Não é melhor nós ficarmos perto das escadas pro térreo? Já, já o seu noivo vai nos chamar! Quer dizer… vai tentar… Eu não sei, ele não fala, né?

 

— É complicado…

 

A ruiva riu baixinho e se aproximou para segurar a cadeira e permitir que a irmã descesse em segurança.

 

— Senta aí e come um pouco. Eu vou ver se ele ainda está enrolando o papai e a mamãe, já volto.

 

— Tá certo!

 

A ruiva se retirou em passos apressados e se embrenhou pelos corredores. Correu sem medo de julgamentos, sem hesitação, sem desânimo. Antes de procurá-lo, voltou a explorar o ambiente.

 

— Esse lugar é enorme… Não acredito que tão logo vou morar aqui.

 

Ela murmurou, já estava se sentindo em casa. Caminhou mais um pouco até encontrar o corredor cujo final dava para o térreo, era esse mesmo que teria que virar. O seguiu, e levou um susto ao perceber um movimento de alguém ou alguma coisa seguindo pela esquerda, sumindo do seu campo de visão.

 

— Ah!

 

Ela suspirou e retornou rapidamente. Jogou as costas na parede, buscou acalmar sua respiração descontrolada, pensou ter tido uma impressão, mas nada convenceria o seu cérebro daquela hipótese naquele momento.

 

— Calma… deve ter sido um funcionário.

 

Murmurou para si mesma, até enfim tomar coragem e retornar ao corredor do ocorrido. Caminhou em passos lentos, afogou sua euforia em um banho de alerta, deixou os olhos e os ouvidos atentos.

E então… ouviu um riso. Muito distante, muito discreto, muito infantil, mas jurou tê-lo ouvido. Suspirou mais uma vez, não estava gostando nada daquilo.

 

— Acho que… deve ter sido o filho de algum…

 

Ouviu outro som. Já não era mais uma criança, era choroso, melancólico e maduro. Vinha de um daqueles quartos, o único cujas portas estavam levemente entreabertas. Pela sombra, havia alguém ali em uma cadeira de balanço. Lentamente para frente, para trás, esse era o movimento que fazia. Anelise não fazia ideia onde estava se metendo, mas, independentemente de quem fosse, não se mostraria, não até ter certeza de que havia uma explicação bem fundamentada para toda aquela loucura.

 

— Ele está… está…

 

Era o que entendia dos murmúrios que ouvia. Em passos ainda mais cuidadosos, lentamente se aproximou da fresta e espiou. Deparou-se com ela, era a senhora que havia encontrado nas ruínas, a mãe do seu amado. Ainda velha, ainda cansada, abatida, mas muito bem ataviada tal como a mãe de um rei, adornada de relógios de bolso caros e enfeitados com correntes de ouro puro. Balançando para frente e para trás, ela olhava para o vazio daquela sala enquanto estranhamente murmurava as mesmas palavras.

 

— Ele está morto… está morto… morto…

 

Anelise segurou a respiração e lentamente se afastou, sem compreender absolutamente nada e temendo que essa ignorância pudesse prejudicá-la. Se afastou sem tirar os olhos daquela sala, até que estivesse longe o bastante, até que estivesse próxima do corredor por onde viu o estranho correr.

Agora, tinha uma escolha a fazer: seguir em frente para o térreo, ou acompanhar os barulhos do corredor à esquerda. Sim, tinha medo, mas era curiosa.

 

— Na pior das hipóteses, eu vou morrer…

 

Ela suspirou e virou à esquerda. Ouviu alguns ruídos inconvenientes no segundo andar, seguiu sem pensar se deveria — um dia aquela casa seria sua, não haviam mais segredos para esconder. Subiu as escadas em passos um pouco mais imprudentes até ter acesso a um corredor muito parecido com o anterior. Anelise arqueou a sobrancelha.

 

— Hum… criatividade não é bem o forte dele…

 

Prosseguiu pelo caminho deserto, juntou as mãos na frente do corpo e, encolhida em suas desconfianças, observou a decoração com bastante atenção.

Os retratos eram os mais intrigantes. Haviam vários e eram no mínimo duvidosos: fotos de crianças desconhecidas, do que pareciam ser alguns escravos e de paisagens naturais, porém as três seguintes fizeram cessar os seus passos. Era início do século XX e a fotografia era uma novidade, mas, pelo visto, o bailarino era apegado às técnicas da antiguidade. Deparou-se com uma recente pintura sua, idêntica ao seu estado atual, as vestes em tons de preto e prata, o peito ataviado, os cachos a cair sobre os ombros, o olhar enigmático e o semblante distante, adornado em uma moldura dourada e esculpida à mão. Logo após, um outro quadro cujo os olhos entregavam a sua identidade, mas os cabelos já não eram tão compridos e os seus traços faciais eram pouco demarcados. Jovial, tinha o peito ataviado de preto e vermelho, vestes que cobriam-lhe todo o pescoço e braços, e símbolos que exibiam o início de sua ascensão social rodeados por uma moldura em prata com arabescos. O último e mais intrigante, ainda ele, os olhos negros, grandes e misteriosos, mas a pele corada como um europeu castigado pelo sol e os cachos ainda mais fechados como um mestiço de senhor e escrava destoavam da imagem de sua memória. Os trajes eram simples, como o filho de um típico burguês, munido de pouca glória, e a moldura que o cercava sequer havia sido pintada. Ainda no rudimentar tom de madeira bem polida, esse era o último quadro que havia encontrado naquele corredor excêntrico.

 

Anelise ponderou por um segundo. Indagou em pensamento, caso aquela fileira de quadros prosseguisse, se o próximo que veria não seria o tão famigerado "homem de todas as cores do mundo" da sua dispersa memória infantil. Indagava, caso o visse, se alguma coisa despertaria dentro de si.

 

Mas, então, outra coisa chamou sua atenção.

Logo abaixo daquele quadro, havia uma cômoda repleta de gavetas e enfeitada com quinquilharias antiquadas. Decorações antigas, porcelanas francesas, vasos dos tempos do grande Rei Sol, porém não eram todas aquelas geringonças colecionistas que havia aprisionado o seu olhar, e sim o que sorrateiramente cintilava no escuro daquelas gavetas discretamente entreabertas. A ruiva abriu apenas uma delas e se deparou com uma variedade daqueles relógios de bolso caros, aparentemente os preferidos de seu amado.

 

— Que gosto esquisito…

 

Não via nada de especial naquilo, o seu pai tinha um, e um já bastava para contabilizar as horas, mas não era difícil ligar os pontos e perceber que a história que havia ouvido de sua sogra, sobre o ocorrido com o relógio de ouro na infância de seu amado, fora certamente a responsável pelo seu vício inquietante. Aquilo apertou seu coração.

 

— Ah, meu amor…

 

Ela murmurou, buscando as outras gavetas e confirmando as suas suspeitas: todas estavam abarrotadas por aqueles relógios. A ruiva colheu um deles, um de prata, o único diferente dos demais banhados a ouro, o examinou superficialmente e encontrou o que parecia ser uma rubrica pequena e quase apagada.

 

Todavia…

 

— O que está fazendo aqui?

 

Congelou.

Aquela voz baixa, mas firme, suave, mas incisiva, calma, mas violenta só podia ser dele. Rapidamente virou o olhar em sua direção, escondeu aquele objeto no bolso, tentou disfarçar o máximo que conseguiu, embora já estivesse esperando a derrota.

 

— Eu… eu…

 

Ele cruzou os braços, seu olhar não exalava nenhum sentimento, mas o seu cenho revelava que não estava satisfeito.

 

— Devia ter ficado no primeiro andar.

 

— Você não me proibiu de ver o segundo.

 

— Não pensei que seria necessário. Eu disse "fique no primeiro andar" para que eu pudesse te chamar o quanto antes. Os seus pais estão te procurando.

 

A ruiva suspirou e assentiu. Se afastou do móvel, e só então ele se aproximou e fechou a gaveta com afinco, como se algo naquela sala fosse proibido. Ela não gostou nada daquilo.

 

— Então… os relógios…

 

Pensou que seria impedida de prosseguir, mas o bailarino escolheu o silêncio. Ela continuou.

 

— Sua mãe me contou que você quebrou o relógio dela quando era pequeno.

 

— Quebraram-o em mim, na verdade.

 

Usou de tom de escárnio, e a garota percebeu a raiva que ele tinha em falar sobre isso. Aquilo muito lhe feriu por dentro, mas sentiu que precisava ter aquela conversa, queria conhecê-lo melhor.

 

— Eu sinto muito.

 

— Está tudo bem. Eu tive culpa. Se não fosse tão desajeitado — ele suspirou —, mas gosto de ter esses relógios por perto. Sinto que… se eu o quebrar novamente, terei outro na palma da mão. Mamãe também gosta deles.

 

— Sim… ela… não está na casa, está?

 

Arqueou a sobrancelha, esperou para ver o que ele ia responder. O homem entrelaçou carinhosamente o braço direito no dela e a conduziu para fora daquele corredor.

 

— Ela prefere a antiga casa. Foi lá onde vivemos na maior parte do tempo.

 

Ao ouvir aquelas palavras, ela prontamente se afastou e o olhou nos olhos.

 

— Não está sendo sincero comigo.

 

Aquilo o fez arquear a sobrancelha.

 

— Não?

 

— Alguma coisa me diz que tudo isso… não sei… que não está sendo sincero comigo… como se estivesse me escondendo alguma coisa. Eu não sei se te conheço o bastante.

 

— Helena, nós realmente não tivemos muito tempo juntos… Não faz um mês sequer…

 

— Me responda uma coisa, francamente: você era assim com Helena? Com a Helena do passado. Ela conhecia todos esses seus segredos, esses traumas, essas nuances?

 

Aquela pergunta lhe trouxe as palavras certas na ponta da língua. Seus olhos negros precisamente fitaram os dela, não sabia o que tanto a garota viu para lhe fazer aquelas afirmações diretas, mas buscou toda a sinceridade do seu coração.

 

— Helena sabia tudo sobre mim… e você também saberá, no tempo certo. Eu nunca beijei Helena, ou a tratei como minha noiva. Os tempos são outros, as condições também. Você é uma mulher, não é mais uma criança, e só o coração puro de uma criança entenderia os meus medos.

 

Anelise desviou o olhar para o chão, pensativa. Ele prosseguiu.

 

— Um casamento é uma construção de pilares. Assim como você buscará construir os seus pilares em mim, eu quero construir os meus em você, mas tudo isso leva tempo… Tempo, dedicação, amor… Eu preciso que confie em mim e aguarde o meu tempo, tal como confio em você e aguardo o seu.

 

Ela suspirou e consentiu.

 

— Está bem… Acho que fui precipitada.

 

Disse, vencida. Lentamente se aproximou e o abraçou com carinho, repousando o rosto em seu peito mais uma vez.

 

— Eu te amo.

 

— Eu também te amo. Vamos voltar, os seus pais estão te esperando.

 

— Sim… Posso te fazer um pedido?

 

Indagou, enquanto era mais uma vez conduzida por ele para fora daquele andar.

 

— Claro. Me diga o que quer.

 

— Quero que me mostre as coisas que você fazia comigo quando eu era pequena. Se tinha algum passatempo do meu agrado, ou algum livro preferido meu… E, depois, eu quero dançar com você mais uma vez.

 

— Há alguma razão para esses pedidos?

 

— Eu só… quero entender mais sobre o meu passado. Quero ver se consigo me lembrar de alguma coisa, se algum desses detalhes podem destravar a minha memória. E, também… sinto falta de dançar com você.

 

Ele sorriu, em seguida tornou a entrelaçar o braço no dela.

 

— Também tenho a tua vontade, mas não sei se os teus pais vão gostar. Eles estão bem desconfiados…

 

— Voltarei aqui outras vezes, podemos marcar um outro dia pra recordarmos. O que acha?

 

Ao chegarem à cozinha, encontraram Sofia acompanhada de um belíssimo pote de biscoitos, agora vazio. Ela o empurrou para o canto da mesa e se levantou de onde estava sentada, tinha a expressão de quem estava aguardando por horas.

 

— Até que enfim, não? Vamos logo, eu acho que ouvi a mamãe furiosa daqui!

 

Seguiu em direção ao casal e propositalmente os atravessou pelo meio, os separando. Assim que ela tomou distância, ambos se entreolharam e deixaram uma discreta risada escapar.

 

— Eu prometo que atenderei ao seu pedido. Se não hoje, certamente outro dia.

 

— Eu vou te cobrar.

 

Ela sorriu e voltou a tocá-lo. Dessa vez, segurou sua mão. Seguiram assim até o térreo, onde precisariam se separar e, mais uma vez, submeter-se aos benquistos costumes da sociedade. Isso não preocupava o bailarino, máscaras eram o seu ponto forte, entretanto, havia medo no seu coração, medo do que Anelise poderia ter visto naquele corredor.

 

Certas coisas existiam para que nunca fossem descobertas, e ele esperava que o seu passado fosse uma dessas.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:

Quando a viu atravessar os portões de cor branca, não imaginava que um dia estaria ali, no papel de noivo, esperando-a ser entregue em seus braços.

Não imaginava sequer que um dia ela poderia se interessar em casar. Linda, coberta de branco da garganta aos pulsos, enfeitada com o broche da família, acompanhada de um véu translúcido bordado com as suas rosas preferidas, Anelise caminhou pelo tapete de linho e cobalto, trazida por seu pai e seguida por duas damas de companhia, conduzida até o seu noivo que a aguardava no altar. [...]

Algumas horas depois, ficaram a sós.
Sem convidados, sem regras, sem pais e mães vigiando, ele a levou em seus braços e adentrou com cuidado em sua propriedade. Seguiram em direção ao quarto, Anelise estava cansada e repousava a cabeça em seu ombro, mas o coração agitado não a permitia dormir, pois sabia o que viria a seguir. [...]

— Vai acontecer… não vai?

Ele não respondeu de imediato. Embora estivesse nervoso, suas expressões diziam o contrário.

— Você quer isso?

Mesmo com receio, ela mordeu os lábios e assentiu, queria ver até onde conseguiriam ir.



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