A difícil arte de ser eu, Charlie escrita por Charlie


Capítulo 2
Um duelo




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— Não será mais do que alguns dias. Uma semana no máximo, Charlie. Não mais do que isso.

Realmente minha mãe com essas pernas cruzadas, com as pontas dos pés para baixo, como pés de bailarina, as costas retas, apoiando as mãos sobre as coxas e me encarando, impassível, é, sem sombra de dúvida, a própria Meryl Streep travestida de Miranda Priestly. Só falta o cabelo curto e tingido de branco.

— A senhora tá falando sério? — pergunto, transbordando incredulidade, ao mesmo tempo em que retorno para o encosto da cadeira — Como é que eu vou chegar sozinho num lugar onde não conheço ninguém? E depois, o pior, conviver por dias com essas mesmas pessoas totalmente estranhas para mim?

— Não seja dramático, querido. Sua tia e sua prima vão estar em Belo Horizonte lhe esperando no aeroporto...

— Então... — interrompo dona Jane enquanto dou de ombros com as mãos espalmadas para cima, recolhendo-as logo em seguida — Pessoas que vi uma vez na vida, e há muito, muito tempo. Resumindo: gente que eu não conheço.

— Porque não quer — minha mãe responde com simpatia, mas também firmeza — Por que você não aceitou o convite de amizade que a Tori te enviou pelo Facebook? Seria uma boa oportunidade para quebrar o gelo e começarem a se conhecer, construir uma relação... A sua prima está ansiosa por este contato...

— Construir uma relação virtual? Será que ouvi direito? — devolvo pouco me importando se estou sendo explicitamente sarcástico — E aquele seu discurso de que o conceito de amizade foi alterado pelas redes sociais? Que é um tanto precipitado e superficial “clicar” em alguém e dar a essa pessoa instantaneamente carta branca, acesso a tudo que você publica, partilhando ideias e sentimentos?

— A influência relativamente nociva das redes sociais na construção de amizades é inegável. As redes sociais não devem servir como substitutas das amizades e do convívio no mundo real, mas você e a Tori, em breve, vão ter oportunidade pra sedimentar esse contato, que, por ora, precisa se dar dessa maneira.

— A senhora se esqueceu da parte em que as redes sociais permitem aos adolescentes, às pessoas, ao mundo, que seja, projetarem características idealizadas que não correspondem necessariamente ao que são ou a como se sentem... Quem garante que essa prima ao vivo e a cores é a mesma pessoa sentada na frente do note?

— Charlie, será que podemos não desviar do assunto que me trouxe até aqui? — a impaciência começa a pontuar o tom de voz de dona Jane.

— Qual o motivo para essa súbita alteração nos planos? — a ignoro veemente ao passo que deixo os meus braços penderem ao lado da cadeira à medida que inspiro o ar com toda a força para dentro dos pulmões e depois expiro bem, bem devagar — As passagens estão compradas para nós dois embarcamos juntos, depois de amanhã, para aquele lugar...

— Aquele lugar que se chama Laranjeiras.

— A senhora sabe o nome então não preciso ficar repetindo — retruco de imediato conforme cruzo os braços.

— Charlie, querido... — por que dona Jane insiste em usar o particípio de querer após o meu nome? — Eu pensei que conseguiria resolver todas as questões antes de seguir para Laranjeiras, mas infelizmente não foi possível...

Ela recolhe as mãos de cima das coxas, descruza as pernas, se levanta e começa a andar pra lá e pra cá no diminuto espaço que existe entre mim e a cama, não demorando a usar as mãos livres para abrir seu jaleco e mantê-lo assim, apoiado em cada lado de sua cintura, deixando à mostra uma camiseta branca básica curta e uma bermuda índigo escura, com a barra dobrada um pouco abaixo do joelho. Sua expressão corporal, mesmo debaixo de tanta tensão, não denota nada menos que a placidez de uma modelo desfilando numa passarela... Será que ela já possuía essa postura irrepreensível, esse autocontrole desde a época em que vivia lá, no Sítio do Pica-pau Amarelo?

Além de ter um corpo exemplar no alto dos seus trinta e sete anos, fotogênica e os cabelos louros bem cuidados, dona Jane também é linda. E não falo isso porque sou seu filho. As observações a respeito de sua beleza são unânimes. Não há quem não se deixe capturar por seus olhos azuis, suas sobrancelhas finas, louras, contornando a curvatura da testa e um sorriso — quando decide distribuí-lo — harmonioso, brando...

— Você pode ver que muitos móveis do nosso apartamento ainda não foram desmontados...

Dona Jane estaca e enquanto encara o nosso entorno, estica o braço esquerdo e o movimenta num semicírculo de 180 graus até recolhê-lo e fixar o olhar novamente sobre mim. Não preciso ser um gênio, um sensitivo ou um adivinhador para saber o que está por vir. Ela vai fazer um inventário — de novo — da minha sagrada mobília.

— O seu quarto mesmo... Sua cama precisa ser desmontada, sua escrivaninha, seu armário, a TV precisa ser retirada da parede... Tem bastante coisa que ainda precisa ser encaixotada... — ela deixa escapar um suspiro, como se estivesse recuperando o fôlego antes de continuar — E acabei de ser informada pela empresa que fará a nossa mudança sobre um contratempo que tiveram. Devido a isso, só poderá vir nos atender na segunda-feira. E somente na quarta ou na quinta irá levar nossa mobília para Laranjeiras.

— A senhora mesmo disse que não precisaria estar presente enquanto eles arrumam tudo. Que seria menos uma coisa para se preocupar, até porque todos os nossos objetos pessoais ou outras coisas que não gostaria que eles colocassem as mãos...

— Os móveis do nosso apartamento é o menor dos problemas a ser resolvido — dona Jane gesticula com impaciência — A questão é que eu não quero chegar à casa da sua avó com pendências. Ao menos não com as que eu possa ter concluído antes de partir.

— Então porque comprou as passagens para depois de amanhã?

— Por que eu não contava com esse imprevisto da empresa que contratei para fazer nossa mudança... — dona Jane solta o lado do jaleco que ainda mantinha preso à cintura e volta a se sentar na cama e a cruzar as pernas, começando a balançar o pé que está pendurado de maneira frenética, ao mesmo tempo em que desvia o olhar para os lados, evitando por alguns segundos o contato visual — E também pensei que ia ter tempo suficiente para solucionar tudo o que fosse preciso.

— Então há mais coisas que ainda não foram resolvidas? É isso?

Minha mãe se inclina para frente, voltando a me encarar e sustentando a mesma resolução de antes.

— Querido, agora chega de ficar me justificando, tudo bem? Estou fazendo de um tudo para que o impacto dessa mudança sobre nossas vidas seja o menor possível — ela retorna para a posição em que estava — E gostaria que você me apoiasse. Ficar resistente, criando obstáculos e empecilhos desnecessários não vai ajudar em nada. Neste momento somos somente você e eu. Se não pudermos contar um com o outro, essa nova vida que nos espera não vai começar muito bem.

— Uma nova vida que eu não pedi — devolvo entre os dentes, apertando ainda mais os meus braços já cruzados.

— Você acha mesmo que eu estou adorando ver tudo isso de pernas para o ar? O meu apartamento, a minha existência e tudo mais? — dona Jane questiona num tom de voz rabugento — Não foi uma decisão fácil de ser tomada...

— Então por que estamos indo embora? Por que não ficamos e continuamos com as nossas vidas? Não precisamos sair correndo como fugitivos desesperados. Tenho alguns amigos que os pais se separaram e nem por isso um deles se isolou no fim do mundo. E além do mais, o meu pai já saiu do nosso raio de visão...

— Esse tipo de comparação não nos leva a lugar algum Charlie — a voz de dona Jane está tomando ares cada vez mais graves — Já conversarmos sobre os motivos que me levaram à decisão de ir para Laranjeiras, independente de o seu pai ter ido para Curitiba, e não estou nem um pouco disposta a repeti-los, um a um, aqui e agora.

Descruzo os braços e miro o chão logo em seguida. Não vou reagir. Um bom soldado sabe quando é preciso recuar, se esconder na sua trincheira e aguardar o momento certo para investir, e minha mãe é uma oponente bastante habilidosa.

— Charlie, querido... — de soslaio a observo se levantar num salto e se prostrar à minha frente, voltando a apoiar as mãos, agora vazias, em cada um dos lados de sua cintura — Eu entendo que você queira e tem todo o direito de expressar suas angústias, mas não acha que já está na hora de deixar de agir como uma criança e ser mais racional?

 — Eu é que estou sendo irracional? — ergo, enfim, o rosto e busco de imediato o olhar de dona Jane e a enfrento sem titubear ao passo em que lanço minha pergunta carregada de autoridade. Dane-se essa maldita metáfora de trincheira. Já estou no fogo mesmo. Uma faísca a mais não vai fazer tanta diferença — Você e o meu pai, DOIS ADULTOS, decidem que não podem mais conviver de uma hora para outra e eu é que levo o título de irracional?

— Você está mesmo me perguntando isso, Charles Spring? — minha mãe revira os olhos e retira as mãos da cintura. Está mais do que tensa. Seu olhar praticamente atravessa a minha alma — Você está sendo cruel e injusto. Eu e o seu pai já não nos entendíamos há tempos...

— Há tempos? — mantenho minha postura firme — Me desculpe se não me permitiram perceber isso. Vocês foram ótimos atores, por sinal — deixo escapar essa última observação entre sussurros enquanto corro os olhos de um lado para o outro até voltar a fitar dona Jane. Depois dessa cartada final não há como ela não recuar.

— Se fosse menos egoísta, meu filho... — eu a ouço enfatizar o adjetivo de maneira enérgica à medida que arqueia uma das sobrancelhas — A notícia da nossa separação não teria sido uma surpresa para você.

Engulo em seco e olho para baixo. Um silêncio abismal e ensurdecedor toma conta do meu quarto.        Por que os pais, principalmente nossas mães, sempre têm cartas escondidas nas mangas?

Não demora muito para que dona Jane se abaixe até onde estou, deixando nossos rostos relativamente próximos. Súbito, ela apoia as mãos sobre os meus joelhos, um gesto que me surpreende, já que este tipo de abordagem, física, nunca foi o seu forte.

— Não é só você que estará fazendo sacrifícios, Charlie...

Continuo cabisbaixo.

— Estou deixando um consultório pra trás, pacientes que confiam na minha competência profissional...

Ah! Me esqueci de comentar que minha mãe é psicóloga, o que me remete aquele velho ditado: casa de ferreiro o espeto é mesmo de pau.

Dona Jane retira a mão direita do meu joelho e a leva até o meu queixo, pousando sobre ele a ponta dos dedos, um toque suave que acaba me forçando a levantar o rosto para encará-la. Encontro condescendência em seu olhar, o que de certa forma é irritante.

— Vamos viver, por favor, da melhor maneira possível esses dois dias antes da sua partida? — seu tom de voz, agora, está mais brando. Como ela consegue mudar da água para o vinho tão rápido?

— Realmente eu não posso ficar aqui com a senhora e então embarcamos juntos, como já estava previsto? — pergunto enquanto a vejo se levantar.

— Infelizmente não, querido — minha mãe me encara do alto — Você já está fora da sua escola há uma semana, e lá em Laranjeiras, sua matrícula está feita, como bem sabe. Não podemos nos dar ao luxo de tê-lo tanto tempo afastado assim dos estudos. É seu último ano do ensino médio...

— Que diferença vai fazer mais uns dois, três dias? Uma semana? Se a senhora não for demorar pra acabar de resolver essas tais questões ainda pendentes...

— Chega Charlie!

Dona Jane me intima. Sua rigidez me faz retroceder imediatamente. Sinto-me como se estivesse prestes a ser jogado em uma arena abarrotada de leões.

— Vamos lá. De novo. Eu compreendo essa sua reação imatura, o seu atordoamento como o de uma criança mimada que sempre teve satisfeitos os menores caprichos, e isso graças à nossa flexibilidade exacerbada, a minha e a do seu pai. Mas agora você está direcionando essa energia pra direção errada; uma resistência sem fundamento.

Me sinto irremediavelmente ainda mais irritado, um completo estúpido e então projeto o meu olhar para o chão mais uma vez, porém, sem deixar de observar dona Jane pelo canto dos olhos, que a essa altura do campeonato já reiniciou o seu trajeto entre mim e a cama, não demorando a fazer uma pausa dramática logo a seguir, parando de costas para onde estou sentado e de frente para a porta do quarto.

— A escolha é somente sua, Charlie, de como chegaremos até depois de amanhã. Se quiser ser tratado como uma criança, vamos lá. Detesto usar esse tipo de mecanismo, ameaça ou chantagem, mas se é a única solução viável, que tal começarmos pelo tradicional castigo?

— Oi?

Levanto o olhar de pronto e deixo escapar a interjeição ao mesmo tempo em que dona Jane se vira, já me fuzilando com os olhos semicerrados. Não me resta alternativa a não ser fazer cara de paisagem.

— Posso não deixá-lo ir à festa de despedida que os seus amigos organizaram, que tal? — ela não espera nenhuma resposta de minha parte, se volta prontamente na direção da porta e com três passadas largas a alcança.

— A senhora não seria capaz disso — lanço meu desafio sem pensar nas consequências enquanto num gesto instintivo me inclino mais uma vez para frente da cadeira e por pouco não dou com a cara no chão.

— Não me provoque — dona Jane avisa, sem se virar, estacionada sob o batente da porta — Sabe que quando tomo uma decisão nem mesmo o Papa, em pessoa, conseguiria me fazer voltar atrás — ela deixa o quarto pisando firme, fechando, com um baque surdo, a porta atrás de si.

Definitivamente as leis do universo são injustas quando mãe e filho divergem de um ponto de vista. Elas sempre saem ganhando, não importa nossos argumentos, mas dessa vez isso não vai ficar assim, não mesmo.

Dou um salto da escrivaninha até minha cama, onde caio deitado, e apanho o celular que está jogado num canto. Meu gesto é tão alvoroçado que quase deixo o aparelho cair no chão. Citando Stephen Hawking, o célebre físico teórico: “não importa o quanto a vida possa ser ruim, sempre existe algo que você pode fazer, e triunfar. Enquanto há vida há esperança”.

Repito esse mantra conforme sigo teclando o número do telefone do meu pai, sem esquecer o DDD de Curitiba. Ele demora um pouco a atender. Tudo bem. Deve estar ocupado...

— Oi! Pai?

Até que enfim.

— Charlie? O que houve?


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