A Música Que Nos Une escrita por Aline Lupin


Capítulo 7
Capítulo 6




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Anne acordou com uma dor de cabeça horrível e desceu para tomar o café, com muito custo. Queria sumir naquela manhã e não voltar mais. Klyne a deixara muito irritada. E ele estragaria todos os seus planos de viver respeitavelmente. Logo Collins iria saber e manda-la embora. Estava irritada com isso. Com sua vida sendo controlada por uma maldita reputação. Respirou fundo, tomando seu café e não conseguindo engolir as torradas. Parecia serragem.

— Senhorita, está tudo bem? – perguntou a Sra. Campbell, sentando-se ao lado dela.

Não havia mais ninguém na cozinha. E Anne queria fugir. Quando havia mais pessoas, ela podia se distrair e não ter que pensar em seus problemas. Nem ser questionada. Mas a Sra. Campbell parecia muito compreensiva. Tinha um rosto redondo e olhos castanhos doces. Além de ter ódio pela aristocracia, que Anne também sentia, cada vez mais. Se ela pudesse contar a ela, talvez a senhora compreendesse seu dilema.

— Eu...- ela respirou fundo, fitando o olhar compreensivo da cozinheira – Já passou por uma situação ruim?

— Que tipo de situação, senhorita? – ela indagou, curiosa.

— O tipo que a colocasse em apuros. Que perdesse a reputação – Anne respondeu.

A Sra. Campbell parecia refletir, fitando além de Anne, como se o passado estivesse desfilando diante dos seus olhos.

— Bom, minha filha passou por isso – ela respondeu, cautelosamente – Não que a sociedade se preocupe de fato com a reputação de uma criada ou governanta. Mas, a aristocracia não gosta de escândalos. E a reputação de uma mulher é tudo que ela tem. Aconteceu algo com a senhorita? Algo grave?

Ela tinha um tom maternal, como se falasse com sua própria filha. E Anne queria chorar, pois sentia falta disso. De uma conversa franca, de uma amizade. De poder ser verdadeira e não dizer meias verdades. Sentia falta de um abraço amigo e de sua mãe. Sua mãe nunca poderia falar com ela novamente, pelo fato de não ter voz dentro da própria casa. Ela devia obedecer a seu marido. Se fizesse algo diferente, poderia ter problemas. Seu pai não era um homem compreensivo. As vezes era irracional. E com certeza fora ele quem a riscou da vida de todos. E todos deviam estar com raiva dela, pelo que causou ao ter fugido com Thomas. Sua mãe talvez estivesse muito desgostosa e magoada. E ter a Sra. Campbell ali, diante dela, demonstrando compreensão a fez contar uma parte da história. Uma pequena parte do seu passado.

— Eu não gostaria que isso saísse daqui senhora – ela disse, com receio – Eu temo que se alguém souber, irá usar contra mim meu segredo.

A cozinheira assentiu. Se levantou e fechou a porta da cozinha.

— Pode contar com a minha discrição, senhorita – ela disse, com um olhar sério e se sentou a frente de Anne – Eu prometo que nunca irei contar o que me disser.

— Bom...eu...- Anne engoliu seco, sentindo o corpo tremulo. Aperto as mãos com força, no regaço da saia – Eu fui casada uma vez. Mas, não perante Deus. Eu me tornei uma amante.

Ela mordeu os lábios, esperando alguma reação da senhora a sua frente. Mas, ela não parecia se impressionar.

— Não irá me condenar? – perguntou.

— Ó, não mesmo, senhorita – a Sra. Campbell respondeu – Jamais faria algo assim. Minha filha sofreu justamente por isso. Por ser uma amante. O que aconteceu com o bastardo? Por que não está com ele?

Anne acabou rindo da franqueza da mulher.

— Ó, ele desapareceu. Simplesmente sumiu. Estávamos vivendo na miséria. Ele tinha o costume terrível de jogar dados e cartas. Dizia que iria trazer dinheiro para nós. Eu temo que ele esteja morto.

Ela respirou fundo, fechando os olhos. Lembrando do rosto de Thomas. Da forma doce com que ele a olhava. Tudo que ele representava para ela. Anne ainda o amava profundamente. Mas, se o visse novamente, nunca mais iria querer estar naquela situação. Não iria mais ser sua amante, nem que ele lhe prometesse um casamento honesto. Sentia que finalmente era livre. E aquelas semanas, passou a escrever mais. Tinha um prazo a cumprir. Se tudo desse certo, com o dinheiro que iria receber em breve pelo seu trabalho como governanta, poderia pagar uma parte dos folhetins que seriam impressos. Iria publicar sua história, com um nome falso. Apenas para proteger a si mesma. E o editor parecia ter gostado. Então, ela não teria mais que depender de um homem. E se tudo desse certo, não teria que trabalhar como governanta. Apesar de estar gostando de cuidar do jovem Erik. Ele era um desafio e tanto.

— Eu sinto muito, querida – A sra. Campbell disse, segurando a mão dela, desviando seus pensamentos. Ela encarou os olhos sinceros da senhora – Eu perdi meu marido para a tifo. Foi algo terrível. E vejo que você sente ainda falta do seu companheiro, por mais que ele não tenha sido bom para você, por não ter se casado. Mas, parece que você era feliz, minha querida.

Anne assentiu. Ela era sim. Thomas a fazia rir e era humorado. Nunca levantou a voz para ela. Era doce e amigável. Nunca a deixava sozinha a noite. Ele só não tinha sorte, era o que sempre dizia. Faltava a sorte para que eles pudessem voltar a glória de sempre. Ela mordeu os lábios, tensa.

— Nós éramos muito felizes, mas não podia mais viver daquela maneira. E ele ter ido me deixou sem rumo, também. Só tive uma chance devido a um amigo de Thomas. Mas, esse é problema maior. Ele me queria como sua amante.

— Mas, que bastardo desgraçado – A Sra. Campbell esbravejou – Como esse homem pode ter sugerido isso? Poderia ter se casado com a senhorita.

— Ó, eu não o queria. Nem o quero. No final, ele conseguiu uma posição para mim em uma casa respeitável. Mas, parece que isso não é suficiente para ele. Temo que ele vá contar ao Sr. Collins o que aconteceu. Ele disse que me quer e que não vai desistir.

A Sra. Campbell estreitou os lábios, claramente irritada.

— Ah, mas se ele fizer isso, eu a ajudarei, senhorita. Eu não sei se o Sr. Collins se importa com isso. Mas, se ele se importar e quiser mandá-la embora, eu vou com a senhorita. Iremos achar outro lugar para trabalharmos.

Anne fechou os olhos, sentindo as lagrimas quentes querendo escapar de seus olhos. Ela os abriu, depois de um tempo, sentindo a visão embaçada.

— Obrigada, senhora. De verdade, isso é muito bom de saber. Mas, não quero que a senhora sofra. Se acontecer, eu já tenho um plano em andamento. Vou me virar bem.

A Sra. Campbell assentiu.

— Eu não iria ficar, senhorita, se o Sr. Collins for um homem julgador. Eu sei muito bem o que minha filha passou e ele parecia muito compreensivo. Se tudo for mentira, eu não vou trabalhar para ele.

Anne se surpreendeu com a franqueza dela. E da sua coragem.

— Gostaria de ser como a senhora. Eu não teria coragem de sair assim – ela disse.

— Coragem é o que nós mulheres precisamos ter, senhorita. Esse mundo é muito cruel conosco. Muito mais do que com os homens – ela deu alguns tapinhas na mão de Anne, que estava sobre a mesa, mais relaxada.

— Bom, eu tentarei ser, senhora. E preciso cuidar de Erik agora – ela se levantou ao mesmo tempo que a cozinheira.

— Traga o menino aqui, se puder. Ele não sai daquele cômodo quase nunca. Faz seis meses que ele está nessa casa e precisa se acostumar com as pessoas.

Anne assentiu. Pegou a bandeja de café que havia separado para Erik e subiu até o sótão. Deu graças por não encontrar Collins em seu caminho. Não queria falar com ele. Se sentia desconfortável na sua presença, como se o ar faltasse. Ela abriu a porta do quarto de Erik e se deparou com ele sentado e parecendo ansioso.

— Ora, mas que surpresa ao vê-lo acordado tão cedo – ela disse, com um sorriso.

Ele se levantou da cama, com um sorriso. O lado direito do seu rosto se esticou em uma careta, mas isso não a assustava mais. Era desconfortável olhar as queimaduras, mas aqueles olhos verdes e infantis pareciam equilibrar o aspecto estranho que a pele morta tinha sobre o rosto delicado do menino. Ele se aproximou dela, cauteloso e mostrou o papel do caramelo a ela.

— Primeiro, vamos tomar o café, querido. Depois, as balas. E se comportar, vai ganhar mais – ela disse e se surpreendeu ao vê-lo assentir.

Ele tomou o café, com rapidez e permitiu que ela trocasse suas roupas, quando a Sra. Hackney as trouxe. Ela ofereceu uma bala a ele, que parecia ter ganhado um tesouro, devido aos seus olhos brilhantes diante do caramelo. Depois, ela o levou para a cozinha, para cumprimentar a cozinheira. Ela havia feito bolinhos e Erik comeu rapidamente e colocou dois em seus bolsos. Anne deixou passar, pois ele estava se comportando muito bem. Ela já havia feito alguns testes com ele, de sair do quarto, mas ele sempre se tornava agressivo e urrava para voltar para ao sótão.

Depois, eles deram um passeio ao jardim e ele mais uma vez aproveitou para pular nas poças e mostrar algumas coisas que encontrava para Anne. Ela o encorajava, mesmo sabendo que ele estaria imundo no final do dia. Era necessário que ele se sentisse livre. Só Deus sabia que horrores ele havia suportado. Ele até mesmo encontrou uma flor para ela. Era uma calêndula, de cor laranja vibrante.

— Ó, que lindo seu gesto, meu querido – ela agradeceu e ele assentiu, envergonhado – Que cor é esse aqui, querido? Consegue me dizer?

Ele ficou vermelho e não a fitou.

— Repita comigo, a cor é laranja. É uma flor laranja – ela incentivou.

Ela sabia que ele conseguia falar. Se ele havia dito mais, algumas vezes e já havia dito algumas pequenas palavras, então, ele sabia. Mas, algo o fez parar de falar. Ele devia estar traumatizado com algo do passado.

— Laran...ja – ele disse, devagar e pausado.

— Isso mesmo, Erik. Laranja. É uma flor. Consegue dizer flor laranja? – ela perguntou.

— Flo...or – ele se engasgou. Sua voz infantil era suave. Ele apertou os punhos – Flo..or...- ele gaguejava. Parecia inseguro – Argh!

Ele parecia irritado e a fitou com seus olhos intensos, como se não tivesse gostado nada disso.

— Me perdoe, Erik. Eu somente queria saber se você conseguia falar – ela pediu, com um olhar triste – Não me olhe assim. Só quero que você fale comigo.

Ele mordeu os lábios. Parecia estar em conflito. E saiu correndo, sem esperá-la. Ela tentou encontrá-lo e pediu ajuda para a Sra. Hackney, mas não havia sinal do menino. O portão estava fechado, então ele devia ter se escondido em algum cômodo. Ela cansou de procurá-lo e foi para a sala de estar. Talvez, ele estivesse ali. Mas, não estava. Ela se sentou na frente do piano de parede, contemplando. Fazia muito tempo que não treinava. Seus pais se deram ao luxo de pagar aulas para todas as filhas e ela havia aprendido com muito afinco. Porém, não pode chegar perto de um mais, nem na casa da Sra. Armstrong, que não suportava o som do piano. Ela não entendia o motivo de ter um na sala. Provavelmente era decorativo e apenas para eventos que promovia em sua casa.

Anne abriu o tampo e contemplou as teclas brancas, intercaladas por teclas pretas. Tocou a nota dó e escutou o som vibrar. Gostava do som que as teclas produziam. E começou a tocar uma sonata que sempre ouvira. Era uma de Beethoven, Moonlight. Estava enferrujada, sabia disso. O som não saiu perfeito, mas ela continuou tentando, até que as notas saíram quase perfeitas. Ela sorriu para si mesma e seu esforço. E quando desviou seu olhar, encontrou Erik a fitando com embevecimento. O menino estava com os olhos arregalados e a boca semiaberta.

— Venha aqui, querido – ela pediu.

Ele se aproximou, cauteloso.

— Não tenha medo. Gostou do som do piano? – ela perguntou.

Ele assentiu e ficou ao lado dela, na banqueta.

— Sente-se, por favor – ela convidou.

Ele sentou-se ao lado dela, fitando o piano com um olhar maravilhado.

— Quer escutar de novo? – ela perguntou, fitando-o. Ele apenas assentiu.

Ela tocou novamente e ele parecia extasiado. A música parecia deixá-lo calmo. O mesmo que fazia com ela. Parecia que a música estava os unindo. Ela parou e tentou ensiná-lo as escalas. Os dedos pequenos dele não eram firmes, mas Anne não iria desistir. Talvez, a música pudesse acalmá-lo. Ela testaria aquele método com ele e veria se isso o faria falar. Ele claramente sabia, mas gaguejava. Algo devia ter acontecido com ele. Algo muito sério que o fez não conseguir se expressar e temer o contato humano. Ele parecia se divertir agora, com um olhar travesso. O mesmo olhar que Jacob tinha. Ela sentia alegria por ver o menino mais calmo. Ele apertava as teclas, maravilhado com o som.

— Essa é uma nota dó, Erik. Essa tecla é a nota ré. Faça como eu estou fazendo – ela pressionou as teclas – Dó, ré, mi, fá, só, lá, si, dó.

Ele tentou, mas parecia se atrapalhar e bufou irritado.

— Tente de novo querido. Não desista. Repita comigo, dó, ré, mi, fá, só, lá, si, dó – ela encorajou.

— Dó...ré...mi...fá...só... – ele respirou fundo, com a voz pausada – lá...si...dó?

— Isso, muito bem – ela bateu palmas.

O menino corou, olhando as teclas de novo. E tentou mais uma vez, e mais uma vez. Parecia estar se entendendo melhor com instrumento. E isso era um deleite para Anne.

— O que achou de tocar, Erik? Me diga – ela perguntou. Queria que ele falasse. Que ele se soltasse.

— Bom – ele respondeu, monossilábico, ainda sem tirar a atenção do piano.

Anne suspirou.

— Vamos, Erik. Elabore sua resposta. É bom por quê?

Ele parecia retesar. E ela se arrependeu de insistir.

— So...om...bo...nito...– ele gaguejou, com sua voz infantil – Nã...o...se...ei...fa...fa...lar...

Ele engoliu seco, soltando o ar. Parecia emburrado.

— Sabe sim, querido. Só precisamos exercitar mais – ela o encorajou – Me diga, quem cuidava de você, antes de vir para cá?

Ele fechou os punhos e parecia inquieto.

— Tudo bem, não precisamos falar disso, está bem assim? – ela perguntou.

Ele assentiu.

— To...car...de...no..vo – ele pediu, a fitando com embevecimento.

Ela sorriu.

— Muito bem, eu tocarei de novo.

Ela dedilhou o teclado e o menino ficou observando-a. Ela o pegava olhando seus dedos e batendo o pé no ar, pois ainda não tinha uma altura suficiente para encostar os pés no chão. Ele estava pegando o ritmo da sonata. E isso a deixava ainda mais esperançosa. Ela parou de tocar e voltou seu olhar para a porta. Não foi uma surpresa encontrar Collins e a equipe que comandava a casa estarem parados e olhando para ela com espanto. 

— Ó, parece que temos público Erik – ela disse, um pouco envergonhada.

Ele levantou o olhar e parecia alheio. Não estava incomodado. Se levantou e correu para Collins, o abraçando pelas pernas.

— Meu rapaz, que efusivo está hoje – ele disse, pegando o menino no colo.

— Mui...to...bo...a...An...ne – Erik gaguejou, apontando para a governanta.

— Muito boa mesmo – Collins concordou, com um sorriso caloroso – Sra. Hackney, poderia levar Erik para tomar um café na cozinha? Parece que fizemos progressos hoje.

Ela assentiu e Collins deixou Erik no chão. O menino seguiu com a senhora e o restante da equipe se dispersou. Collins entrou no aposento, com um olhar orgulhoso.

— Eu sabia que não tinha errado na sua contratação – ele elogiou.

Anne se sentiu corar. Levantou-se da cadeira e fechou o tampo e manteve a postura ereta, com as mãos para trás.

— É muito generoso, Sr. Collins – ela disse, olhando para baixo.

— Não sou tão generoso, senhorita – ele disse, com humor – Eu somente ajo conforme a lógica. E se você conseguiu conquistar Jacob, iria conquistar Erik, com toda a certeza. Eu realmente não havia pensado que a música poderia deixá-lo tão desinibido. Gostaria que tentasse de novo mais algumas vezes, para podermos comprovar isso.

Anne levantou o queixo e encontrou o olhar dele. Parecia entusiasmado e a fitava com olhar caloroso. E isso a desconsertou, a fazendo arfar.

— Sim, senhor, farei isso – ela disse, tentando manter a voz firme.

— Excelente, senhorita – ele anuiu, em satisfação – Gostaria de me acompanhar no jardim? Gostaria de conversar mais sobre seu progresso.

Ele estendeu o braço e ela se viu caminhar para ele. Apoiou seu braço no dele, enquanto ele a levava para fora. Ela contou como fora a tarde e suas impressões sobre o jovem Erik. De que ele poderia ter um trauma e que só precisava ter confiança para falar novamente. Que ele poderia ser gago, pois falava pausadamente. E isso já havia sido comprovado aquela tarde.

— Sim, de fato, pode ser isso. Faça mais interações com ele dessa natureza e me relate – Collins pediu – E certifique-se que ele se sinta à vontade.

— Senhor? – ela disse, parando de caminhar. Ele parou, a fitando com interesse – Por que está fazendo isso por ele? Não são nem parentes.

Collins mordeu os lábios. Parecia tenso.

— Eu não sei, de fato. Eu o vi em frente aos portões do hospital, tremulo, com o rosto desfigurado e eu me senti no dever de acolhê-lo. Todos me disseram para deixá-lo em um orfanato, mas eu não pude. Eu não queria. Eu sabia que ele ia ser deixado lá, sem ter a chance de se recuperar. Iria ser maltratado. E eu queria tanto levar todas aquelas crianças comigo. Mas, eu não teria como. Eu não tenho tanto dinheiro, sabe? – ele riu, sem humor – Não como Jasper ou Robert. E precisei de ajuda deles, implorei, para poder adotar Erik. Ele está registrado como meu filho agora. E eu me senti responsável por ele. Nunca tive filhos e minha esposa...- ele se calou, tenso – Acho que você não quer ouvir sobre isso. Eu me excedi.

— Não, por favor. Eu gostaria muito de saber – ela pediu, ansiosa e avida para saber mais sobre aquele homem. E sentiu um aperto no peito. Ele era casado?

Ele sorriu, tenso e caminhou até o banco, ao lado de uma árvore. Seu olhar estava para fora dos portões, na rua de paralelepípedos. O céu estava escurecendo e era difícil ler sua expressão.

— Bom, não é uma história emocionante – ele disse, soturno. Apertou as mãos uma com a outra – Não é algo que goste de falar, mas parece que posso confiar na senhorita. Eu posso, não é?

Ela se aproximou e se sentou ao lado dele.

— Pode confiar o que quiser, meu senhor. Nunca iria trair sua confiança.

— Isso é reconfortante – Ela não sabia dizer se ele estava sendo irônico, mas preferiu se abster – Eu nunca fui um homem sociável, senhorita. Eu nunca deixei que as emoções tomassem conta de mim. Eu temia que isso me fizesse perder o foco do meu futuro. Eu sempre quis ser um médico. Era algo estranho, como se isso me separasse das pessoas. Eu queria saber o funcionamento do corpo humano e o por que das doenças. Tudo isso me fascinava. Meus irmãos me olhavam com estranheza, mas meu pai parecia achar interessante o fato de ter um filho inteligente. Ele foi quem me motivou e me deixou estudar. Passei um período na Itália, estudando e me formei com honra. Até que conheci uma amiga da minha irmã. A senhorita Ania McAdams. Ela tinha uma descendência escocesa, para o horror da minha mãe. Mas, sua fortuna era algo invejável. Seu pai era um conde e isso favorecia o casamento entre mim e ela. Papai fez o arranjo, sem me consultar. Mas, eu queria agradá-lo e aceitei o fato que em casaria com Ania. Ela era gentil e em todas as vezes que a cortejei, eu me senti afortunado. Pela primeira vez deixei que a emoção falasse mais alto. Eu estava apaixonado – ele disse, com amargura e ironia – E lá estava eu, entregando meu coração. Entregando tudo que tinha dentro de mim. Mas, esse é o problema dos românticos, eles não veem as falhas de caráter. Eles não presumem que a pessoa amada tenha defeitos. E eu não presumia isso. Eu acreditava que Ania poderia ser perfeita. Um anjo. E não era nada disso. Ela queria muito mais do que eu tinha a oferecer. Queria luxo, joias, bailes. E eu era um simples médico. A fortuna estava nas mãos de Jasper. Não nas minhas. Ela parecia arrependida, muito irritada comigo. Pois, eu sempre fui um homem recluso, de não participar da sociedade e seus bailes intermináveis. Eu estava sempre estudando e trabalhando. Não era algo agradável para uma jovem senhora. Ela queria emoção e eu não tinha como dar isso a ela. Nosso casamento foi se desgastando. E Ania parecia buscar uma forma de ter minha atenção, exigindo minha presença. Até que ela se cansou.

— Ela o deixou? – Anne perguntou, triste pela situação dele.

Ele a fitou, com o maxilar retesado.

— Ó, não. Fez pior – ele respondeu, com raiva – Ela me humilhou, desfilando com seu amante. O conde Carlisle. Eu estava resignado a ir para um baile de verão com ela, na mansão de Carlisle. Ela disse que eu não precisava ir. Mas, eu queria, pois desejava agradá-la. Havia me empenhado para comprar uma joia para ela. Um anel de diamante. Fiz isso com tanto empenho. E havia conseguido. Deixei minha pesquisa de lado, sobre a cólera, pois isso tem assombrado a todos nós e estava fazendo essa pesquisa em conjunto a comunidade cientifica. Eu só vivia para isso, para meu trabalho e eu pensei: um dia sem trabalhar não me custara nada. Queria vê-la sorrir e que nós pudéssemos nos entender. E lá estava eu, um tolo apaixonado, carregando uma caixinha de veludo negro, dentro do bolso e entrando na mansão de Carlisle. Eu procurei minha esposa, sem encontrá-la entre os convidados. Até que algo se formou em minha mente. Uma desconfiança latente, que me perseguia há algum tempo, depois que Ania desistiu de me levar aos eventos tediosos. Ela estava calma demais. E eu comecei a pensar que algo estava errado. E para piorar minha desconfiança, meu primo, Robert, lorde Klyne, me disse que a tinha visto subir apressada para o andar de cima, com um convidado. Eu fervi de raiva. Já estava bem claro o que estaria acontecendo. Robert me seguiu, tentando me fazer ver a razão. Disse que eu deveria conversar com ela depois, mas eu continuei vasculhando cada sala, cada aposento. E a encontrei na sala de música de Carlisle. Ele a tinha reclinado sobre o piano e os dois estavam...- ele apertou os lábios, soltando um grunhido. Anne se sentiu envergonhada e horrorizada por ele – Bom, eu esbravejei e a chamei de todos os nomes horríveis. Carlisle e eu nos desentendemos e eu o esmurrei, mas também apanhei vergonhosamente. Eu fui covarde, Anne. Eu...nem o desafiei para um duelo. Fui motivo de piada. Robert foi o único que ficou do meu lado, fora meu irmão. E eu pedi a anulação do casamento. Ela implorou para que eu não fizesse isso, mas eu não queria olhá-la. Eu não queria tê-la perto de mim. Eu seria capaz de esganá-la. E consegui, devido ao meu irmão e primo, que pagaram as despesas. Eu me sinto em dívida com eles, pois foram os únicos que não debocharam de mim. Que não disseram coisas horríveis pelas minhas costas e o quanto minha esposa era uma rameira. E ela se tornou amante de Carlisle, pois não tinha como voltar para sua família. Ninguém a queria.

Ele ficou em silêncio, apertando os punhos. Olhando para baixo, como se estivesse ainda vendo o passado. Como se estivesse vendo sua esposa.

— Eu sinto muito – ela disse, colocando a mão no ombro dele – Você a viu depois de tudo?

— Ó, não. Eu só sei que ela foi para França, com um visconde, amigo de Carlisle. Ele achou que ela tinha voltado para mim. Parecia um homem enlouquecido. Eu ri disso. Eu me senti vingado – ele disse, com amargurada – Eu me senti um homem horrível também por desejar que ele sofresse o mesmo que eu. E agora, com Erik, eu penso que posso ter uma família. Eu não quero me casar de novo, Anne. Eu não posso suportar a infidelidade e a mentira. Mas, não quero a solidão. Eu temo ficar só. Eu...eu temo a mim mesmo, quando estou sozinho. Temo a minha raiva e o passado. Mas, eu não posso entregar meu coração a uma mulher. Por isso, Erik chegou no momento certo. Ele agora é minha família, além daqueles que trabalham para mim.

— Você ainda a ama? – Anne perguntou, pesarosa. Sentia a dor dele e queria confortá-lo. Retirar todo seu sofrimento. Mas, como poderia fazer isso?

— Não sei – ele respondeu, a fitando com um olhar intenso – Eu não quero pensar no que sinto, também. Eu não quero ter mais essas emoções. Não mais.

Ela entendia o que era isso. Ele estava fechado para o mundo. Temia ser traído de novo. Anne também se sentia um pouco traída por Thomas, iludida por suas falsas promessas. Ela entendia que Collins queria se fechar e nunca mais dar seu coração a ninguém pelo fato de ter sofrido demais.

— Eu o entendo – ela murmurou.

— Entende? – ele perguntou, amargo – Alguém já quebrou sua confiança e pisoteou em seu coração, como se não fosse nada? Duvido muito. Mulheres não sente o menor remorso. Só nos usam até que não tenhamos mais serventia.

Anne ficou quente de indignação, se levantando.

— O senhor não sabe nada de mim. Não sabe o que passei para falar comigo dessa maneira tão pouco cortes. Eu poderia dizer o mesmo dos homens. Seres egoístas que só se preocupam com seu próprio prazer.

Ele se levantou também, respirando ruidosamente.

— Você não deveria dizer, não depois do que eu lhe disse. Mas, fingiu me entender, não é? Parecia tão avida em me agradar. Todos dizem que sabem sobre minha dor, mas só me olham com pena. Está com pena de mim, Anne? Por isso resolveu dizer que entende? – ele se aproximou dela, com um olhar intenso, muito diferente da doçura que tinha antes.

Ela se sentiu abalada pela proximidade. Não sabia como respirar e nem interpretar o olhar dele. Parecia sarcástico e cruel.

— Não estou com pena de você – ela respondeu, com a voz tremula – Eu não estou dizendo que entendo apenas por dizer. Eu não...

Ela respirou fundo, se sentindo confusa e deu as costas a ele.

— Vai fugir, Anne? – ele perguntou, irônico – Vai fugir e não dizer o que pensa?

Ela se virou mais uma vez, indignada.

— O que deu em você? – ela perguntou, irritada – O senhor pode estar ferido, mas não precisa me ferir. Não precisa ser dessa maneira.

Ele piscou algumas vezes e respirou fundo. Passou a mão na nuca e parecia desconfortável. Ela pensou que ele poderia ficar muito, que ela não sentiria pena e remorso por repreendê-lo. Se afastou, em passadas largas, voltando para a casa.

 

 


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