A Música Que Nos Une escrita por Aline Lupin


Capítulo 8
Capítulo 7




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Anne se trancou no quarto e não saiu, nem para jantar, quando a Sra. Hackney a chamou. Alegou estar com dor de cabeça, mas na verdade estava furiosa com Collins. Por que ele tinha que ser tão mal-educado e a tratado com tanta descortesia? Ela não fizera nada para ele. Mas, logo sua própria indignação passou e ela entendeu seu ponto. Ele lembrou do passado e isso o deixou sensível. Queria descontar sua raiva pela esposa na primeira pessoa que estivesse a sua frente. Ele estava ferido. Seu ego havia sido estraçalhado. Ela não poderia culpá-lo. Estava desconfiada também dos homens. E das suas promessas vazias. Thomas sempre fizera promessas que nunca cumprira e a deixara sozinha para enfrentar as consequências. Ela entendia Collins, pois os dois estavam machucados em iguais proporções. Não poderia culpá-lo por estar tão raivoso, como um cão maltratado, que ataca, pois tem medo de confiar e receber uma surra novamente.

Anne sentiu que estava mais calma e resolveu sair do quarto. Com uma vela, para iluminar seu caminho e levando consigo seu caderno, a pena e o tinteiro. A casa estava silenciosa e ela desejava encontrar algum lugar para apoiar seu caderno e continuar escrevendo. Sabia que havia um escritório na casa. Collins sempre deixava a porta aberta, sem receio de que alguém fosse entrar. Deveria ser um lugar livre para ela poder continuar a escrever. Precisava entregar aquela semana o manuscrito. Encontrou o escritório, no andar de baixo, depois da sala de estar e usou um candelabro que estava sobre a escrivaninha, para apoiar a vela. Começou a escrever e algo chamou sua atenção. Havia um diário aberto. Ela não deveria ler, mas não resistiu. Queria saber mais sobre Collins e sua vida. Ela pegou o diário de couro e aproximou a chama da vela, para ler melhor.

15 de outubro de 1853, Oxford, Inglaterra

 O que pode um homem fazer diante do inevitável? Eu as vezes me pergunto como a vida é perene e frágil. Meu paciente parecia muito bem no dia anterior, quando deixei seu leito. Mas, hoje recebo a notícia que ele veio a falecer. Isso é tão confuso...

Anne parou de ler, se sentindo mal por ler os pensamentos tão íntimos do seu empregador. Isso era quebra de confiança e se ele a contratou, era porque confiava nela. E agora, estava ali lendo algo que só dizia respeito a ele. Deixou o diário em cima da mesa, mas voltou a abri-lo, em uma página aleatória. Sua vontade de conhecê-lo era mais forte. 

26 de setembro de 1854, Londres, Inglaterra

Nunca vi uma criatura tão corajosa. Ela parece que não tem medo do meu sobrinho. O que a coloca como apta para enfrentar minha criança selvagem. E eu apreciei muito a franqueza dela. Parece ser uma mulher séria e sem futilidades. Acredito que se eu a roubar de Loreta, ela não fara caso...

Anne respirou fundo. Ele estava escrevendo sobre ela? Ó, meu Deus. Ele pensava nela, mesmo que fosse em termos profissionais. E isso era muito bom. As mãos dela tremiam e ela queria saber mais. Virou a página para uma outra data. Já no momento que estava na casa dele.

10 de outubro de 1854, Londres, Inglaterra

Pode alguém ser tão vivaz? Como a senhorita Williams conseguiu tirar Erik da sua apatia e selvageria? Eu já tinha tentado tantas vezes e ele apenas se negava a fazer o que eu pedia. Ele parecia grato, mas nunca queria fazer o que mandava.

Nenhuma governanta conseguiu lidar com ele e fugiam sem pensar duas vezes. Parece que Anne - eu nem deveria pensar nela nesses termos, mas penso assim agora - conseguiu sua confiança. Conseguiu tirá-lo do quarto. Ela é doce e maternal. Talvez, seja isso. Talvez, Erik precise de uma mãe. Mas, eu não me casaria de novo, nem morto. Preciso compensar Anne e mostrar ela que preciso dela. E como preciso. Vê-la todos os dias é como ter o sol novamente, depois de dias nublados e chuvosos. Anne é como uma brisa cálida sobre a pele, acalmando as incertezas. Anne...Eu preciso parar de pensar nela nesses termos.

Ela sentiu o coração dar cambalhotas. Sua respiração estava entrecortada. Deixou o diário do mesmo lugar, se sentindo atordoada. Se levantou da cadeira e viu a sombra de alguém passando e voltando a porta. Naquele momento ela sabia que não deveria estar ali. Por favor, por favor, que seja a Sra. Hackney, por favor, Deus. Alguém entrou no cômodo e ela se deparou com Collins. Tentou imprimir o máximo de calma possível. Ela iria tentar se explicar, se conseguindo arranjar uma desculpa perfeita pra estar ali. E claro, fingir que nunca leu os pensamentos mais íntimos dele. 

— O que faz aqui? – ele perguntou, ríspido.

— Perdão, meu senhor. Eu queria um lugar para escrever e...

Ela estava tremendo e não conseguiu terminar a frase. Ele se aproximou, em passadas largas, olhando a escrivaninha. Ela não sabia o que ele viu, mas parecia ter relaxado.

— É claro – ele disse, pegando o diário – Pode usar o escritório quando quiser. Só peço que não mexa nas gavetas, sim? – ela anuiu, se sentindo culpada. Não mexeu nas gavetas, fez pior, abriu o diário dele – Pode pegar livros, se desejar, também.

— É muito gentil, senhor – ela disse, com os olhos baixos.

O silêncio parecia incomodar os ouvidos dela. Não sabia mais o que dizer a ele. Respirar parecia impossível agora, ainda mais por ter lido os pensamentos dele. Soube o que estava na mente dele. E constatou que ele estava em sua mente constantemente. Inclusive seus olhos azuis, quase cinza. Eram tão bonitos e sinceros... Foco, Anne, foco.

— A senhorita está escrevendo para alguém? – ele perguntou, olhando para o caderno dela.

Ela tampou com a mão, se sentindo envergonhada. Não queria que ele soubesse que ela era aspirante a escritora.

— São só bobagens – ela respondeu, sem graça.

Ele pode ver um sorriso se formar em seu rosto, mesmo que as chamas da vela não favorecem a visão do rosto dele.

— Eu entendo de bobagens – ele disse, com humor, apesar de parecer cauteloso – Eu também escrevo, para me sentir melhor. Esvazio minha mente, sabe? – Ela anuiu. Sabia muito bem e havia lido alguns dos pensamentos dele, pensamentos impróprios sobre ela – Isso ajuda a organizar uma mente ansiosa. E me faz trabalhar melhor. Você faz por isso? Escreve um diário?

— Não é exatamente um diário – ela respondeu, se sentindo mais segura – É mais uma história.

— Uma história – ele repetiu – Interessante. Gosta de romances?

— Gosto – ela respondeu, prontamente.

— E na sua história tem um final feliz? – ele perguntou. Ela não sabia se as perguntas dele eram por educação ou outra coisa.

— Não decidi ainda – ela não sabia se sua heroína iria encontrar seu final feliz com o barão. Ele era um vilão, mas não havia ninguém para resgatá-la. Ela teria que encontrar seu caminho sozinha, bem longe dele.

— Espero que tenha, pois a vida já é miserável o suficiente – ele disse, com humor, mas parecia soturno.

— Mas, o senhor não vai ler o que eu escrevi e então não tem que se preocupar – ela retrucou, irritada. Ninguém diria com seria feito seu trabalho.

— Ah, mas eu adoraria ler – ele provocou, puxando o caderno da mão dela com sua mão livre. Ela abriu a boca para protestar, mas ele a interrompeu – Ó, não fique irritada. Eu prometo que devolvo logo. Quero saber mais sobre você, Anne.

— Devolva agora – ela exigiu, sentindo-se encolerizada.

— Não. Você leu meu diário e agora eu tenho o direito de ler o que você escreveu. Um capítulo? – ele barganhou.

Ela cruzou os braços, tentando se fingir ofendida.

— Eu não li...eu...

— Ah, não minta. Eu vi da porta – ele disse, com um ar soturno – Não gosto de mentiras. Admite que leu? – ela anuiu, tremula – Ótimo, agora é minha vez de ler algo seu – ela soltou um muxoxo – Nada mais justo Anne, querida. Um capítulo. Lerei na sua frente.

— Por favor, não ria de mim – ela pediu, receosa.

— Eu jamais riria de ti. E espero que não me ache um tolo pelo que escrevi.

— Eu jamais pensaria isso – ela disse, com humor.

— Ótimo, pois eu as vezes me porto como um tolo romântico – ele disse, irônico. E contornou a mesa, ficando ao lado dela – Posso me sentar?

Ela se afastou abruptamente e por pouco não derrubou a vela. Ele riu. E sua risada era melódica. Ele parecia à vontade com ela. Abriu o caderno e começou a ler. Parecia que um tempo muito maior se passou e ela viu por cima do ombro que ele estava no capítulo dois.

— Ei, está trapaceando – ela disse, tentando pegar o caderno dele por cima do ombro, mas a outro mão dele a agarrou. Ela ficou muito próxima dele, de um jeito desconcertante e íntimo.

— Eu gostei do que li – ele disse, com a voz profunda – Gostaria de continuar.

— Não, você não pode...você... – ela segurou o ar, quando ele aproximou o rosto do dela.

— Eu deixo você ler algo meu, Anne. Por favor – ele pediu, em súplica – Esse livro parece ser um romance gótico muito cruel e triste. Mas, sinto que a heroína vai ser feliz e sair das garras do barão.

— Não presuma o final – ela advertiu – Eu ainda não sei se será assim.

— Pois, deveria. Ela merece isso – ele argumentou – Não pode ser tão cruel assim.

A mão dele acariciou o dorso dela e o sopro da sua respiração tocou a face dela, a fazendo estremecer.

— A vida não é justa. Não posso colocar um final tão bom assim – ela sussurrou.

A mão que segurava o caderno baixou e ele levou-a até o pescoço dela, a tocando. Ela suspirou de prazer pelo toque.

— A vida pode ser uma sucessão de infortúnios, mas podemos adoçá-la na escrita – ele aproximou os lábios do dela, sem tocar – E pode ser como uma comédia de Shakespeare. Não precisa ser tão sangrenta.

Ela riu. Não sabia como Collins podia ser tão intenso e engraçado ao mesmo tempo. Notou que estava muito próxima dele. Sua outra mão esticou, roubando o caderno e ela se afastou com rapidez.

— Ora, sua ratinha – ele disse, brincalhão – Estava tentando me distrair?

Ele se levantou e ficou bem próximo dela, a fazendo recuar para perto de uma estante.

— Pode ser que sim – ela disse, o provocando.

— Eu vou ter esse caderno comigo, mais cedo ou mais tarde – disse com um tom ameaçador, mas com humor – E você vai escrever um final digno.

Ele apoiou a mão sobre a estante, bloqueando a saída dela. Ela estava entre a parede e o braço dele.

— Não conte com isso, senhor – ela revidou, com um olhar feroz.

— Vejo que a senhorita não é tão frágil assim – a mão dele tocou o rosto dela, enviando arrepio por todo o corpo dela – E é isso que me fascina em você, Anne. Você é forte e destemida. É como uma pedra bruta, mas reluz mesmo assim. É preciosa demais.

Ele aproximou mais o rosto dela, ficando centímetros dos lábios dela. Ela sentiu que ele ia beijá-la e estava apavorada. Apavorada de querê-lo muito. De deixá-lo entrar em sua vida, em sua mente e em seu coração. Depois ter seu coração quebrado e ficar sozinha novamente. Ela se encolheu e passou por baixo do braço dele, saindo em disparado. Escutou ele a chamar, mas não ficou para conversar. Estava sem a vela e teve dificuldade para enxergar, mas conseguiu subir as escadas e se trancar em seu quarto. Largou o caderno no chão e se deitou na cama. O coração dela martelava dentro do peito. O que estava acontecendo consigo? Não poderia estar se apaixonando tão rapidamente? Ó, não mesmo. Ela não iria permitir isso. Trataria ele com cordialidade, sem demonstrar amizade. Seria uma governanta austera. E ele não iria tocar em seu coração. Ninguém iria. Nunca mais.


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