Desabando em meu próprio destino escrita por Arisusagi


Capítulo 4
Capítulo 4 - A cor carmim do meu sangue te chama


Notas iniciais do capítulo

Título retirado da música Shinku no Kizuato



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Kaito tremia sem parar. Segurando a mão dele, Gakupo preferia pensar que era por causa do vento frio que entrava pela janela. A lua cheia brilhava lá fora, iluminando o quarto muito mais do que a única vela acesa na mesinha de cabeceira. Encostado junto ao guarda-roupas, o vampiro olhava para os dois rapazes sentados sobre a cama quase que com pena. Eles já estavam assim há pouco mais de dez minutos, tão quietos que até o tique-taque do relógio de pêndulo que ficava na sala, muito longe daquele quarto, soava estrondoso.  

— Kaito… —  Ele disse baixinho, apertando a mão fria e trêmula. 

— Desculpa. Eu… — Kaito respirou fundo, seu peito chiando no processo. — Ainda estou com um pouco de medo.

— Eu estou aqui com você, não se preocupe. —  Gakupo disse calmamente, aproximando seu rosto de Kaito por um instante, mas afastando-se assim que se lembrou de que não estavam sozinhos ali. 

— Temos muito tempo até o amanhecer. — O vampiro riu baixo, cruzando os braços. — Se quiserem um pouco de privacidade, posso me retirar. 

Todos ficaram em silêncio por um instante. Assim que o relógio começou a soar as dez badaladas, Kaito se levantou.

— Não será necessário. — Decidido, ele começou a desabotoar a camisa do pijama, jogando-a no chão assim que terminou. — Já estou pronto, podemos começar. 

Gakupo também ficou de pé, afastando-se um pouco quando Rook se aproximou.

— É melhor se deitar, assim ficará mais confortável para nós dois. — Ele delicadamente segurou os ombros magros de Kaito, empurrando-o de volta para cama. 

Rook se posicionou em cima dele, apoiando um joelho de cada lado de seus quadris sobre o colchão. A pele do vampiro era branca como marfim, e parecia reluzir sobre a luz do luar. Os olhos vermelhos vivos encontraram os de Kaito, e ele sentiu um arrepio percorrer seu corpo. 

Ele virou o rosto de lado, e viu Gakupo, que assistia tudo ajoelhado próximo à cama, com um brilho de imenso encanto e curiosidade no olhar. Kaito ainda não entendia como ele não estava minimamente assustado com tudo aquilo. Isso só o deixava com ainda mais receio de deixar transparecer uma fração que fosse do pavor que sentia do que estava prestes a acontecer. 

Sem dizer nada, Kaito estendeu a mão para ele, que imediatamente atendeu ao pedido, segurando-a e beijando-lhe as falanges suavemente. Rook murmurou algo em uma língua desconhecida e riu baixo, contornando as curvas do pescoço dele com as pontas dos dedos. 

— Posso começar? — Kaito assentiu balançando a cabeça, incomodado com a sensação sinistra de ser tocado por aqueles dedos tão gelados que pareciam mortos. — Então será no três. Um, dois e…

Kaito não estava preparado para a dor lancinante que veio quando as presas perfuraram seu pescoço. Ele gritou alto, uma mão agarrando o lençol e a outra apertando a mão de Gakupo com toda a força que tinha. 

Dava para sentir o sangue sendo sugado rapidamente para fora de seu corpo. Tudo começou a girar, e o frio ficava cada vez mais insuportável. Uma sensação terrível de cansaço o acometeu, e ele sentiu-se tão fraco que não conseguia mover um dedo sequer, além da dor forte que ainda pulsava em seu pescoço. Ele tentava falar, mas nada saía de sua boca além de gemidos. Kaito sentia o peito cheio com mais uma das terríveis crises de tosse que já teve, mas ele não tinha força para fazer nada além de tossir fraco e engasgar com a própria saliva.

Rook saiu de cima dele, e sua visão começou a turvar. O sangue escorria pelo seu pescoço livremente, formando uma poça quente no colchão debaixo de si. Gakupo soltou sua mão por um instante, mas logo a segurou de novo, e ele viu o brilho do que deveria ser uma navalha refletindo a luz do luar.

De repente, o pulso de Rook abafou seus gemidos, e o gosto de ferrugem invadiu sua boca, como se fosse o melhor sabor que provou em toda a vida. Sem se dar conta, Kaito segurou aquele pulso com as duas mãos e sugou o sangue da ferida aberta com toda a vontade que tinha, até ser forçado a largar.

E aí veio uma das piores sensações que ele já sentiu. Seu corpo inteiro tremia sem parar, o sangue queimava dentro de suas veias, e sua cabeça latejava tanto que parecia estar prestes a explodir. Ele não sabia se aquela era a sensação de estar à beira da morte, mas desejava do fundo do coração que estivesse de fato morrendo para aquele sofrimento acabar.

Gakupo e Rook conversavam ao lado da cama, e ele não conseguia distinguir as palavras que falavam, nem o formato de seus vultos. A única coisa que ele escutava era um zumbido ensurdecedor. Seu corpo começou a convulsionar, os músculos contraindo dolorosamente, até a crise de tosse finalmente estourar com toda a força que tinha, fazendo-o engasgar com a secreção. 

Ele sentiu um par de mãos segurando seus braços, enquanto ele tossia descontroladamente, seu corpo se retorcendo inteiro e sua cabeça batendo repetidas vezes contra a cabeceira. Uma luz branca e quente surgiu e aos poucos o envolveu por inteiro, ofuscando sua visão por completo. 

E de repente, ele não sentiu mais nada.

 

 

Kaito acordou desorientado, porém, sentindo-se extremamente descansado. 

— Kaito…? — A voz de Gakupo parecia ter um timbre completamente novo. 

Ele olhou ao redor, impressionado com a clareza com que enxergava tudo, mesmo não havendo uma vela acesa sequer naquele quarto.

— Finalmente você acordou. — Gakupo se sentou na beira do colchão e se debruçou sobre ele. 

Os cabelos púrpura contrastando com a pele branca e a camisa preta, e o par de olhos cinzentos que o fitavam, tudo ali era maravilhoso, como se fosse a primeira vez que ele via aquelas formas e cores. Sem dizer nada, ele agarrou uma mecha entre indicador e o dedo médio,e ficou ali entretido, enrolando-a entre os dedos por alguns minutos. 

— Não vai falar nada? — Gakupo riu, e aí Kaito parou mais uma vez para prestar atenção em seu rosto.

A pele branca reluzia sublime, mesmo na escuridão do quarto em que estavam, quase como se emanasse luz própria. A mão que segurava a mecha de cabelo agora foi parar na bochecha de Gakupo, as pontas dos dedos afundando de leve em nas maçãs do rosto, e então contornando cada detalhe que ele via ali: o nariz, os lábios, as sobrancelhas, do queixo até a linha da mandíbula. Aquele par de olhos azuis cinzentos brilhavam como se fossem engolí-lo. Tudo estava tão etéreo que parecia até um sonho do qual ele despertaria em breve. 

— Como está se sentindo? — Gakupo pôs a mão espalmada sobre o peito nu de Kaito. — Não tem mais nada aqui, tem?

Kaito passou então a prestar atenção no próprio corpo. De fato, a sensação de peito cheio e a fadiga, que se tornaram constantes nos últimos dois anos, haviam sumido. 

— Não… Não sinto mais nada, pelo menos. — Ele respirou fundo, sem ouvir o chiado característico que o acompanhava a tanto tempo. 

— Você está curado, Kaito. Está curado! — Gakupo abriu um sorriso, revelando um par de presas afiadas onde antes ficavam os caninos. Vê-lo tão alegre assim, como não o via há anos, só deixava tudo parecendo mais ainda um sonho. 

Kaito segurou a mão dele, que ainda repousava sobre seu peito, sentindo o próprio coração bater muito mais lento do que o normal abaixo dela. Assustado, ele tentou se levantar, mas Gakupo o abraçou imediatamente.

— Gakupo, meu coração… — Kaito o tirou de cima de si delicadamente e se sentou sobre a cama. — Está estranho… 

— É normal, veja. — Ele pegou a mão de Kaito e a pôs sobre o próprio peito. O coração dele também batia lento, como se estivesse prestes a parar. — Não se lembra do que aconteceu? 

As memórias da transformação estavam embaralhadas na cabeça de Kaito, e pareciam ser apenas um sonho distante. A única coisa que ele se lembrava com clareza era das dores insuportáveis que sentiu. Ele passou a mão pelo pescoço, sentindo apenas a pele lisa, sem nenhum sinal das feridas por onde Rook sugou-lhe o sangue.

— Rook… Onde ele está? 

— Foi embora na mesma noite que nos transformou. — Kaito franziu o cenho, confuso. — Nos transformamos duas noites atrás. Você desmaiou no meio do processo e só acordou agora. 

— Duas noites…?

— Acho que isso só aconteceu porque você estava doente. Eu nem sequer desmaiei quando foi a minha vez. — Gakupo segurou o rosto de Kaito com as duas mãos e juntou seus lábios ao dele em um beijo rápido. — Mas não faz diferença. O importante é que você não está mais doente e agora nós dois somos imortais.  

— Imortais… — Kaito murmurou para si mesmo, enquanto Gakupo o abraçava, beijando-lhe a bochecha e os lábios mais uma vez. Só então Kaito se deu conta de como sentia falta de sentir a maciez daqueles lábios dele junto ao seus. 

O coração batendo lento em seu peito, a pele tão pálida quanto a de um cadáver, o par de presas afiadas que tinha dentro da boca… Nada daquilo ainda lhe parecia real. 



 

Naquela mesma noite, os dois foram para o estábulo. 

Gakupo falava sem parar sobre a longa conversa que teve com Rook após a transformação, contando todos os detalhes sobre a vida de vampiro que havia aprendido. Era uma cena tão fora do comum, ver Gakupo falar tanto assim. Até o fazia se lembrar dos tempos da infância, quando andavam de mãos dadas daquela forma pelo jardim, Gakupo falando sem parar sobre qualquer assunto que fosse, e Kaito escutando tudo em silêncio.

Apesar de sentir o frio, Kaito não se sentia incomodado, mesmo vestindo apenas uma camisa fina. Seu corpo estava muito leve, quase como se flutuasse no ar. A mão de Gakupo, que segurava a sua, não estava quentinha como sempre, mas aquilo não o causava estranhamento nenhum, por algum motivo. A lua cheia ainda brilhava no céu, e Kaito se sentia quase hipnotizado por sua beleza. A voz macia de Gakupo parecia ao mesmo tempo perto e distante,  e ainda tinha aquele timbre fantástico e surreal. Tudo ainda parecia um sonho. 

Chegando no estábulo, Gakupo soltou sua mão por um instante para abrir a porteira. Lá dentro, ele o levou até um cavalo que tinha uma ferida aberta nas costas. 

— Vê? Foi daqui que bebi o sangue. —  Ele acariciou o pelo branco do animal. — Rook me disse que os cavalos são os melhores animais para se tirar sangue. Vacas também. São grandes, então você não precisa matá-los para se alimentar.

Kaito coçou a cabeça. Ele ainda não havia absorvido a ideia de que só se alimentaria de sangue dali pra frente.

— Venha, tente você também. — Gakupo o puxou para perto. Kaito o olhou confuso, como se não soubesse o que quis dizer com aquilo. — Vamos, é só morder.

— Mas… — Ele engoliu seco, lembrando-se vagamente do gosto sangue de Rook. 

— É só morder aqui. — Gakupo apontou com o dedo um pouco abaixo da ferida. — Não é nenhuma região importante, então ele não vai morrer.

Hesitante, Kaito acariciou o pelo do animal, sentindo o olhar de Gakupo pesar sobre si. Lambeu os lábios, a ponta da língua encostando nas presas afiadas. 

Aproximando o rosto do dorso do animal, ele abriu a boca, perguntando-se como deveria mordê-lo. As presas rasparam no pelo, e o cavalo relinchou agitado. Enquanto Gakupo o segurava pela correia, Kaito tentou de novo, dessa vez perfurando a pele. 

O sangue que invadiu sua boca pareceu tão delicioso quanto o de Rook naquela noite. Ele sugou um pouco, sentindo o cavalo pisotear o chão, incomodado. Apesar de sentir certo prazer em consumí-lo, pensar que era sangue o trazia certo estranhamento. O gosto que parecia sedutor de início logo se tornou pesado e quase nojento, empesteando a língua e a garganta. 

Mesmo assim, Kaito continuou bebendo e, quando se deu por satisfeito, afastou-se, algumas gotas de sangue escorrendo pelo seu queixo e pingando na camisa e no chão. 

— Tão pouco assim? — Gakupo riu, oferecendo-o um lenço para se limpar. — Pode beber mais, não precisa se segurar.

— Não… Já é o suficiente. — Apertando o lenço contra os lábios, Kaito sentiu seu corpo esquentar. 

Gakupo se aproveitou da ferida aberta para sugar um pouco mais do sangue do cavalo. Quando voltou-se para ele  novamente, Kaito se surpreendeu ao ver a cor de sua pele mudar bem diante de seus olhos.

— Gakupo… Sua pele…

Estava tão rosada quanto era antigamente, tão vibrante que fez Kaito se perguntar como estava tão pálida e morta instantes atrás. Fez ele se lembrar de quando eram crianças, no verão e no inverno, quando ficavam com as bochechas rechonchudas queimadas pelo sol ou pelo frio.

— Deve ser porque acabamos de nos alimentar… Sua pele também mudou. — Depois de tomar-lhe o lenço para se limpar, Gakupo segurou sua mão. 

Kaito sentia um leve calor começando a irradiar da palma 

— É tão estranho… — Murmurou. 

— Não fique tão chocado. Daqui pra frente, esse será o normal. — Gakupo riu, aproximando-se dele e roubando-lhe um beijo. — Não somos mais humanos, Kaito.

Aquela frase fez uma sensação estranha se remexer dentro de Kaito. Ele queria conseguir ficar tão empolgado e encantado com tudo aquilo quanto Gakupo, mas alguma parte de sua consciência o dizia baixinho que aquilo não era certo.

E aquela voz só foi ficando mais forte com o passar dos anos. 

 


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Notas finais do capítulo

A forma de se transformar em vampiro é a mesma de A Entrevista com o Vampiro



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