A difícil arte de ser eu, Charlie escrita por Charlie


Capítulo 3
Um adolescente á beira de um ataque nervos




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Não consigo. Não consigo. Simplesmente não consigo.

— Charlie?

Sim. É a voz do meu pai, do outro lado da linha...

— Charlie? Charlie?

Só que não consigo responder. Não consigo falar...

— Charlie? Você está aí? O que houve?

É a voz do meu pai, do outro lado da linha... Sim. Sim. E ela ecoa ao longe, como se estivesse no outro lado do mundo e não quase ali, em Curitiba, constato durante o tempo que sigo mirando o teto, ao passo que meu cérebro é invadido brutalmente pelas palavras que eu e dona Jane trocamos há pouco.

“Não importa o quanto a vida possa ser ruim, sempre existe algo que você pode fazer, e triunfar. Enquanto há vida há esperança”. Só que não há Stephen Hawking. Estou perdido. Completamente perdido. Não sei exatamente que papel me caberá na encenação desse drama. Nessa tragédia anunciada que está por vir e que irá acontecer logo depois que eu cruzar definitivamente a fronteira da realidade da qual ainda faço parte, para, então, viver, ou melhor, subsistir naquele fim de mundo.

“Você acha mesmo, Charlie, que eu estou adorando ver tudo isso de pernas para o ar? O meu apartamento, a minha existência e tudo mais? Não foi uma decisão fácil de ser tomada...”.

Fecho os olhos. Sou uma vítima. Sim. Esse é o meu papel. Eu sou uma vítima e preciso descartar qualquer indefinição que me afaste dessa certeza.

“Você já está fora da sua escola há uma semana, e lá, em Laranjeiras, sua matrícula está feita, como bem sabe. Não podemos nos dar ao luxo de tê-lo tanto tempo afastado assim dos estudos. É seu último ano do ensino médio...”.

Uma vítima das circunstâncias, uma vítima das circunstâncias já que eu não tive, já que eu não tenho o poder de escolha nessa partida, nesse jogo que meus pais vêm jogando há anos.

“Se fosse menos egoísta, meu filho, a notícia da separação, minha e de seu pai, não teria sido uma surpresa para você”.

Nesse jogo...

Nesse jogo...

Como em qualquer jogo o vencedor leva tudo e o perdedor, claro, só resta lamentar, pequeno, ridicularizado ao lado da vitória.

Abro os olhos e respiro... Inspiro... Expiro...

Ouço meu nome sendo chamado...

A voz do meu pai...

Ouço... Ouço... A voz do meu pai...

Ela está longe? Está perto?

Nesse jogo da vida, apesar de existirem apenas dois oponentes, meus pais, o perdedor fui eu, um terceiro, um mero espectador sem qualquer poder de decisão, me restando apenas o papel de vítima nesse drama familiar, já que não tenho certeza se meus pais sentem pena de mim, desprezo ou simplesmente não se importam comigo.

— Charlie? Charlie? Você está aí?

A voz grave e aveludada de meu pai me traz de volta, atirando-me sobre a cama, sob o teto do meu quarto, no presente, neste maldito tempo presente que eu daria qualquer coisa para que não passasse de um sonho ruim.

— Oi! — consigo, por fim, dizer alguma coisa. As palavras atiradas um tanto apressadas enquanto o celular oscila entre o ouvido e a mão trêmula.

— Charlie? O que houve?

— Nada — respondo automaticamente — Quer dizer, tudo — complemento, intenso e profundo no instante seguinte.

— Não entendi...

— Me deixa ficar com você, por favor? — peço, atropelando as palavras mais uma vez num misto de tristeza, desespero e uma fúria frágil.

Silêncio. O silêncio impassível de meu pai invade meus ouvidos mais rápido que qualquer enxurrada de palavras que pudessem ter sido ditas. O mesmo silêncio ponderado, perscrutador que ele, o Sr. Júlio, costumava impor antes de qualquer decisão, qualquer resposta a um pedido meu, por mais casual que pudesse ser e sempre me causando vergonha e raiva. E agora, enquanto ouço sua respiração do outro lado da linha, como se estivesse ao meu lado, conforme aguardo uma decisão, um veredito, volto a sentir a mesma vergonha e a mesma raiva percorrerem todo o meu corpo... Não. Não. Não. Meu pai não pode me negar isso, por mais confusa que esteja sua vida. Aliás, não deve estar mais desordenada quanto à minha, aqui, no Rio de Janeiro.

— Escuta Charlie... — ele finalmente responde; o tom de voz, reticente — Já te disse como está tudo por aqui, não é mesmo? O trabalho novo... Estou hospedado provisoriamente em um apart hotel... A cidade é completamente desconhecida para mim... Além do mais, sua mãe já cuidou de tudo para a sua mudança, te matriculou na nova escola...

— Pai, por favor, eu prometo que não vou dar trabalho. Mudança por mudança, vou aí pra Curitiba ao invés do fim do mundo aonde minha mãe quer me enfiar.

— A sua mãe sabe o que está fazendo, Charlie...

— Não, ela não sabe — insisto. O desespero tomando conta de mim cada vez mais — A minha vida lá naquele lugar vai ser um tédio sem tamanho...

— Charlie...

— Pai, eu tô sentindo a sua falta!

Outro instante de silêncio. Tenho certeza que um brilho pensativo está movimentando os olhos do meu pai. Agora resta esperar se a sua resposta será um alívio ou um motivo de angústia que só fará aumentar a miséria da minha vida.

— Charlie, nós temos mesmo que ficar tão sentimentais assim? Nesse momento não há o que possa ser feito em relação a essa distância. Também sinto sua falta, mas do que adianta lamentar e chorar?

— Pai...

— Charlie, eu preciso ir.

A voz do Sr. Júlio passa a ficar meio distante de um segundo para o outro, palavras que não consigo mais compreender, como se ele estivesse falando com outra pessoa... Sim. Sim. Ele está falando com outra pessoa.

— Charlie, eu vou participar de uma reunião. Depois te ligo, pode ser, e então vamos conversar com calma?

Ele volta a se dirigir a mim utilizando um timbre de conformidade e tristeza que me desarma prontamente e daí a ligação é finalizada sem grandes despedidas e um embargo toma conta de minha garganta e meus lábios começam a tremer ao mesmo tempo que atiro o celular para o lado.

 

Não vou chorar. Não posso. Não vou dar esse gostinho a esses dois.

 

Cerro os punhos no ar e aperto os olhos com força, respirando fundo e mordiscando minhas bochechas por dentro e depois os lábios, até sentir dor, de verdade, para logo em seguida apertar a ponta do nariz, próxima aos olhos, com o indicador e o polegar da minha mão esquerda, ao tempo que uma onda de emoções diversas e desordenadas toma conta de cada músculo do meu corpo, queimando como um milhão de chamas enquanto encolho as pernas junto ao peito, me enroscando como uma bola.

“Charlie, querido, você está direcionando essa energia pra direção errada; uma resistência sem fundamento”.

Abro e fecho os olhos, uma, duas, três vezes, pressionando-os o máximo que eu posso, acreditando que com isso minha mente vai desacelerar, mas não adianta. Continuo a ser covardemente atacado. Uma sucessão avassaladora de pesar, amargura, impotência e uma desesperança atroz parecem rasgar o meu peito.

A notícia da separação dos meus pais, o fora do Ben, o anúncio da minha saída do colégio, a despedida dos meus amigos, a ideia de não ter mais a Elle ao meu lado, a ida para aquele fim de mundo onde mora minha avó... Tudo, tudo me atinge de uma só vez e eu não consigo resistir e então fecho os olhos e começo a chorar, enterrando a cabeça entre os braços à medida que uma escuridão profunda consome minha mente.

Merda. Merda.

Respiro fundo e conto até dez e abro os olhos, fixando o teto, depois rolando para o lado da cama e em seguida retornando à posição anterior. Repito esses gestos, entre lágrimas, uma dúzia de vezes até parar e apoiar os cotovelos sobre o colchão, me inclinando para frente, permanecendo indeciso por alguns segundos sobre o que devo fazer; o coração dilatando em agonia, parecendo grande demais para caber no meu peito.

Eu sou irracional, infantil, uma criança mimada?

Deixo-me cair novamente sobre o colchão e com as costas das mãos enxugo as lágrimas até decidir me sentar, encaixando os pés sob as pernas cruzadas, sentindo um formigamento desagradável nas pontas dos dedos dos pés e das mãos. Definitivamente eu devo ter sido um daqueles juízes carrascos da época da Inquisição e meus pais foram as vítimas que mais sofreram sob os meus desmandos e agora estou resgatando todo o mal que lhes fiz.

 

Preciso me acalmar.

 

Olho para o emaranhado formado pelos meus lençóis e o edredom e meio que dou de ombros. O formigamento desagradável nas pontas dos dedos dos pés e das mãos que me assolou há instante, desaparece da mesma forma que chegou.

 

BEN!

Já tinha me esquecido dele.

 

Sinto frustração e raiva e elas se misturarem numa fúria potente dentro do meu estômago. Alguém precisa pagar com juros essa conta.

Corro até a escrivaninha, tomado por uma onda de excitação crescente, e tiro o meu note da tomada, seguindo com ele de volta para a cama, onde me sento, apoiando-o sobre minhas pernas novamente entrelaçadas, acessando sem demora o Secrets, um app que serve perfeitamente para o que pretendo fazer neste exato momento da minha existência: ESPALHAR UM BOATO DE FORMA ANÔNIMA.

Por incrível que possa parecer, uma sensação de vergonha invade o meu peito, um gigante se avolumando contra o pesar, a amargura, a impotência, a desesperança atroz, contra a raiva dolorida da certeza iminente de ter sido traído, porque nada agora nesse mundo injusto vai me convencer de que esse cara mais velho foi a razão, a verdadeira razão para o Ben ter me dado o chute na bunda.

Com um sorriso malicioso nos cantos dos lábios trato de empurrar, de jogar para bem longe a absurda sensação de vergonha. Não vou me permitir sentir culpa em ofender, denegrir, causar constrangimento ou comprometer a reputação do Ben. Não vou. Ele é um canalha e merece isso e, portanto, não estarei sendo tão leviano assim.

“Charlie, serei eternamente grato a você. E, na boa, sei que não é desse jeito que eu devo te dizer isso, mas não há outro modo. Esse nosso namoro... Você... Não você, mas a relação, o que vemos tendo nesses quatro meses me ajudou entender, a ter a certeza de que eu curto garotas”.

Filho de uma puta. Mentiroso! Quero ver o Ben arrotando sua pretensa masculinidade depois do que vou postar.

 

CONVITE DE BEN HOPE

Gostaria de declarar, aos quatro cantos do mundo, do universo, da Via láctea, QUE SOU GAY, sem qualquer sombra de dúvida, e neste momento estou bastante interessado em conhecer homens de todas as idades. Não estou em busca de namoro, relacionamentos, conversa fiada. Quero um macho ativo dominador, que me faça ir às nuvens e subir pelas paredes. A propósito, tenho uma garganta profunda. Segue abaixo o meu e-mail para contato...

 

Leio e releio a mensagem e não consigo deixar de me surpreender com o tom viperino da minha escrita ao mesmo tempo que saboreio uma inesperada sensação de poder absoluto proporcionada pela sede de vingança saciada, afastando-me, ao menos por agora, de toda frustração e autopiedade que tomou conta da minha vida nessas últimas semanas.

Pronto.

Mensagem postada.

Agora só aguardar as visualizações, os compartilhamentos.

Desligo o note e o coloco ao meu lado e então descruzo as pernas e começo a deslizar todo o meu corpo até estendê-lo por completo sobre a cama. Não consigo conter o sorriso malicioso se abrindo por completo nos meus lábios, rasgando o meu rosto numa satisfação inebriante até alcançar a sonoridade de uma gargalhada.

Estou sendo justo?

Uma justiça poética, com certeza.

Dou de ombros, tratando de descartar um último resquício de dúvidas que ainda possa existir sobre o meu ato nem um pouco exemplar conforme me viro para o lado e apanho o celular.

— Elle, minha amiga, você não vai acreditar no que eu acabei de fazer.


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