1812 — Interativa escrita por Holtzmann


Capítulo 5
Capítulo III


Notas iniciais do capítulo

Olá! Como vocês estão? Espero que bem! :D
Cheguei eu aqui com mais um capítulo ( e mais um aviso ) para dar a vocês. Primeiro, eu gostaria de agradecer a todo mundo que enviou as fichas. Nem todas foram aceitas, mas ver o desejo de vocês de participarem deixou meu coração bem quentinho. Àquelas que não ficaram na peneira final, especialmente, é para quem eu deixo meu muito obrigada! Quem sabe da próxima não podemos trabalhar juntas? Para aquelas que foram aceitas, aqui está um capítulo novinho em folha, com a introdução de duas das chars! No próximo teremos a introdução das outras duas, e admito que estava planejando algo bem introdutório mesmo, mais descrições que interações, mas acabei mudando de ideia no meio do caminho.
É, essa sou eu, vão se acostumando que a autora aqui é a rainha da indecisão, haha
Enfim, não vou mais prender vocês aqui! Uma boa leitura ( e se puderem dêem uma entradinha no tumblr que lá eu postarei uns edits das chars que foram apresentadas nesse capítulo )
Um xêro!



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Londres, 1812

 

Não era possível que houvesse algo pior do que nascer mulher.

Era o que pensava Isabella de Ortiz, com descarada autopiedade, enquanto olhava o salão à sua frente, da posição pouco privilegiada que era estar ao lado da mesa de bebidas. A não ser talvez que a mulher tivesse a sorte de dispor de uma rotina movimentada, repleta de atividades que lhe preenchessem a alma e o espírito de prazer e deleite. Ou então se tivesse liberdade para fazer mais que apenas sentar no sofá de sua sala privada, costurando ou enchendo seu pequeno estômago de bebidas insípidas como chá e alimentando seu cérebro com algo mais que não fosse a nova tendência de cores para a estação vindoura, ou o último dos infindáveis – embora tediosamente repetitivos – escândalos que despontavam no núcleo da sociedade aristocrata ocasionalmente.

Mas este, infelizmente, não era o caso de Isabella. Talvez ela devesse encontrar certo ânimo na percepção de que a temporada social estava às portas, de maneira que Londres logo estaria fervilhando com aqueles que retornavam de suas propriedades rurais afim de comparecer ao frenesi político e social que se desenrolaria enquanto o parlamento estivesse ativo. O resto do ano era sempre notavelmente parado, a um nível praticamente insuportável. Mas após tantas temporadas já vivenciadas, a perspectiva não tinha mais o encanto nem vinha acompanhado da onda de empolgação de antes. Não para ela.

Todos os nobres ingleses, mesmo aqueles que já eram mais velhos, nunca pareciam enjoar daquele período festivo anual. Todos estavam sempre infinitamente ansiosos e cheios de ideias e preparativos para os meses que se seguiriam. A própria mãe de Isa criara um planejamento que era seguido rigorosamente todos os anos, em que ambas passavam dias mergulhadas no importantíssimo dever de comprar tudo o que havia no mundo. Ou era o que parecia para a jovem. Espartilhos, roupa íntima, camisolas, meias, sapatos, chapéus, luvas, ligas, sombrinhas, bolsas leques, capas, spencers, entre outras coisas. E, claro, havia os vestidos, que eram divididos em duas categorias; havia aqueles que já estavam prontos e que precisavam apenas de pequenos ajustes, e havia aqueles feitos sob medida, que eram entregues às portas da casa de sua família na Queen’s Road, afim de substituir a leva do ano anterior que embora não tivesse se tornado obsoleta ou tampouco feia deveria ser descartada pois já não atendia aos padrões de moda atuais.

Isabella não gostava particularmente dessas saídas. Não que ela não gostasse de fazer compras – que mulher não apreciava comprar acessórios e roupas que a fizessem se sentir bonita? Mas sabia que aquilo era somente mais um esforço de sua mãe de sentir-se – e parecer – mais como uma mulher inglesa. E a filha não acreditava que poderia fazer o mesmo. Não achava nem mesmo que queria isso, embora sempre a acompanhasse afim de dá-la o apoio moral necessário. E evitar reprimendas desnecessárias que certamente viriam caso se recusasse a colaborar.

A verdade era que Isabella não era uma dama inglesa, em essência, embora tivesse vivido a esmagadora maior parte de sua curta vida nas terras frias de George III. Sua verdadeira terra – aquela que a dera o sangue quente que corria em suas veias, assim como os traços que a faziam destacar-se nas ruas minuciosamente pavimentadas e apáticas de Londres – estava distante dela. E, por não ser uma dama inglesa, ainda que se vestisse, falasse e esforçasse-se para se portar como uma, a sociedade inglesa não a aceitava como parte interina de si.

O pior de tudo é que tampouco poderia ser considerada completamente espanhola. Para o bem ou para o mal, crescera e fora criada na Inglaterra. Ainda que a Inglaterra não a aceitasse, a Espanha tampouco o faria.

Franziu o próprio nariz. Talvez estivesse sendo demasiado vitimista. Mas aquele era um fato. Pela simples noção de que, caso cortassem seus pulsos, o sangue que escorreria dali não seria azul, a aristocracia inglesa não a considerava parte íntegra de seu meio. Embora sua grande e agora fragmentada família tivesse relações com a monarquia espanhola, e embora seu pai fosse um comerciante tão rico como Creso e tivesse dado a sua família a oportunidade de viver como cavalheiros e damas nos mesmos âmbitos sociais que os branquelos de nariz empinado e sotaque ridículo.

Em sua primeira temporada social, Isabella fora uma atração. Uma picante novidade que, embora escandalosa e inapropriada, despertava curiosidade. Curiosidade de ver como se portaria na bolha que era o mundinho sofisticado daquela laia; Ah, como seria engraçado se tivesse os modos e a aparência de uma camponesa especialmente animada com sotaque torto e a inteligência de uma porta! Se o tom de sua pele significasse que ela lutaria pateticamente para se encaixar, passando pó de arroz nas bochechas até que parecesse um fantasma, desesperada pela aprovação de seus olhares críticos e minuciosos! Infelizmente, Isabella tivera de decepcioná-los nesse aspecto. Fora uma atração do melhor tipo; Desafiadora e intrigante.

Mais interessante que ela, é claro, fora só o gordo dote do qual dispunha.

Contudo, à medida que os anos foram se passando e pareceu cada vez menos provável que um daqueles cavalheiros conquistasse para si aquela bela quantia, e a moça que convenientemente viria junto, Isa deixou de ser intrigante no bom sentido do termo. E passou a ser somente a estrangeira cuja família burguesa intrusa sentira-se no direito de enfiar-se naquele meio ao qual evidentemente não pertenciam e nunca pertenceriam simplesmente pois tinham dinheiro para comprar aquele direito. De modo que os convites para os extasiantes eventos que eram organizados, que já não eram muitos se comparados aqueles que certamente as outras jovens recebiam, foram escasseando-se até tornarem-se quase que completamente inexistentes.

Não. A temporada social não significava para Isa qualquer mudança no estado de inquietação latente que andava perpetuando seus dias. E, embora aquilo tivesse um forte tom de ingratidão, a vida tinha se tornado quase um aborrecimento. Aquela não era uma vida na qual conseguia encaixar-se completamente. Não era um estilo que a envolvia ou preenchia seus anseios, embora nem ela soubesse o que, afinal, ansiava. Isabella sentia-se quase culpada por sentir-se desse modo, considerando que, como sua mãe a lembrava com certa constância religiosa, muitas moças dariam tudo para ter uma vida como a dela.

Mas não conseguia sentir-se de outra maneira. Quem dera conseguisse.

Estava se virando para a mesa afim de pegar o segundo copo de limonada da noite quando uma voz conhecida a fez parar de imediato.

— Ora, Isa, está tentando se esconder?

A jovem ergueu os olhos para ver o irmão do meio caminhando em sua direção. Pedro, não Peter – Isabella preferia chamar os irmãos por seus nomes espanhóis – carregava um leve sorriso enviesado no rosto. Ele era estupidamente bonito, com sua pele amendoada e os olhos e cabelo muito escuros que eram a marca da família deles. Bonito demais para o próprio bem, sua mãe costumava dizer, com um suspiro desaprovador, e para o bem de qualquer dama com intenções honradas. Mamá dizia que era um caso perdido, um libertino sem cura...

Mas Isa o adorava.

— Ah, Pedro! — Isa exclamou, jogando os braços ao redor de seu irmão. — Não imaginei que você estaria aqui.

Mamá. — ele respondeu, exasperado.

— Ah. — ela suspirou, dando um aceno solidário com a cabeça.

De fato, a temporada social não significava para Isa qualquer mudança no estado de inquietação latente que andava perpetuando seus dias. Mas isso não significava que ela – ou, aparentemente, qualquer membro de sua família –  podia escapar da força da natureza que era Isabel de Ortiz. Especialmente quando esta força era alimentada por um dos raríssimos convites diretos que a família recebia em tempos. Isabella passara a primeira hora inteira sentada, tomando um belíssimo chá de cadeira, embora houvesse um jovem cavalheiro sentado bem próximo a ela, e nenhuma outra dama nas proximidades. Passara a hora inteira trocando olhares furtivos e mal-humorados com o sujeito mal-educado, que certamente a ignorava deliberadamente, até cansar-se e levantar-se para pegar uma limonada. Ou então suspeitava que iria na direção da criatura e diria algo que sua mãe desaprovaria.

Ainda estava irritada quando Pedro a abordara.

— Ela me montou uma lista de esposas em potencial. — seu irmão falou, lançando um olhar desesperado para ela. — Tem certeza que nós a amamos?

Isabella engasgou com a risada, colocando o punho enluvado na frente dos lábios para tentar disfarçar.

— Sim, Pedro, nós a amamos.

— Ela está envelhecendo e ficando cada vez menos sã. — ele resmungou. — Só pode ser isso. Não existe outra explicação. Ela era uma mãe perfeitamente razoável até a sua primeira temporada.

— Eu?! Então a culpa é minha?

— Sim, porque se você tivesse aceitado algum dos pedidos de casamento feitos a você ela estaria mais tranquila.

A jovem riu, mas deu um beliscão no braço do irmão logo depois.

— Ai!

— Você sabe porque eu não aceitei nenhum.

— Eu sei. Mas isso não muda os fatos. — Pedro suspirou com um melodrama exagerado. — Onde está a sua lista?

Mamá desistiu de me dar outra, desde que eu rejeitei todos os cavalheiros da primeira e da segunda que ela me deu. Até hoje me dá broncas por ter espantado eles.

Pedro pareceu que ia dizer algo, mas viu alguma coisa no salão atrás dela que tirou sua atenção:

— Ah, falando no diabo...

Isabella se virou lentamente para ver sua mãe marchando na direção dos dois. Parecia muito decidida. O que em nenhum contexto era algo bom, não para seus filhos.

— Bella! — ela chamou, num leve tom de repreensão. Levou o lornhão aos olhos, embora sua vista fosse perfeita. O acessório tinha se tornado moda no círculo das senhoras mais velhas no último ano. — O que está fazendo aqui? Eu estava procurando você. Venha, tenho alguém para lhe apresentar.

— Mais um para a lista? — Pedro olhou a irmã com um sorriso conspiratório.

Lady Ortiz olhou feio para o filho.

— Peter Ortiz, eu não gosto...

— Do meu tom, eu sei, mamá. — o rapaz riu. — Mas a senhora me ama.

— Amo, não é? — a mulher mais velha suspirou, balançando a cabeça como se estivesse lidando com uma criança especialmente problemática. Mas havia carinho no seu tom de voz.

— É a maldição da maternidade. A senhora precisa nos amar mesmo quando nós a irritamos. — ele concluiu. Então lhe deu um beijo estalado na bochecha. — Eu estou indo. Leve Isa para ver seu próximo pretendente. Quem sabe esse não é mais bem sucedido que o resto.

 Enquanto ele se afastava, Isabella soletrou silenciosamente a palavra “traidor” em sua direção. Por sorte sua mãe não conseguiu notar, pois já estava ocupada demais levando-a para o meio do salão, atravessando o mar de pessoas... Que olhavam-nas de um modo torto, ao qual Isabella já adaptara-se. Ainda que se adaptar não fosse estar completamente imune. A jovem espanhola manteve o queixo erguido e seguiu os passos da mãe de maneira irreverente. Para sua consternação, eles as guiavam até Lady Florence Haylock.

Lady Haylock era a anfitriã do sarau em que estavam. Uma verdadeira lenda na sociedade inglesa. Ela era mais velha que todos os mais velhos. Diziam que era tia ou avó de metade de Mayfair. Isabella nunca se vira de frente a uma mulher tão intimidante. Suspeitava que, caso o próprio diabo invadisse seu quarto à noite, seria ele quem fugiria aterrorizado. Mas, ao mesmo tempo, tinha certa admiração por ela. Ela era uma das poucas pessoas no meio da aristocracia que não se importava nem um pouco com a opinião dos outros sobre si – se se importasse, dificilmente teria feito um convite direto à família Ortiz.

A senhora atormentava um homem em específico. O sujeito era alto, imponente e emanava um ar ligeiramente ameaçador, embora estivesse claramente encurralado como um filhote de cervo diante do caçador. Tinha uma expressão severa nas feições marcadas, acentuadas pelas sobrancelhas e cabelos escuros. Mas eram seus olhos que se destacavam; eram de um azul gélido. Não, glacial. Havia algo de perturbador naqueles olhos, algo que não permitia que Isabella os olhasse diretamente por muito tempo.

Seria bonito, se não parecesse cruel.

Todos cumprimentaram-se muito educadamente. Lady Haylock apresentou-o como o novo Duque de Barclay. Após um ou dois minutos, ficou mais que evidente qual era a intenção das duas senhoras mais velhas ao apresenta-los.

O Duque pareceu tão consternado com a situação quanto a própria Bella, embora esta segunda já estivesse quase calejada de ser posta naquele tipo de enlace. Mas mesmo ele parecia reconhecer que não havia forma de escapar das garras de Lady Haylock. Quer dizer, havia uma única forma. E ele deveria estar ansioso para fugir, pois recorreu rapidamente a ela:

— Gostaria de uma bebida, Senhorita Ortiz? — em seu tom inflexível, pareceu muito mais uma ordem que um convite.

Isabella passara a última meia hora agarrada à mesa de bebidas. E não desejava passar se quer um minuto a mais na presença daquele homem que a olhava como se fosse uma pedra em seu sapato. Mas decidiu confiar no pressentimento que teve quanto ao convite feito por ele.

— É claro que sim, Sua Graça. Estou morrendo de sede.

Envolveu o braço que lhe foi oferecido. Como previa, o homem a levou através da pequena multidão de seletos convidados, nada tão populoso como realmente seria em outros saraus, e desta vez Isabella permitiu-se saborear por um breve momento dos olhares que recebia. Pois aquela era uma das poucas vezes em que não a julgavam, mas que a invejavam. Infeliz – ou felizmente – seu breve momento de glória findou-se no momento em que pararam ao lado da mesa de bebidas.

— Senhorita. — o Duque acenou educadamente com a cabeça.

— Sua Graça. Muito obrigada por nos salvar. — falou. Mas ele já se virara e fora embora. Ela teria ofendido-se com sua má postura, se não estivesse tão aliviada de sair de sua presença.

Na oportunidade seguinte que obteve, fugiu para os jardins. Talvez aquele fosse um esconderijo mais eficiente que a mesa para bebidas. Com sorte, Isabella conseguiria abrigar-se ali, na meia-luz, até que o sarau tivesse um fim e então ela pudesse simplesmente levantar-se para entrar na carruagem e ir embora. Estava aborrecida, pois detestava quando a mãe punha-se no papel de casamenteira, ainda que soubesse que ela o fazia por se importar. Pensou que ficaria feliz em fazer isso. Na verdade, pensou que ficaria muito feliz se pudesse escapar de Londres nas próximas semanas. Talvez Francesca aceitasse acomodá-la por alguns dias em sua casa em Somerset; Henrique já estava lá há uma semana.

Talvez aquilo fosse tudo o que precisasse; estar rodeada pela natureza, cavalgar energicamente pelos campos de Hartfield, fazer um piquenique à beira do rio com as pessoas que mais amava. Não que não amasse seus pais ou seus irmãos; mas convivia o tempo todo com eles. Talvez precisasse somente de umas férias temporárias de sua rotina. Então aquela inquietação exasperadora a abandonaria.

Já imaginava que palavras poria na carta que escreveria à prima no momento em que retornasse para casa, quando apercebeu-se de que não estava sozinha. Ainda estava no terraço, apoiada na mureta que o separava do gramado do jardim propriamente dito. Desceu o pequeno degrau que os separava. Outras pessoas, interessadas em tomar um pouco de ar ou somente em encontrar um esconderijo para onde fugir dos olhares intrometidos dos convidados no salão, circulavam vagarosamente pelos caminhos de cascalho iluminados parcialmente pela lua.

Na meia-luz, Isabella demorara a nota-lo. Mas agora o via: o mesmo sujeito que encontrara mais cedo, aquele que se negara a todo custo a tirá-la para dançar, embora isto fosse o que todo cavalheiro minimamente educado teria feito. Permanecia sentado rigidamente, como antes, um pouco à sua direita, num banco de pedra próximo à mureta. A visão de seu cabelo castanho-escuro deixou-a ainda mais irritada do que estava. Mas quando estava prestes a virar as costas e seguir em outra direção, para escapar despercebida, ele notou-a.

Pareceu ligeiramente espantado por sua aparição repentina. Mas, mais que isso, parecia tenso. A cabeça estava afundada nos ombros, e sua boca era uma linha dura. Quando a reconheceu, seu semblante foi tomado também de impaciência.

— Madame. — murmurou, rigidamente.

— Senhor. — ela respondeu, à contragosto. Esperou que ele dissesse algo ou completasse seu cumprimento, afim de que ela pudesse estar novamente livre para fugir. Mas ele não fez nada, só continuou-a encarando como se fosse a última pessoa no mundo que quisesse encontrar.

— Deveria estar no salão, rodopiando futilmente sua seda colorida, não? — indagou rispidamente, por fim.

Isabella mordeu a própria língua, desacreditada com tamanha rudeza. As pessoas nem sempre a tratavam excepcionalmente bem, era verdade. Mas havia algo na educação dos ingleses que os impedia de ser explicitamente desagradáveis, pois aquilo seria indelicado. Não parecia ser o caso daquele sujeito, obviamente.

— Dificilmente poderia dançar, senhor, se ninguém me convidasse para fazê-lo. — respondeu, num tom de falsa doçura.

Ele arqueou as sobrancelhas, indulgente.

— Também precisa ser convidada para ir embora?

Ah, não. Isabella não gostava quando corrigiam sua própria postura, mas sentiu um prazer cruel em cruzar os braços do modo como sua mãe fazia ao reclamar com ela:

— E isto é maneira de um cavalheiro tratar uma dama? Me diga, senhor, não mereço que se levante nem para me fazer uma mesura?

Ele olhou-a, visivelmente consternado. Então disse, praticamente entredentes:

— Não posso, madame.

— Não pode? — Isabella deu uma risada desacreditada. — Pois não sou de nascimento inglês, senhor? Este é o problema?

O olhar dele mudou, e agora a encarava como se ela fosse uma completa idiota. Disse as palavras seguintes lentamente, como se estivesse fazendo um grande esforço para não perder a calma:

— Você não compreendeu, eu não posso... — uma de suas mãos tocou discretamente um objeto que ela até então não vira, encostado ao seu lado. Um cabo de madeira com um estranho apoio na ponta de cima.

Quando ela reconheceu o formato da muleta, quis morrer. Não havia como descrever o sentimento de modo mais preciso que este. Primeiro, ela sentiu uma forte onda de vergonha. Seu rosto se incendiou, e ela ficou contente por estar contra a luz, de modo que provavelmente isso não foi notável para o sujeito. Então, em seguida, foi tomada por um terrível remorso. Ficou muda, por um momento, incapaz de dizer qualquer coisa.

Então percebeu como o homem estava pálido. Não aquela palidez natural dos ingleses. Seu rosto estava numa tonalidade branca pastosa. Ele permanecia encolhido, os músculos do corpo e do rosto completamente tensos, como se estivesse no meio de algum sofrimento. Como se sentisse dor.

— O senhor... Está bem? — Isabella, por fim, conseguiu perguntar, acima da imensa vontade de enfiar o rosto num buraco que tinha dominado ela.

A resposta dele foi bufar audivelmente. Mas mesmo o gesto foi feito de um jeito trêmulo, como se ele mal suportasse exprimir seu próprio sarcasmo devidamente.

— Vá embora. — murmurou, muito baixo, a princípio. De modo que Isa não o ouviu. Quando se aproximou, intentando ouvi-lo com mais clareza, ele ergueu os olhos muito escuros, e seu rosto ficou totalmente visível. Só então ela notou como ele era jovem. Exclamou furiosamente: — Vá embora!

Ela recuou, quase tropeçando nas própria saias no ato. O jardim, que antes estava preenchido de murmúrios e sons noturnos agradáveis, pareceu de repente ficar em silêncio. Como se estivessem sozinhos. Ou como se todos os presentes tivessem parado para encarar a cena que se desenrolava. Isabella agarrou as próprias saias e fez a única coisa que a sua mente ainda entorpecida de constrangimento conseguiu fazer: Correu. Diminuiu o passo quando alcançou o terraço, mas quando atravessou as portas que a levaram de volta até o salão, seu ritmo ainda estava mais acelerado do que o ideal.

Só notou isso quando um braço se interpôs em seu caminho, fazendo-a parar bruscamente.

— Opa! Para onde está correndo, Isa? — Pedro, alheio à consternação dela, riu. — Mamá estava te procurando. Estamos indo embora. Ou você quer ficar e aproveitar um pouco mais?

— Não. — Isabella disse, de imediato, balançando vigorosamente a cabeça. Não havia nada que quisesse mais que colocar um fim naquela noite terrível. E, de preferência, não pisar em outro salão londrino por um longo período. — Por favor, vamos embora.

 

Na mesma noite, do outro lado da cidade

 

Beatrice Rodwell não quebrava regras.

Ao menos, não de maneira constante. E, definitivamente, não da maneira deliberada e inconsequente com a qual seu irmão era capaz de fazê-lo. Isso desde pequena. Mesmo que em sua tenra idade fosse uma menina especialmente enérgica e muito curiosa, sempre tinha apresentado um comportamento responsável e obediente. Um exemplo de educação impecável. O sonho de qualquer família inglesa para uma filha.

Mesmo o tempo que passara com sua avó na América não fora capaz de arrancar essa característica tão arraigada no seu cerne. Chegava até a ser um pouco desconcertante – definitivamente, vovó Marion achava exasperador. Normalmente não era algo que incomodava Beatrice; ela gostava de regras. Gostava de normas. E de padrões. E de segui-los. Embora, talvez... Nem todos.

Se adorasse tanto padrões, teria seguido o principal deles, que deveria regra-la desde seu nascimento. Teria crescido aprendendo etiqueta, música e línguas e estado plenamente satisfeita com isso. Seu maior sonho se limitaria a casar-se e a construir uma família, de preferência numa boa casa que poderia gerir e tomar conta para seu marido. Mas essa não era a realidade. Ela não tinha se contentado com essas coisas. Como poderia, quando seus irmãos tinham o direito de aprender e sonhar com coisas tão mais grandiosas?

Essa fora a razão que partira para a América, para começo de conversa. Seus pais não tinham ficado demasiado contentes com a ideia, mas ela fora mesmo assim. E lá lhe tinham sido abertas as portas de um mundo completamente diferente; um mundo onde a liberdade e igualdade não eram apenas palavras bonitas. É claro que lá ainda existiam amarras – ela duvidava veementemente que em algum lugar não houvesse ao menos algumas – mas elas não tinham sido nada perto das correntes que teriam a prendido e limitado se tivesse permanecido Inglaterra.

Beatrice costumava ser extremamente grata por não ter ficado em seu país de origem durante sua juventude. Costumava pensar que, se pudesse, jamais teria voltado. Teria ficado lá, na terra da liberdade, casado-se com Dylan e criado uma vida pela qual seria permanentemente apaixonada, que preencheria os anseios de sua mente, de seu coração e principalmente de sua alma.

Até o momento em que sua mãe morrera.

Não, ela não apreciava todos os padrões. Mas seguia a maioria, pois havia algo reconfortante nisso. Naquela noite, contudo, ela estava incomodada.

Por esta razão, repassara inúmeras vezes em mente o que estava prestes a fazer. Durante metade destas vezes chegara muito perto de desistir, mas durante a outra metade refletira no quão pareceria patética se o fizesse àquela altura, após confirmar e acertar tudo com Zachary. Pior: em seu mais profundo âmago, ela sabia que não queria desistir. Seu estômago retorcia-se com uma ansiedade que, embora tola, a fazia sentir-se como uma criança prestes a executar uma maldade infantil – dividida entre o remorso e a excitação irrefreada.

Obtivera um prazer quase perverso em jantar àquela noite, à mesa com sua família, como era hábito, trocando olhares furtivos e cúmplices com o irmão mais velho enquanto concentrava-se em tomar a sopa de cebola que havia sido preparada como entrada. Ocasionalmente lançava olhares a seu pai, o Visconde de Whitmore, sentado na ponta, e sempre que o fazia tinha de conter-se para não abrir um sorriso, vangloriando-se como uma tola pelo ato desobediente que se quer executara. Não ainda.

Ao menos tivera a decência de sentir-se minimamente envergonhada por este show de infantilidade, que estava longe de ser comum à sua pessoa. Embora não tenha sentido-se culpada. Prometera a si mesma que não se culparia por aquilo. E certamente não refletiria ou se importaria com o que o pai pensaria caso soubesse. Seria uma coisa muito deliberada, decidira. Não seria uma atitude impulsiva, nem tampouco infundada. Não seria algo pelo que sentiria culpa, algo que lamentaria. Era algo que queria e permitiria.

Não, nada tão passível como isso.

Seria algo pelo qual ela abdicaria de seu notável apego pelas normas. Umas curtas férias de sua natureza centrada e perfeitamente equilibrada. E ela as aproveitaria, com toda a ânsia e todo o prazer que sabia que obteria. Refletindo deste modo, parecia que estava prestes a cometer o mais vil dos pecados. Mas certamente Deus poderia perdoá-la por sair à noite sem companhia adequada, em direção a um evento completamente inadequado à sua classe e sexo. Não estava certa se acreditava em Deus. Mas, se ele existia, não achava que ele fosse misógino.

O pensamento absurdo fez um riso nervoso brotar do fundo de sua garganta. O pior passara, pois já conseguira sair – não, escapar— de casa, de uma forma que Zachary garantira que passara despercebida. Mas permanecia inexplicavelmente tensa. Mantinha as mãos unidas em seu colo, os dedos entrelaçados com tamanha força que seus nós estavam brancos. Talvez seu irmão tenha notado o fato, pois pôde vê-lo sorrir na meia-luz da carruagem:

— Pronta para implorar que o cocheiro dê a volta e retorne para casa, Triz? — Zachary indagou, seus olhos claros brilhando em evidente desafio.

— Jamais. — rebateu prontamente, empertigando-se ao fazê-lo.

— Lembre-se que ainda não é tarde demais para isto. A carruagem não parou.

Mas logo o faria. Beatrice apercebeu-se disso no momento em que o veículo virou uma esquina que o fez adentrar na Strand Street. Ela não conhecia a rua. Na verdade, não conhecia nada daquela ala de Londres. Sabia que não estavam no extremo leste da cidade. Mas tampouco estavam no extremo oeste, com o qual ela era perfeitamente acostumada. Estava longe dos domínios de Mayfair. Longe o suficiente para não ter qualquer senso de direcionamento, embora não longe o suficiente para correr perigo explícito.

A classe média não era um montante de bárbaros desprezíveis, embora esta fosse talvez a definição que a maioria dos nobres ingleses lhe dariam. Triz sabia que eram pessoas comuns, perfeitamente civilizadas. Apenas levavam vidas muito diferentes e – e ela era incapaz de segurar a onda de inveja que a dominava ao pensar nisso – definitivamente mais livres. Não estavam presos às amarradas do sufocante tradicionalismo inglês que, embora tivesse uma padronização tranquilizante em suas maneiras impecáveis, simultaneamente era extremamente limitante.

O ambiente era limitado. As pessoas eram limitadas. Suas vidas resumiam-se a uma série de frivolidades e caprichos – apenas viviam por ali, gastando seu dinheiro e vagando de um vício prazeroso a outro. Não utilizavam suas mentes para nada verdadeiramente útil. Não eram estúpidos; Tinham, em especial os homens, um vasto mundo de conhecimento a ser estudado e explorado – mas, talvez o que fosse pior: escolhiam por vontade própria negligenciar as amplas oportunidades que lhe eram abertas graças a isso. Negligenciavam um mundo inteiro que estava bem às suas portas, apenas esperando.

Talvez estivesse equivocando-se ao pensar de modo tão generalizado. Certamente deveriam haver exceções. Mas Beatrice infelizmente não tivera o prazer de conhece-las. De repente, sentiu-se extremamente empolgada. Naquela noite seria diferente. Estaria no meio de pessoas que usavam o conhecimento. Que não só o valorizavam, mas como o tinham como parte integral de suas vidas.

As rodas da carruagem finalmente pararam de girar. Beatrice começou a deslizar pelo banco no momento em que a porta começou a ser aberta por Edward, o valete de Zachary que concordara em fazer parte de sua arquitetada escapada noturna. Embora Beatrice ainda não compreendesse que papel desempenharia. Mas antes que alcançasse a pequena escada do veículo, sentiu seu irmão segurar seu braço firmemente.

Voltou-se em sua direção, surpreendendo-se ao ver um semblante completamente solene que era incomum a ele decorando seu rosto.

— Edward entrará com você e se misturará no meio.

Estava prestes a protestar quando ele prosseguiu, interrompendo-a:

— Apenas por garantia. Sei que artistas não são animais irracionais que a dilacerarão na primeira oportunidade, mas duvido que haverão muitas mulheres presentes. E um pouco de segurança nunca é exagerado.

Beatrice anuiu, embora a ideia de ter uma babá não lhe agradasse. Compreendia o ponto do irmão.

— Tom me levará até meu destino, então voltará em seguida. Ele a levará a hora que quiser voltar. Mas não abuse da sorte.

— Sabe que eu jamais seria tão irresponsável — retrucou. Então assumiu uma expressão autoritária. — Quanto a você...

— Ah, não. — Zachary protestou, a preocupação que antes dominava seus olhos sendo substituída por uma exasperação fingida. — Pelo amor de Deus, não comece. Não voltarei na hora do desjejum.

— Mas não voltará cedo, estou certa.

Ele conteve um sorriso.

— Não. Certamente que não. E você não dirá absolutamente nada sobre isso.

— Não direi. — ela cedeu, suspirando. Não era de seu feitio apoiar ou aprovar as inconsequências de Zachary, contudo... Daquela vez, precisaria aceitar. Afinal, haviam feito um trato. Ele a levaria até onde ela queria ir, e ela não diria nada sobre para onde ele iria. Embora... — Não vai mesmo me dizer para onde vai?

— Não quero arriscar. Quem me garante que você não será dominada por alguma cólera repentina por seu querido irmão e então deixe algo escapar? Não, melhor prevenir do que remediar.

Beatrice franziu o cenho.

— Eu não faria isso.

— Edward está esperando, Triz. — ele fez um gesto com a mão, como se a dispensasse.

— Não faria. — a jovem repetiu uma última vez, enfaticamente, antes de deslizar para fora da carruagem.

Ela esqueceu-se das palavras do irmão no momento em que adentrou na Livraria das Belas Artes. Esqueceu-se mesmo do pobre Edward, que seguiu-a para dentro do edifício, embora mantivesse uma distância respeitosa de alguns passos. Longe o suficiente para não ser invasivo, perto o suficiente para mantê-la em sua vista cuidadosa. Mas mesmo que estivesse colado a seu pescoço, Beatrice não teria o notado. Não enquanto era dominada por tanto êxtase.

A livraria era enorme. Era verdade que sua decoração não era requintada como eram os interiores dos edifícios de Mayfair, mas isto não era relevante. Não quando havia em abundância o que mais importava; livros. Incontáveis prateleiras, que faziam as vezes de paredes. Talvez houvessem outras enfileiradas pelo centro do grande e único salão que era a livraria, mas haviam sido afastadas para dar lugar a fileiras de cadeiras e ocasionais mesas onde sentavam-se as pessoas presentes. A maioria delas tinha em mãos folhas de manuscritos, mas outros exibiam rascunhos ou pinturas perfeitamente finalizadas nos mais diversos estilos artísticos.

Estava quente. Ela sentia calor mesmo abaixo do vestido simples de algodão marrom que escolhera usar – um vestido que usava somente no interior, dentro da própria casa, pois não era adequado para qualquer outra situação. Mas era suficiente para passar despercebida numa Conversazioni; aquele era um evento de artistas. Diferente do burburinho suave que era característica de um evento da nobreza inglesa, ali as vozes se interpunham-se uma acima da outra numa algazarra.

Beatrice era capaz de ouvir tons enérgicos, frustrados e extasiados, e gargalhadas e gritos tão sonoros que era impossível distinguir qualquer palavra dita. De algum modo, todos conseguiam se ouvir. E Triz, embora inicialmente cautelosa, viu-se gradativamente envolvida por aquela energia tão única. Começou a se movimentar pelo salão. Aqueles que não estavam sentados circulavam assim como ela. Aos poucos, começou a sentir-se um pouco mais à vontade.

Aceitou um copo de limonada que uma moça – talvez uma das poucas presentes – lhe ofereceu. Fez uma cena admirando um busto de mármore esculpido. Parou para conversar um pouco com um homem jovem que  exibia alguns quadros originais seus, belamente pintados. Passou por outro que mostrava cópias de seu manuscrito – e insistiu para que ficasse com um, após Triz desviar educadamente de seus flertes elogiosos. Foi aproximadamente dez minutos depois disto que ouviu sobre a palestra.

Estava diante de uma banca onde um homem barrigudo vendia alguns livros antigos – Beatrice perguntou-se se ele tinha permissão para tal, visto que estavam dentro de uma livraria, e aqueles livros não eram de sua autoria para que ele os vendesse em meio ao evento. Optou por não dizer nada, pois preferia não ser expulsa aos pontapés dali. Mas, de qualquer forma, o sujeito parecia bastante ocupado numa discussão com um jovem cujos cachos castanhos teriam feito inveja a qualquer debutante inglesa.

— Isso é um roubo! — o rapaz exclamou, gesticulando com a mão que segurava um exemplar de A Peregrinação de Childe Harold, do infame Lorde Byron.

— Não quer pagar o preço, não leve. — o vendedor resmungou de volta, virando-se no mesmo instante para outro cliente que se aproximava.

— Você não aprende mesmo, não é, Thomas?

Beatrice, que assistia de esguelha a cena bastante interessada, se sobressaltou quando o outro homem passou quase esbarrando em seu ombro e parando ao lado do rapaz irritado. Era mais velho, já na casa dos trinta anos, e usava o cabelo negro penteado para trás, um pouco mais comprido do que ditava a moda.

— Não é culpa minha se vendedores são uma raça tão ardilosa, Levi. — o mais novo resmungou, repousando o livro de volta na banca com certa agressividade. — Me tomam como o que? Um idiota?

— Devem estranhar o fato de um jovem adulto de dezenove anos pensar em ler Byron. — uma outra voz sugeriu, num tom de provocação velada. Foi então que Beatrice notou que outro homem se posicionara no lado restante do rapaz.

— Não é para mim, é para minhas irmãs. — o tal Thomas reiterou, mas sem muita convicção. Fez um gesto brusco com a mão. — Ah, não importa. Vamos logo, senão vamos perder a palestra.

Beatrice pendeu, indecisa por um momento. Seus olhos varreram seus arredores, irrequietos, em busca de Edward. Já passara um bom tempo desde que entrara na livraria, então a hora de partir certamente estava perigosamente próxima. Ela foi invadida por uma divisão torturante; buscar o lacaio ou ficar um pouco mais? Somente mais alguns minutos. Era tudo o que precisava. Mas estava tarde. E ela não deveria estar ali.

Uma palestra... Sobre o que?

Narração shakespeariana.

Foi o que descobriu, no momento em que sentou-se na primeira cadeira vaga que encontrou. Por sorte, ficava no fundo do salão, convenientemente próxima da saída. Triz apertou o laço que prendia sua touca velha e amassada a seu cabelo. Mas, no momento em que o palestrante começou a discursar, sua preocupação e tensão começaram a ceder. Beatrice mergulhou em suas palavras, com um interesse sedento. Ficou tão imersa que seu corpo inclinou-se ligeiramente para frente, sem que notasse. Mas o homem a seu lado notou.

— Não é comum ver uma mulher num evento como este. — sua voz a pegou inteiramente de surpresa. Triz teria pulado de seu banco, se não tivesse tão boa percepção para processar o ocorrido. Ele permanecia olhando fixamente para frente, para o singelo palanque que fora montado para a ocasião.

Ela não conseguiu definir se estava zombando ou apenas declarando um fato. Crispando levemente os lábios, disse, com sobriedade:

— Surpresas ocorrem nos lugares mais inesperados.

Ele abriu um sorriso que fez com que discretas covinhas surgissem em suas bochechas, embora ainda não a olhasse. Foi só neste momento que ela notou que o sujeito era um dos acompanhantes do anterior rapaz leitor de Byron, o que caçoara dele. De perfil, sob a meia luz das velas, ela era incapaz de se atentar aos traços de seu rosto. Mas seu cabelo era louro e desalinhado, e havia um bigode num tom mais escuro encimando seus lábios. 

Era agradável de se olhar.

— Ah. Você está certa. — ele declarou, parando de sorrir. — O que a traz aqui?

Beatrice olhou-o de esguelha, desconcertada com seu intuito de continuar conversando. Ela não queria conversar.

— Sua vez de responder a uma fala minha. — retrucou, esperando que o corte o desencorajasse.

Não foi o que ocorreu.

— É mesmo. — ele pareceu pensar, por um momento. — Vim arrastado, admito. Não sou um artista, não estou em meu habitat natural. Mas acho que este não é o caso da moça.

Ela quis rir sombriamente, naquele momento, graças a ironia de suas palavras. Mas não o fez. Assim como não quis contar-lhe a verdade. Mas então pensou um pouco mais. Aquela provavelmente seria a primeira e última vez em que visitaria aquele lugar. No dia seguinte, voltaria à vida real, aquela da qual jamais poderia escapar. Por que não permitir-se viver por inteiro uma vida diferente, naquela noite gloriosa? Mesmo que fosse uma completa farsa. Jamais veria ninguém que ali estava de novo. Sua mentira seria apenas sua.

Decidiu que podia conviver com isso.

— Serei uma escritora. — respondeu, por fim, talvez de maneira mais enfática do que pretendia.

Será? — o homem repetiu o termo, lentamente. — Boa escolha de palavras. E admirável determinação. — ela desconfiou novamente que estivesse apenas zombando de sua cara, mas seus olhos, embora não a encarassem, pareciam francos.

— Se eu não tiver determinação, ninguém a terá por mim. — murmurou baixinho, muito mais para si mesma. Não esperava ou desejava ser ouvida.

Mas ele sorriu novamente.

Touchè. — concordou.

Neste momento, Beatrice notou uma ligeira movimentação de esguelha. Virou o rosto e deparou-se com Edward, gesticulando ansiosamente, encostado a uma das paredes do salão. Parecia que seu tempo se findara. Era hora de despedir-se de sua noite de ilusão. Começou a se levantar, até que o sujeito a seu lado virou-se em sua direção. Durante um breve momento em que o encarou, seu olhar deixou Triz desconcertada, embora ela não soubesse explicar o porquê.

— Preciso ir. — desculpou-se, embora não devesse nada a ele, é claro, e embora ele não tivesse lhe dito nada.

— Posso saber seu nome, para que lembre-me de você quando lançar sua primeira obra de arte? — o homem indagou. Havia certa diversão em sua voz, mas novamente, ele não parecia estar caçoando dela.

Beatrice piscou, olhando-o. Então balançou a cabeça, afastando a vontade de sorrir, desta vez de pesar:

— Não, não pode.

Então partiu.


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Notas finais do capítulo

Eaí? O que acharam? Espero que tenham gostado! Em especial ás criadoras dessas personagens, quero muito saber sua opinião sincera sobre minha interpretação delas. A opinião de vocês vale ouro para mim!
Até a próxima!



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