A difícil arte de ser eu, Charlie escrita por Charlie


Capítulo 4
E o tiro aparentemente saiu pela culatra




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Deixo o celular escorregar da mão enquanto corro os olhos pelos quatro cantos do teto do meu quarto até fixá-los num ponto qualquer. Sem sombra de dúvidas a Elle sofre de algum tipo de transtorno dissociativo de identidade, ao menos acredito que seria esse o diagnóstico de dona Jane para a crise de dupla personalidade que minha amiga surpreendente acabou de demonstrar.

Há praticamente uma hora Elle me ligou, indignada, diga-se de passagem, com o fato do Ben querer, nos quarenta e cinco minutos do segundo tempo, vir conversar comigo para esclarecer o “mal entendido” do fim do nosso namoro, e ela mesma fez questão de me contar, antes que eu soubesse por terceiros, o fato do quadrúpede estar namorando alguém do SEXO MASCULINO depois daquela desculpa esfarrapada que deu pra se ver livre de mim. Pois bem. Após a retomada da campanha Todos contra Bem Hope, o mínimo que eu poderia esperar seriam aplausos pela minha postagem no Secrets, mas o que eu recebo? Uma reprimenda por causa de uma desforrazita. Que eu agi por impulso; que se vingar de alguém nada mais é do que se igualar a outra pessoa e que eu abri um precedente para que o Ben assuma um papel de vítima.

Oi?

Óbvio que minha reação, depois de beirar o limite da incredulidade, não poderia ter sido outra senão a da ironia conforme lançava minha pergunta à minha best friend, questionando se por acaso quem estava falando comigo do outro lado da linha era a minha mãe.

Pelo Criador, a Elle sabe melhor do que ninguém como eu estou sobrevivendo a essas últimas semanas e que conto com ela para ser minha válvula de escape no meio desse Deus nos acuda. E agora, assim, do nada, age dessa maneira?

Tamborilo os meus dedos sobre o colchão à medida que respiro fundo e conto até dez e depois inspiro e expiro e conto até dez novamente.

Desde que o mundo é mundo vingar-se tem sido uma prática usual, perturbadora; o desejo da desforra tem sido representado pelo homem em obras que vão desde a mitologia grega até a novela das nove. Medeia que o diga. Matou os próprios filhos para punir o marido traidor... Ok. Radical demais e apelativo, além de completamente insano, mas eu entendo a Medeia, de verdade. Isso não quer dizer que eu chegaria a esse extremo, mas o principio de não deixar que o rival nos considere fraco e vencido, é válido. É o que nos impulsiona a reagir de uma maneira tão derradeira. E no meu caso, não vou cansar de repetir até o último dia da minha vida: o Ben é um covarde filho da puta.

Por que o infeliz não me disse que tava a fim de partir pra outra?

Por quê?

Por que decidiu inventar aquela historinha ridícula de que o ajudei a enxergar que sentia atração pelas garotas?

Cara, na boa, será que o Ben não pensou em nenhum momento que esse pretexto iria me afetar de maneira negativa, fazendo-me acreditar que eu fui um péssimo namorado, um completo incompetente elevado à milésima potência ao invés da imagem idílica do herói salvador da pátria que ele tentou me empurrar goela abaixo? Se o veado estava sem colhões pra me contar a verdade, teria sido melhor se tivesse dito que não iria mais rolar porque nossos signos não combinavam. Desculpa por desculpa, essa seria bem mais tragável e empática. Mas não. Com certeza o idiota não pensou em nada além do próprio umbigo. E agora o cretino me aparece com um tiozão? É isso mesmo? E querendo ficar bem na foto?

Fala sério!

Enfim... Talvez não seja uma má ideia ver o Ben antes de ir embora para o mundo de Nárnia e perguntar, face to face, se ele acordou, assim, do nada, há mais de três semanas, convicto de que queria terminar o nosso namoro. Sim. Confrontá-lo. Jogar na sua cara bizarra, agora que toda a verdade veio à tona, que a sua súbita e veloz epifania de gênero nunca passou de uma mentira desaforada e covarde. E que tão certo como dois e dois são quatro, a probabilidade de que ele já estaria me dando um perdido, me colocando um belo par de chifres com esse papa-anjo trintão, ou sabe-se lá quarentão, é nula. E que tudo o que disser para tentar se defender não vai fazer a mínima diferença, até mesmo porque vou gritar bem alto, e pra quem quiser ouvir, que além de ele ser um péssimo ator, um cara de pau, é um ingrato, um infame que me deu um chute na bunda sem sequer levar em conta que o meu mundo estava começando a desmoronar.

Viro-me de lado, num movimento brusco, e enquanto o edredom engalfinha-se aos meus pés, apoio a cabeça sobre o meu braço esquerdo e fico olhando para a larga faixa dourada da luz do sol atravessando a janela e digo a mim mesmo, decidido e erguendo o queixo, que não vou pensar em nada disso por agora, nem mesmo no sermão que a Elle me deu, afinal de contas ela não está raciocinando direito por causa dos trabalhos da escola.

Sinto — ou ao menos acho que sinto — minhas emoções, as reações do meu corpo desacelerarem ao passo em que experimento — ou ao menos acho que experimento — movimentos espasmódicos acontecendo em uma das minhas pernas e então balanço a cabeça bem, bem devagar enquanto um bocejo muito, muito longo e uma moleza me incentivam a fechar os olhos conforme ouço minha respiração. Nesse instante uma verdadeira batalha entre titãs começa a acontecer em minha mente e sem qualquer aviso prévio. Eu quero descansar, esvaziar todo o meu cérebro até alcançar o nível mínimo de subsistência cognitiva, mas não consigo. Vozes começam a se fazerem ouvir, palavras mastigadas, sem pressa, desordenadas, sendo atiradas contra mim. E por mais que me esforce não consigo distinguir quem está falando, apenas compreender, ou reconhecer, as frases, cada uma delas, como a ameaça de dona Jane em me deixar de castigo, ou as justificativas do meu pai para que eu não vá para Curitiba; também a notícia de que o novo namorado do Ben é um cara mais velho; ou ainda o absurdo de ser chamado de egoísta por não ter notado a fragmentação do casamento dos meus pais...

Empenho-me no intuito de me defender dessas vozes sem rosto, argumentar, entretanto minhas ideias não se concatenam, e ainda que pudesse, percebo que minha própria voz está trancafiada na garganta, assim como também não encontro forças para abrir os olhos, pois minhas pálpebras estão extremamente pesadas e meu cérebro segue revisando e processando memórias, pensamentos e sensações diversas, dando-me a impressão de que não sei exatamente o que está acontecendo, ao mesmo tempo em que imagens oníricas, flashes de luz e pensamentos mal formados, surgem, alguns estáticos, outros nem tanto.

Mary Shelley disse ter tido inspiração para criar o personagem Frankenstein em um “sonho acordada”, nas primeiras horas da manhã, enquanto escrevia...

Minhas pálpebras continuam extremamente pesadas, mas ainda consigo sentir fragmentos de movimentos rápidos nos meus olhos...

Estou exausto...

Necessito frear, encontrar um meio termo que me permita chegar são e salvo até domingo...

“Por que não aceitou o convite de amizade que a sua prima Tori te enviou pelo Facebook? Ela está ansiosa por este contato”.

A pergunta retórica de dona Jane, acompanhada de uma justificativa aparentemente despretensiosa, buscando a todo custo mascarar o efeito de uma manipulação passiva, ambas embaladas num tom de voz aveludado, grita aos meus ouvidos me fazendo despertar um tanto assustado e com uma sensação de que estou caindo, perdendo o equilíbrio...

Sim...

Sim...

Estou caindo...

Caindo...

 

 

Estou parado em frente a uma estrada sinuosa, vermelha como o sangue, ladeada por cedros escuros de cascalhos, que se encontra em arco, dificultando em grande escala a passagem dos raios de sol por suas copas, transformando a extensa alameda que se desdobra ao longo do caminho em um túnel sombrio.

Que lugar é esse? Questiono ao tempo em que não demoro a perceber que não consigo me mover, nem falar ou sequer ter qualquer outro tipo de ação ou reação.

De repente sinto minha mão esquerda sendo puxada. Um corpo etéreo, um fluido que se deforma continuamente em cores e imagens, como o de um caleidoscópio, surge à minha frente tentando me fazer andar. Recuso-me a seguir e reclamo, perguntando o que está havendo, onde estou, mas não recebo qualquer resposta e então olho para trás e por incrível que possa parecer constato que caminhei um bom pedaço de chão.

Mas como? Estou imóvel.

Sinto filetes de raios de sol tocando minha pele, cálidos, plácidos, complacentes, ajudando a iluminar a semiescuridão que me rodeia. Volto-me na direção da tal imagem constituída de pura energia, mas não a encontro. Ela (ou ele) desapareceu completamente sem deixar qualquer vestígio.

Uma chuva torrencial desaba sobre mim sem aviso prévio ao passo em que volto a ter domínio sobre o meu sistema motor e então começo a correr sobre a estrada vermelha sem diminuir um instante sequer os meus passos, mas depois de certo tempo, já ofegante, percebo que não consegui sair do lugar.

Inesperadamente, como um sopro de vida, uma silhueta de contornos femininos surge no meu caminho. Semicerro os olhos e estico um pouco o pescoço para frente na tentativa de identificá-la. Como se ela pudesse ler os meus pensamentos, a imagem embaciada adianta-se alguns passos em minha direção, estaciona e em seguida, como se as lentes de uma câmera tivessem encontrado o foco, uma jovem de cabelos longos e pretos, pele branca, muito branca, é revelada. Não a reconheço de pronto, mas seu rosto aos poucos vai sendo iluminado pela luz escassa do sol e só então percebo que o dilúvio que desmoronava sobre mim, estacou.

A jovem à minha frente é bastante bonita, de olhos bondosos, inteligentes. Com um sorriso encantador atravessando todo o seu rosto e uma empatia singular emanando do seu semblante, ela abre os braços convidando-me para ir ao seu encontro...

É Tori.

Sim. É Tori, minha prima.

Ela está idêntica àquela foto que usa no perfil do seu Facebook.

Decido não demonstrar qualquer emoção, apenas me limito a perguntar o que está havendo, por que não consigo sair do mesmo lugar... Tal como o ser etéreo, ela também não me devolve qualquer resposta, qualquer explicação, apenas permanece parada, inerte, entretanto toda sua expressão acolhedora é substituída numa fração de segundos por um cenho cerrado, carrancudo, ao mesmo tempo em que sinto o chão começar a tremer sob os meus pés e uma aflição imediata tomar conta de mim; um calafrio percorrer todo o meu corpo.

Tento e novamente não consigo me mover e constato que apenas eu estou sendo atingido por esse cataclismo e sem pestanejar volto a perguntar o que está acontecendo, mas dessa vez aos berros, incentivado por um frenesi genuíno incrustado em cada fibra do meu ser.

Tori permanece impassível, indolente acima da terra vermelha como o sangue, até que o solo, por fim, para de tremer, porém não tenho tempo de me sentir aliviado, pois os meus pés imediatamente começam a afundar e eu não demoro a olhar para baixo e me certificar, assumindo uma expressão de tamanho terror, que estou sendo devorado lentamente por um banco de areia. Estremeço e então começo a me debater, me contorcer de puro medo, gritando enquanto o suor brota de meus poros aos borbotões até que levanto o rosto no intuito de pedir ajuda a Tori, mas em meio a essa realidade bizarra acabo encontrando em seu lugar a imagem de minha mãe, que também não se move, não esboça qualquer sinal de que pretende me ajudar...

Não demora muito para que metade do meu corpo já esteja submerso.

Praticamente já não tenho mais voz e todos os meus músculos doem.

Olho para os lados na tentativa derradeira de encontrar algo para me apoiar e deparo-me com uma serpente imensa rodeando-me e ela parece sorrir...

Mas isso é impossível.

A terra continua a me devorar e eu uso o que resta das minhas cordas vocais para um último pedido de socorro e qual não é minha surpresa ao ver a tal serpente se metamorfosear em Ben. E ela, já em sua forma humana, me dispara uma piscadela rápida e um leve traço de um sorriso maquiavélico enquanto me estende a mão...


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