O Bailarino escrita por Mayara Silva


Capítulo 14
As Dores dos Estigmas


Notas iniciais do capítulo

AVISO FEITO NO SPIRIT:

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Estou fazendo esse pedido porque não sei se postar sobre o MJ aqui agora é proibido, então estou arriscando minha conta pra continuar postando pra vocês. Se essa conta cair, pelo menos não perderemos contato e vocês poderão continuar acompanhando minhas atualizações em outro lugar.

No mais, por favor deem uma olhadinha na minha fanfic mais recente sobre o MJ que eu postei a pouco tempo ♡
https://fanfiction.com.br/historia/807451/As_Folhas_de_Sicomoro/

É isso, muito obrigada! VIDA LONGA AO REI ♡ ♡ ♡ ///



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Sala de estar, Casa dos Marlborough – 09:12 hrs

 

Dois homens, três mulheres e um clima desconfortável. Esse era o mais puro resumo daquele encontro inesperado.

 

Anelise foi a última a comparecer. Sua irmã escondeu-se nos corredores e preferiu assistir ao espetáculo pela fresta da porta. A ruiva buscou um canto ao lado de sua mãe, enquanto seu pai acomodou-se em uma poltrona própria. Já do outro lado do estofado estavam ele, o bailarino, e uma senhora desconhecida de porte egocêntrico.

 

O conde iniciou a conversa.

 

— Bom, como apenas nos conhecemos profissionalmente, creio que seja melhor nos apresentarmos mais uma vez. Sou conde Herder de Marlborough — virou-se de forma sutil para as duas mulheres próximas. — Essas são minha esposa, a condessa Matilda, e minha filha mais velha, Anelise.

 

— É um prazer conhecer os de Marlborough pessoalmente.

 

Disse a senhora desconhecida. Anelise mantinha o olhar baixo, a fitar o chão, enquanto repousava as mãos nos joelhos. Não fez nenhum contato visual com seu amado, ainda buscava entender o porquê de ter aceitado tudo aquilo.

 

— Sou a madame Riviera, coreógrafa, tutora e orientadora do senhor Jackson. Infelizmente todos os seus parentes já são falecidos, então estou aqui para representá-los e para acompanhá-lo.

 

— Prazer em conhecê-la, madame Riviera. É uma justificativa compreensível, mas penso que…

 

— Papai…

 

Pigarreou a ruiva, prontamente sendo repreendida pela mãe.

 

— Fique quieta.

 

— Penso que deveríamos ouvir, também, o senhor Jackson — ele desviou o olhar para o homem. — Me conte um pouco mais sobre sua pessoa, e sobre como conheceu minha filha.

 

Anelise discretamente apertou o tecido da saia com os dedos. Sabia como o bailarino funcionava e que o segredo que tinham dizia respeito somente aos dois.

 

Ela sussurrou, bem baixinho, para si mesma.

 

— Ele não vai falar com você…

 

— O senhor Jackson não fala. O senhor terá que dialogar comigo.

 

Disse a mulher, sem rodeios.

 

— O senhor Jackson conheceu a sua filha em uma de suas apresentações, aqui, nesta casa. Ele não tem muito a falar sobre sua pessoa, apenas que vive profissionalmente da dança e que, devido a isso, adquiriu muitas posses, suficientes para dar à sua filha o conforto que merece.

 

Anelise suspirou o mais discreto possível, a fim de não receber outro sermão da mãe. Sentia-se tratada como um animal de estimação, mas sabia, no fundo de seu coração, que aquela era a máscara social do seu amado. Logo mais, queria estar a sós com ele e ver o seu verdadeiro eu.

 

— Isso é bom. Confesso que desposar minha filha com um dançarino não era bem o que eu esperava, mas sua influência é admirável. Todavia… — um empregado adentrou ao local e serviu os adultos com uma taça de champanhe — acredito que tenho o direito de saber… O que Anelise foi fazer em seus aposentos? E como ela descobriu onde mora?

 

Michael manteve o silêncio. Aos poucos seus dedos acordaram, virou-se para a senhora Riviera e passou a se comunicar com a língua francesa de sinais.

 

— Ele a cortejou, e ele assume a inteira responsabilidade, mas Anelise não esteve em sua casa. Se encontraram por acaso e ele a abrigou da chuva, no lugar onde estava hospedado.

 

A ruiva mordeu os lábios e olhou pela primeira vez para seu amado. Sorriu com o olhar, e ele retribuiu com um lento e discreto piscar de olhos.

 

— Então acho que teremos que conversar com ela, querido.

 

Disse a condessa, recebendo o consentimento do seu marido logo em seguida.

 

— Presumo ser uma boa hora para se ter essa conversa. Quero iniciar um outro assunto com o senhor Jackson.

 

Matilda prontamente entendeu o recado. Logo fez um sinal para sua filha, que tinha um semblante confuso no rosto, e se retirou acompanhada dela.

 

Assim que atravessaram a porta, a menina começou o "questionário".

 

— Sobre o que tanto eles precisam falar, que nós não podemos ouvir?

 

— Conversas de homem, minha querida. Dinheiro, política, religião e outros assuntos. O seu pai sabe fazer as perguntas certas.

 

A ruiva suspirou, aborrecida.

 

— Além de me fazer passar vergonha na frente do meu futuro marido…

 

— Anelise…

 

— E você, mamãe? O que achou dele?

 

A mulher refletiu por alguns instantes.

 

— Hum… Eu queria coisa melhor para você. Um general, um conde, um marquês… mas ele tem posses e prestígio, no fim é o que importa.

 

A garota fingiu achar tudo aquilo muito importante.

 

— Nada mais?

 

— Ele é muito feminino. Isso não me agrada nem um pouco e aposto que ao seu pai também. Não sei o porquê de vir tão maquiado, não o chamamos para outra apresentação.

 

Anelise ponderou.

 

— Hum… falando nisso… O que a senhora acharia se ele tivesse… não sei… pessoas negras na família?

 

Aquela pergunta muito intrigante fez a condessa parar de caminhar por um instante. Ela encarou a filha com desconfiança e, logo em seguida, abriu um leque para se refrescar.

 

— Ele tem escravos na família?

 

— Eu não sei, eu não disse isso, foi só uma suposição. Além do mais, mamãe, eu disse "negros", não "escravos".

 

— Não tem diferença, Anelise. E, respondendo a sua pergunta, é indiscutível que nós não aceitaríamos. Se casar com um soldado comum é humilhante para nossa posição social, que dirá um escravo ou um descendente? Como nasceriam os filhos? Toda aquela mestiçagem… não, não quero nem pensar.

 

Voltou a vascolejar o leque. Já era esperado pela ruiva que sua mãe reprovasse a ideia, afinal, por que uma família, cuja existência das pessoas de cor fora propositalmente encoberta durante a educação das filhas, permitiria que esta se relacionasse com um dos tais? Todavia, mal sabiam que esconder tal informação provocou um efeito inesperado na forma da menina enxergar aquelas pessoas, sobretudo porque amava um, e não conseguia ver a diferença avassaladora que seus pais tanto repudiavam.

 

E, por amá-lo, sentiu a dor de cada palavra proferida. Sentiu como pequenas flechas pungentes que dilaceraram sua carne até alcançar seu coração.

 

A mulher tornou a caminhar, mas virou-se ao perceber que a filha havia ficado para trás.

 

— Por que nunca me falou sobre pessoas negras?

 

Indagou, a voz baixa, o tom incisivo e os pulsos cerrados mais uma vez. Segurou uma lágrima, manteve a postura. Estava calma, contudo, algo doía por dentro.

 

— Ora, filha, não faz muito tempo que saíram de Londres. Você ia acabar descobrindo sobre eles uma hora ou outra. Não é importante.

 

Anelise suspirou.

 

— Se não tem problema em me falar sobre eles, mamãe — a última palavra saiu com certo tom de desprezo —, por que temê-los em nossa descendência? Por que se importar em desmerecê-los para mim?

 

— Anelise…

 

A mulher suspirou, aborrecida.

 

— Essa conversa é irrelevante, você vai casar com alguém como nós. Não tente dar uma de diferente agora, logo você será esposa e mãe. Amadureça.

 

Dito essas palavras, seguiu em frente. Anelise pensou em caminhar em sentido contrário, mas temia entregar os segredos de seu amado. Não estragaria as coisas agora, sua mãe já estava desconfiada e irritada o suficiente.

 

— Claro, mamãe…

 

Ela suspirou e a acompanhou.

 

— Além do mais, precisamos conversar sobre o pré matrimônio. Se ele próprio não fizer o convite, seu pai o chamará à atenção para que possamos ver onde esse rapaz mora. Quero me certificar de que ele esteja falando a verdade, são poucos os dançarinos que realmente fazem algum sucesso admirável.

 

Comentou entre outros assuntos que soaram irrelevantes para o cérebro cansado da garota. Anelise já não suportava mais falar sobre aquele maldito casamento, tudo o que queria agora era ouvir, mais uma vez, a enigmática voz do seu amado e buscar algum conforto em sua presença.

 

x ----- x

 

Quarto de Anelise – 14:26 hrs

 

Após o almoço, conde Herder fez com que Anelise tocasse um pouco de piano para os convidados. Michael pediu para que ela tivesse a permissão do pai para escolher uma melodia, e, assim feito, a ruiva optou por tocar Ave Verum Corpus, de Mozart. Um solo suave, apolíneo e agradável, perfeito para a ocasião. O moreno sorriu e desfrutou do talento de sua garotinha.

 

Assim que os adultos voltaram a conversar, as irmãs foram dispensadas. Anelise correu para o seu quarto assim que teve chance, queria enfiar o rosto nos travesseiros. Sofia a acompanhou, curiosa. 

 

— Ele parece mais bonito de perto, irmã.

 

— Ah, nem me fale! E hoje foi um show de vergonha alheia, o papai não para de me tratar como um produto caro e indispensável!

 

— Se o seu noivo é diferente dos outros homens, como você fala, então ele está fingindo muito bem.

 

A morena se jogou na cama, ao lado da ruiva, e sentou-se com um pouco mais de vontade, deixando a saia do vestido revelar as suas tíbias cobertas por uma meia-calça branca.

 

— Ele está fingindo, não tenho dúvidas. Só… ainda estou cheia de perguntas sobre outras coisas.

 

Sofia estava pronta para perguntar e dar continuidade à conversa, mas alguém abriu a porta de supetão. As duas viraram os rostos concomitantemente e se espantaram ao ver, diante de si, a presença inesperada do bailarino.

Por outro lado, ele também parecia surpreso, não esperava encontrar a pequena Sofia por perto. Apertou a maçaneta com certo desconforto e os seus belos olhos grandes custaram a aliviar a expressão de espanto e timidez. Anelise foi categórica em suas palavras.

 

— Sofia, dá licença.

 

A morena sequer respondeu, simplesmente se recompôs e saiu sem deixar rastros. Michael suspirou e lentamente fechou a porta, com tanto cuidado, como se esta fosse feita de vidro. A ruiva saiu da cama em um pulo e, quando o homem voltou a prestar atenção em si, pulou em seus braços e lhe deu o abraço mais apertado que conseguiu.

Ele sorriu e retribuiu. Não tinha como não fazê-lo, era o abraço mais acolhedor que havia recebido um dia — e por uma pessoa mais do que especial. Ainda a surpreendendo, levou os lábios ao seu rosto e beijou sua bochecha com tanto afinco, o suficiente para marcar a pele alva da garota com o seu batom. Anelise gargalhou com o carinho, mal percebeu quando o moreno a puxou para a cama e caiu sobre ela. Agora, os dois riam juntos.

 

Era tudo tão inocente, tão cheio de vida… Ele, definitivamente, tinha alguma coisa de diferente.

Mas, assim como a repentina alegria que inundou o coração da garota, logo a dúvida e o medo retornaram para assombrá-la.

 

— Você… veio mesmo — ela murmurou. 

 

— Por que não viria?

 

— O meu pai quer nos casar. Estava na carta… não estava?

 

O homem mordeu os lábios e assentiu. Lentamente se afastou e deixou a moça respirar, porém Anelise segurou seu pulso para que ele continuasse sentado ao seu lado, na cama, queria deixá-lo à vontade.

 

— Então por que voltou? Pensei… que não me olhasse dessa maneira.

 

— Você disse que nunca se sentiu amada, exceto por sua irmã. Eu… ponderei sobre isso.

 

Ele suspirou.

 

— Talvez eu tenha cometido um erro por não ter insistido em ficar com você. Talvez sim, talvez não… Eu ponderei. Eu nunca deixei de amar você… e eu não poderia ignorar o seu sofrimento nesse lugar.

 

Michael levou uma mão ao rosto da garota e passou o polegar pela maçã de sua face. Anelise sorriu de canto a canto, vê-lo mais uma vez era tudo o que queria naquele momento.

 

— Eu vou te levar para bem longe, e, então, eu abrirei a gaiola e deixarei você voar para onde quiser.

 

— E se eu disser… que eu quero voar para o seu lado?

 

Ele sorriu.

 

— Seria a melhor coisa que poderia fazer a mim, Helena. Te ter de volta… seria o meu sonho.

 

Ouvir aquela frase aqueceu novamente o seu coração congelado pelo medo, mas ainda não era suficiente para acalmar a tempestade mental em que estava inserida. Anelise lentamente desviou o olhar para os tecidos da cama, perdida em pensamentos.

 

— Então… nada do nosso casamento será real… não é? As bodas… as núpcias… a lua de mel…

 

Ele a fitou com um olhar sereno e misericordioso.

 

— Eu sei… eu sei o que vai dizer. Sou como uma criança pra você… não se dorme com uma criança. Sei como me vê, mas não te vejo da mesma maneira. Não consigo. Não lembro de nada.

 

Ela murmurou, com a voz quase enfraquecida e uma lágrima solitária pronta para sair, silenciosa.

 

— Eu tento muito… mas eu não lembro de nada do que passamos juntos. Nada…

 

— Não é culpa sua…

 

Dessa vez, levou a mão à dela, aqueceu o seu dorso com a palma. Anelise enfim tornou a contemplar os seus olhos e notou o seu olhar benevolente envolver o dela.

 

— Cada vez que diz que me ama, sinto meu coração apertar, porque não estamos falando do mesmo amor…

 

Ele não respondeu de imediato. Não pôde dizer muito, pois ela estava certa, bastou-lhe apenas aquiescer em silêncio. Em seguida, complementou.

 

— Eu te amo muito, mas isso vai muito além da atração física. O que sinto por você é difícil de descrever com palavras. É complexo, incondicional, indomável. É algo que não pode ser resumido e que não consigo mensurar. Não está ligado ao desejo, à consumação. É puro, perene…

 

Enquanto as palavras saíam, o seu olhar vagueava pelo chão, sua mente viajava nas memórias que guardava com muito carinho de um passado triste, mas, um dia, iluminado por ela. Porém, já não sabia mais que expressões usar, tentar exprimir aquele sentimento era sempre uma tortura. Tudo naquela situação já estava difícil o bastante.

 

— Também tenho medo. Está acontecendo tão rápido. Logo, seremos noivos. Colocarei a aliança de quartzo negro no seu dedo e guardarei comigo um medalhão com sua foto. Trocaremos presentes, te darei flores e ouro. Então, nos casaremos. Dormiremos juntos. Nos cobrarão filhos…

 

Ele suspirou.

 

— Não posso te dar esses filhos…

 

Ela discretamente deslizou dois dedos pelo dorso da mão esquerda do amado, que repousava sobre os lençóis da cama. Passou a se distrair com esses pequenos movimentos.

 

— Me vê como uma criança, não é?

 

— Eu gostaria que fosse apenas isso…

 

Aquelas palavras intrigaram a garota que, por um instante, tornou a olhar em seus olhos. Ele prosseguiu.

 

— Pegue um pouco de água e uma toalha para mim, por favor. Eu quero que veja uma coisa.

 

Anelise estava curiosa, então o fez sem questionar. Levantou-se e buscou os objetos na sala ao lado. Em poucos instantes, trouxe-lhe uma vasilha de porcelana branca com água e uma toalha felpuda de mesma cor.

Michael pôs a vasilha na mesa de cabeceira, buscou um espelho, umedeceu a toalha e passou suavemente em uma parte de seu rosto. Pouco a pouco, os tons não naturais que uniformizavam sua pele esvaíram, dando espaço a uma cor de pele ainda mais artificial, pálida, alva como a mais pura neve. Mesmo o tom da ruiva, naturalmente branco, não era tão claro quanto aquele. E, ainda presentes, embora em menor quantidade, ela pôde perceber o que pareciam ser manchas de cores escuras pelos cantos de seu rosto. Estavam em seu pescoço, em suas orelhas, em seu maxilar, pelos cantos da fronte, e pareciam tão sempiternas quanto o alvo de sua pele.

 

Ela nunca conseguiu imaginar como era o estado de sua pele apenas pelas descrições, não tinha sequer uma memória daquela visão. Embora soubesse e acreditasse em sua afrodescendência, ver, pela primeira vez, foi como tirar uma venda de seus olhos.

 

Estava de pé e assim se manteve, estática, com apenas os olhinhos azuis a reagir perante sua transformação. Ele, ainda acomodado na beira da cama, passou a mão no próprio rosto uma última vez antes de voltar a olhar nos olhos da garota.

 

— Não me cubro, assim, à toa. Agora sabe meu segredo.

 

A ruiva ficou em silêncio. Ele prosseguiu.

 

— Eu não devia ter feito isso… mas eu ouvi a conversa com sua mãe. Não tudo, e nem era minha intenção, apenas… ouvi o que dizia respeito à minha condição.

 

Ele suspirou.

 

— Eu não… discordo da sua mãe.

 

Anelise fez uma expressão apreensiva, surpresa com o que acabara de ouvir. Novamente, nenhuma palavra ousou sair de sua boca.

 

— Acredito que, por mais que eu tenha dito, ainda era difícil me imaginar como um filho de sangue negro, não é? Pois bem… esse sou eu, e é assim que nossos filhos serão — após alguns instantes de silêncio, ele continuou. — Embora não receba do mesmo prestígio que alguém da sua sociedade, um homem negro têm uma identidade. Um mestiço não tem. Um mestiço nunca será branco, nunca será negro. E, se um mestiço não tem espaço no mundo em que vivemos, que dirá uma pessoa que caminha pelas duas realidades, como eu? Uma pessoa negra… e branca. Negra apenas aqui — ele levou a mão ao peito —, branca para o resto do mundo. Ter que tomar para si uma identidade que não é sua, apenas para conseguir viver como uma pessoa comum. Apenas para ser reconhecido, não de onde vem, mas pelo que faz.

 

Ele engoliu seco, Anelise notou o seu pomo-de-adão se movimentar e ela sabia bem o que isso significava: ou estava nervoso, ou prestes a chorar, e aquilo a afligia.

 

— Eu ganhei a atenção do seu povo, Helena, porque eles veem os resultados dessa minha maldição. Eu não poderia pisar na sua casa se assim não fosse. Eu sei que os seus pais me aceitam por estarem vendo o que há do lado de fora, mas, do que adianta todo o prestígio do mundo, se perdi a atenção do meu povo? Eles… — uma lágrima silenciosa desceu por seu rosto, mas rapidamente tratou de limpá-la — eles não me reconhecem. Eu já não existo mais. Se eu não sou negro, o que eu sou? Eu não desejo isso para ninguém, sobretudo para um filho meu.

 

Ele abaixou a cabeça e Anelise sentiu, em seu coração, o desejo de abraçá-lo. Aproximou-se em passos lentos e ficou diante dele, o puxou carinhosamente e permitiu que o seu rosto descansasse no próprio ventre. Michael encostou o lado esquerdo da face no abdome curvilíneo da menina e sentiu um conforto inexplicável quando os braços dela envolveram seus ombros e afagaram os seus cachos escuros.

 

— Voltamos a esse assunto mais uma vez… A essa hora, eu acho que gritaria com você.

 

Ela suspirou e então, muito discretamente, deixou escapar um sorriso que não durou muito.

 

— Agora, eu vejo as suas manchas, e… sim, são diferentes… mas não mudam nada do que eu penso. Eu ainda te amo e isso não vai mudar. E, se nossos filhos nascessem assim, eu os amaria da mesma forma, porque esse detalhe seu que tanto magoa os meus pais, na verdade, me fascina. Você é diferente… você é único. Não existe outra pessoa pra me compreender, senão você.

 

Ela o abraçou com mais afinco, e ele sorriu ao ser pressionado em seu ventre. Manteve os olhos fechados, descansou em suas palavras. Pela primeira vez em anos, sentiu paz.

 

— Casar era o meu pesadelo, sabia? Mas eu perdi esse medo, porque eu sei que você me entende. Nós somos dois esquisitos, as pessoas nunca vão nos aceitar.

 

— Talvez um dia aceitem… Talvez nossos descendentes tenham mais sorte.

 

Ela gargalhou.

 

— Sim… talvez…

 

Depois daquela conversa, voltaram ao silêncio. Ele lentamente entrelaçou os braços na cintura dela, queria retribuir aquele carinho de alguma forma.

 

— Eu te amo, Helena — sussurrou. — Vamos viver uma emoção de cada vez. Ainda é cedo para se preocupar com essas coisas. Eu… eu posso mudar de ideia… Eu posso te ver como minha mulher…

 

— Não se force a isso. Ainda que não consiga me olhar dessa forma, eu prefiro estar com você a continuar aqui, presa nessa realidade. É o que eu prefiro…

 

Michael aquiesceu e continuou abraçado a ela, não queria largá-la em momento algum. Anelise também não tinha pressa.

 

— Mas eu preciso comentar uma coisa… Seus braços estão apertando minha bunda.

 

Ao ouvir a garota, o moreno prontamente se afastou, envergonhado. Anelise gargalhou ao ver tamanha reação exacerbada.

 

— Me desculpe!

 

— Tá tudo bem, bobinho! Só me tira uma dúvida — ela cruzou os braços. — Os meus pais sabem que você está aqui?

 

Murmurou. O homem deu-lhe um sorriso travesso e negou com um balançar de cabeça.

 

— Sou um fantasma, senhorita…

 

Suas mãos buscaram-na e fizeram cócegas pela sua cintura e abdome, arrancando-lhe algumas gargalhadas dispersas.

 

 — Ei! Você é um crianção, isso sim!

 

Deixou o seu corpo pender para a cama, enquanto o homem se recompunha da rápida brincadeira.

 

— Pensam que já saí, mas eu não podia ir sem falar com você. Só poderemos ficar sozinhos após o casamento e eu não suportaria esperar tanto. Eu precisava saber como você estava.

 

Ela sorriu.

 

— Bom… eu tô bem melhor. Você voltará amanhã?

 

— É claro. O seu pai quer me mostrar cada canto da casa de campo. Eu não sei se poderei levar a madame Riviera comigo para todos os lugares, eu terei que me virar.

 

— Você vai conseguir. Mas, se quiser uma ajuda, posso pedir pra minha irmã jogar chá nas roupas do meu pai, tenho certeza que ele passará toda a reunião reclamando, nem se importará de monologar contigo.

 

— Acho que prefiro não incomodar o meu sogro.

 

Ele brincou, e os dois gargalharam logo em seguida. Michael lentamente se levantou, estava prestes a partir, mas sentiu as duas mãos da garota envolverem os seus dedos frios. Ele arqueou a sobrancelha.

 

— … Você pode ficar?

 

Ela sussurrou, como se estivesse a guardar um segredo.

 

— Se você é como um fantasma, consegue sair em outro momento, não consegue?

 

Ele sorriu e consentiu.

 

— Sim… acho que consigo.

 

Tornou a se acomodar na cama, mas Anelise, dessa vez, o puxou para que se deitasse. Correu para trancar a porta e deixou a chave na fechadura, bastava que o homem destrancasse caso despertasse primeiro que ela. Era o plano perfeito, porque, uma vez acordado, o casamento deixou os pais menos preocupados com o seu paradeiro. Ela sempre estaria em casa, aguardando pelo seu noivo, e, pela primeira vez, Anelise seguiria todos os protocolos.

 

Ou quase.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:

— Está ansiosa?

Sussurrou Sofia, segurando a mão nua da irmã com as suas luvinhas de lacinho. Anelise continuou a observar a janela.

— Não…

Murmurou. Os pais fingiram não ouvir, não podiam fazer muito, era o que devia acontecer e não havia nada que pudessem fazer contra isso.

— Pensei que gostasse dele.

— Eu gosto, mas não há nada de especial no que vamos fazer lá…

Reafirmou sua posição. Talvez estivesse mais feliz se toda aquela farsa tivesse um quê de especial, se o amor pudesse ser retribuído e não somente uma dita cuja reputação familiar.

[...]

Caminhou, em passos calmos, em direção ao homem que a aguardava. Seria rápido, seria indolor, e, depois de tudo isso, poderia ser ela mesma diante dos seus olhos novamente. Assim que se aproximou o suficiente, Michael apresentou-lhe a pequena caixinha com a aliança, inclinou-se e, num sussurro misterioso, longe da família, longe de qualquer um, apenas ela pôde ouvir a sua voz doce e agênera mais uma vez.

— Case-se comigo…



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