1812 — Interativa escrita por Holtzmann


Capítulo 3
Capítulo II


Notas iniciais do capítulo

Olha eu aqui de novo! Desta vez com o segundo e último capítulo de transição. Ou seja, o próximo capítulo só vai ser postado após o fim do prazo de espera das fichas ( que, lembrando: até então é de um mês após a postagem do prólogo aqui no spirit, embora possa ser estendido ), e já vai ser de algumas chars. Nesse capítulo, é hora de conhecer um pouco mais sobre os dois integrantes de nosso quarteto que ainda não foram explorados; Levi e William. Ele acabou ficando mais longo que o anterior, mas é porque eu realmente precisava salientar algumas coisas importantes sobre eles ( ou seja, sentem que lá vem textão XD ). Mas sempre tentarei manter nessa média, para que não fique cansativo demais.
Boa leitura e até mais!



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Londres, 1812

 

Levi Holroyd estava diante da única janela existente em seu pequeno escritório, que era contíguo a seu modesto apartamento em Bloomsbury, a mão direita ainda erguida em despedida, embora a carruagem carregando seu amigo na direção de Mayfair já tivesse ficado fora de vista há muito. Havia alguns minutos continuava ali, parado, incapaz de dar as costas para as ruas parcamente pavimentadas, como se o gesto de o fazer fosse decretar sua despedida definitiva. Embora, é claro, esta já tivesse ocorrido dias antes, enquanto ainda estava na Escócia na companhia de seus amigos e, por consequência, tranquilo e completamente seguro.

Um pouco mais de quatro anos atrás, Levi havia retornado da Península, um médico cujas posses limitavam-se meramente aos próprios objetos pessoais e a compensação que lhe fora entregue ao ser obrigado a retornar para casa. Alguns homens teriam ficado contentes em serem dispensados afim de retornarem para seu lar. Este não fora seu caso. Na época, ele se quer tinha um lar para o qual retornar. Mas por sorte – ou azar, a variar do ponto de vista – recebera como propriedade de uma parenta muito bem intencionada, a mesma que custeara seus estudos em Edimburgo quando jovem, um chalé campestre nas proximidades de Bath. E havia transformado ele num espécime de hospital e centro de recuperação para alguns oficiais militares que tinham sido gravemente feridos nas guerras de Napoleão, e que necessitavam de cuidados mais intensos e prolongados do que suas famílias podiam suportar.  

O chalé conseguia comportar dez homens muito confortavelmente. Suas parcas economias não permitiam que ele contratasse enfermeiros para auxiliá-lo, de modo que Levi teve de realizar todo o trabalho sozinho. Quando lhe foi dada, a propriedade tinha vindo com um tipo de governanta, que realizava o serviço de limpar e zelar por ela quando ninguém estava presente. Por sorte, a Sra. Fisk ficara mais que contente em continuar trabalhando com ele, cuidando dos detalhes acerca da alimentação e organização da casa com os quais Levi não podia perder tempo se preocupando. A maioria dos homens que estivera sob seus cuidados haviam se recuperado rápido e retornado para casa. Mas três haviam permanecido por dois anos.

Aqueles três homens significavam mais para Levi do que qualquer outra pessoa ainda viva. Os anos durante os quais seu chalé havia servido para este propósito, antes de ser vendido afim de que ele comprasse o apartamento no qual atualmente residia, tinham salvado sua sanidade. Ou resgatado a maior parte dela. Estava plenamente convencido daquilo. E não era apenas porque o lugar estivera cheio e a vida estivera ocupada o suficiente para manter sua mente longe de si mesmo. Era mais porque ele tinha sido necessário.

Não somente no prestar de seu papel como médico, mas como mais. Levi não ficara responsável somente por tratar feridas físicas. Mas tinha descoberto em si mesmo uma vasta capacidade de empatia, de se colocar no lugar do ferido, de escutar, de encontrar as palavras certas para dizer em resposta – ou de permanecer em silêncio absoluto, se fosse necessário. Ele descobrira que era um homem paciente, que poderia passar tanto tempo com cada homem machucado quanto fosse necessário. Passara muitas horas, por exemplo, simplesmente abraçando firmemente William durante os meses terríveis em que o rapaz fora reduzido a um poço de agonia e fúria incontrolável.

Embora não fosse do seu feitio pensar desse modo, pois parecia que estava se gabando de algo que, na verdade, não tinha sido fruto só e seus esforços, Levi os tinha curado. Tinha conseguido salvá-los e isso mais tarde revelou-se como sendo sua própria cura. Ou, ao menos, o antídoto necessário para aliviar a agonia que ameaçava sua própria integridade na época. Mas sabia que nada daquilo fora absoluto. Todos permaneciam lutando contra os próprios demônios mesmo nos dias de hoje, e talvez nunca os derrotassem completamente.

Ele faria qualquer coisa para consertar os corpos, as mentes e as vidas daqueles três por completo. Embora soubesse por experiência própria que ninguém era capaz de consertar a vida de outra pessoa. Só se podia ouvir, encorajar e amar. E abraçar, quando abraçar era apropriado. Talvez, dentre os quatro, a sua realidade fosse a mais distante de uma chance de recuperação e felicidade duradouras.

De qualquer modo, como poderia ele merecer a felicidade?

Pensou em Sarah.

Então abaixou a mão quando começou a se sentir estúpido por continuar a se despedir do ar vazio. Se voltou para o cômodo que havia permanecido intocado durante aquelas duas semanas em que estivera ausente. A Sra. Fisk certamente tinha visitado o apartamento para limpá-lo, embora ele tivesse insistido para que ela tirasse aqueles dias para descansar. Mesmo quando tinha vendido o chalé, dois anos antes, a mulher tinha insistido em continuar com ele – embora Levi não pudesse mais lhe ceder moradia e nem um salário que estivesse à altura de seus serviços. Ela agora morava nas proximidades, com uma irmã mais velha que era viúva de um advogado. E todas as noites vinha visita-lo afim de cozinhar as refeições que ele e Thomas precisariam consumir durante o dia.

Thomas não tinha chegado, ele notara assim que pusera os pés dentro do escritório. A superfície da mesa de carvalho estava vazia, exceto por um borrão limpo e um tinteiro. Os livros permaneciam intocados nas estantes que iam do chão ao teto, interrompidas apenas pela porta e pela janela única do cômodo. Normalmente havia uma falha ou outra no padrão organizado das lombadas coloridas – Thomas sempre pegava um ou dois livros emprestados para estudar ou simplesmente para se entreter. Ter todas as prateleiras completas significava que ele não tinha aparecido durante aqueles dias.

Ao menos alguém aqui escuta o que eu digo.

Levi acendeu a lareira e puxou a cadeira afim de se sentar. Estava frio lá fora. Uma brisa veloz de fim de tarde estava soprando diretamente naquela direção, embora o céu acima estivesse claro e cheio de nuvens escorregadias. Ele abriu uma das gavetas com um leve rangido de protesto e tirou o maço de cartas que tinha amarrado e posto ali dentro minutos antes de partir para as Terras Altas. Se sentira tentado a checar a correspondência durante a viagem, mas sabia que aquilo teria sido injusto com seus amigos – o tempo que passava com eles era, além de tudo, como férias de sua própria vida. Um período que ele tirava para fingir que sua rotina e seus problemas não lhe pertenciam e que era tudo parte da vida e história de outra pessoa. Talvez de algum dos personagens dos livros que lia. Que tragédia que seria essa obra.

Mas agora que estava de volta se sentia ansioso para retornar à rotina. Detestava ficar ocioso. Mesmo nos momentos em que deveria relaxar, Levi não se sentia completamente confortável em fazê-lo. Na verdade, para ele isto era até um risco. Por isso mergulhava incansavelmente no trabalho, dia após dia, mantendo o corpo – e principalmente a mente – sempre ocupados. Foi quebrando os selos dos envelopes, devorando as palavras. Parte das mensagens eram oriundas de pacientes que havia tratado – ou estava tratando – e que traziam atualizações ou agradecimentos sobre suas condições mais recentes. Enquanto punha de lado carta por carta, Levi pegou-se sendo dominado por um desejo infantil e infundado de que alguma delas tivesse a assinatura de George. Mesmo se ele escrevesse algo, certamente não colocaria seu selo no envelope.

Já fazia quase uma década – ou estava muito perto disso. A última vez que tinha recebido uma correspondência dele fora pouco antes de partir para a Península. O tinha visto uma ou duas vezes após seu retorno, mas ele não lhe dirigira nenhuma palavra. Na verdade, não lhe dirigira se quer um olhar. Nem enviara um bilhete para se assegurar de sua condição. Ethan havia se correspondido com ele no início, e talvez tivesse comentado uma coisa ou outra com Charles, que por sua vez talvez houvesse dito por alto à George, mas suas cartas haviam rareado cada vez mais conforme os meses foram se passando, até que adquiriram o ritmo atual de comprometimento; às vezes nos feriados Levi recebia uma missiva polida desejando saúde e prosperidade, a mesma que certamente era enviada a outras dezenas de parentes distantes. Muitos dos quais Ethan nunca havia conhecido de fato.

Mas ele não era um parente distante. Ou não deveria ser.

Esfregou os olhos com os dedos polegar e indicador, intentando afastar uma dor de cabeça que começava a espreita-lo, pressionando sua têmpora dolorosamente. Decidiu que aquela era uma ótima oportunidade para responder às cartas que lhe tinham sido escritas, embora certamente fosse a pior possível – estava cansado da viagem e o que mais necessitava no momento era de uma refeição quente e do conforto de seus lençóis. Mas não sabia se a Sra. Fisk viria – não sabia se ela se quer se lembrava de que seu retorno estava previsto para aquele fim de tarde. E suspeitava não ter energia alguma para preparar algo para si mesmo.

A razão para aquela inquietação que beirava a deprimência era o fato de ter passado tempo com os amigos recentemente. E então ter se despedido deles. Mas Levi sabia que não podia permitir que aquele sentimento o consumisse. Era a última coisa de que necessitava naquele momento. Por isso começou a escrever. As palavras lhe vinham facilmente, a educação e o costume o guiando bem mais que sua consciência em si. Esta teimava em se desviar, divagando para lados que não necessariamente estavam relacionados com o que escrevia. Pensou no convite que William tinha feito pouco antes de partir.

Ele ficaria algum tempo em Londres, havia dito. Não sabia o quanto, mas ainda assim queria aproveitar enquanto estivesse na cidade, tão próximo de todos. O convidara para prolongar a estadia da Escócia em seu próprio apartamento, que ficava nas redondezas da Piccadilly, mas Levi tinha refutado seu pedido. Dissera que precisava retomar o próprio ritmo – não somente por conta de si, mas por conta da Sra. Fisk e de Thomas, embora aquela fosse uma mentira deslavada. Aqueles dois não necessitavam dele tanto quanto ele necessitava deles.

A verdade era que Levi sabia que não podia continuar usando seus amigos como muleta emocional. Já fazia isso durante duas semanas ao ano, e a percepção já era quase insuportável, embora ele pudesse dar a si mesmo a desculpa de que a tradição de seu encontro anual tinha sido criada basicamente com esse intuito. Mas pensar em continuar com isso, mesmo quando fora de Stirling...

A porta do escritório se abriu, mas o médico só notou isso quando uma bandeja foi posta à sua direita na mesa, trazendo um bule fumegante, duas xícaras de porcelana e um pequeno prato de biscoitos que cheirava a manteiga e noz-moscada. Levantou o rosto da terceira missiva que estava escrevendo para se deparar com Thomas.

— Vim devolver o exemplar de Leeuwenhoek que peguei antes de você viajar. — o rapaz explicou, antes mesmo da pergunta sair de sua boca. Então deu um aperto amigável em seu ombro. — Bom te ver de novo.

Levi havia conhecido Thomas Lowell numa de suas idas à Lackington Allen and Co., na Finsbury Square. Encontrara o rapaz apoiado numa banca no meio de uma discussão bastante acalorada sobre o preço de um exemplar de “Tom Jones”, do Henry Fielding. Aparentemente, o vendedor não parecia muito disposto a baixar o valor da obra, e tampouco Thomas parecia apto a ir embora de mãos vazias. De modo que Levi se aproximara, interrompera a conversa afim de pagar o preço do livro que tinha escolhido e no meio do dinheiro colocara a diferença de valor de “Tom Jones”.

Thomas havia seguido ele então, com seu orgulho mortalmente ferido, insistindo para que pegasse o dinheiro de volta, dizendo que aquela não era sua responsabilidade e que não precisava de ajuda. Quando estava prestes a virar na esquina da Finsbury, Levi tinha sido por fim vencido pelo cansaço e dito que se quisesse tanto compensá-lo o rapaz poderia pagar uma bebida para ele.

Assim, ele se viu sentado à mesa de um clube suspeito, que por mais que fosse limpo mantinha um persistente cheiro de urina misturada a álcool. E durante o resto daquela tarde Levi tinha descoberto que o rapaz tinha vindo de um vilarejo em Derbyshire, que estudava medicina independentemente, visto que sua família não tinha fundos para coloca-lo numa universidade e que estava tendo algumas dificuldades com os estudos. Então, sabendo que ele não aceitaria simplesmente ser alvo de uma boa ação, propôs que ele trabalhasse como seu ajudante. Desse modo, Levi poderia ensiná-lo a parte prática do ofício e compensar a teoria que lhe faltava. Em troca, teria auxílio no trabalho e, talvez o mais importante: nunca ficaria sozinho.

Thomas achou que ele fosse louco, é claro, por convidar um completo desconhecido para trabalhar em sua companhia. E provavelmente ele estava certo. Mas tinha aceitado de qualquer jeito, ainda que não tivesse compreendido de imediato como ter um estudante agarrado a seu calcanhar durante um dia inteiro poderia ser vantajoso para Levi. Contudo, não tinha demorado a entender; infelizmente, do pior modo possível. A partir desse dia começara a, assim como a Sra. Fisk, permanecer mais tempo por perto do que realmente era preciso. Ele chegava sempre cedo, muitas vezes quando Levi ainda estava tomando seu desjejum e a Sra. Fisk estava partindo. E só voltava para a pensão onde morava num quartinho alugado quando a Sra. Fisk chegava à noite. Mesmo quando ela se atrasava, Thomas nunca partia antes de vê-la entrar no apartamento.

Eles nunca tinham trocado uma palavra se quer sobre isso. Os três sabiam por quê Thomas e a Sra. Fisk nunca deixavam Levi sozinho. Todos sabiam, ninguém falava sobre isso, e todo mundo estava bastante satisfeito com essa situação.

— Obrigado. — o médico respondeu enquanto servia o café nas duas xícaras, adicionando leite e um pouco de açúcar à bebida escura. Pegou uma xícara e aqueceu as mãos sobre ela, ignorando sua alça de porcelana. — É bom estar de volta.

— Tinha umas cartas lá embaixo. A Sra. Fisk que me entregou. Acho que podem ser requerimentos de alguns pacientes novos. — Thomas comentou, enquanto se encostava na beira da mesa e bebia um pouco do próprio café.

Levi anuiu.

— Amanhã daremos uma passada no hospital, então depois podemos dar uma olhada nos requerimentos. — respondeu vagamente. Seus olhos permaneciam na carta – que não tinha a assinatura de George, é claro. — A Sra. Fisk chegou? Não a ouvi. Nenhum de vocês, na verdade.

O rapaz sorriu, um daqueles sorrisos prepotentes que só os jovens eram capazes de dar.

— Já anoiteceu, mas não me surpreende que você não tenha percebido. Você parece esquecer do mundo às vezes.

— Ah, é? — indagou, dando outro gole no café.

— É. Quando está lendo ou escrevendo, às vezes quando está atendendo um paciente, ou comendo, ou... Na verdade, você esquece o mundo com muita constância. Me lembre de nunca confiar a minha vida a seu atendimento, por favor.

 Antes de Levi bolar uma resposta espirituosa o suficiente para dar, no entanto, uma batida leve na porta anunciou a entrada de uma atarracada e levemente esbaforida Sra. Fisk. A mulher – que já não era nenhuma beldade bronzeada – estava ligeiramente pálida, e seu cenho estava franzido em confusão.

— Sr. Holroyd, — ela começou, como se não acreditasse nas palavras que diria a seguir. — Há um... Lorde, à porta. Ele diz ser seu amigo. E está carregando uma bagagem.

 

 

William Hayes sonhou que enxergava.

No sonho ele ainda estava em Inverness-shire, descendo a colina onde estava assentado o Castelo de Stirling. Dois de seus amigos desciam a inclinação à sua frente, caminhando com cuidado afim de que não escorregassem no solo lamacento e traiçoeiro. Estava frio, mas Will achava que havia algo de dolorosamente maravilhoso nos baques da ventania cortante; ela invadia seu tato, deixando seu nariz gelado e sua mente estranhamente ciente de que estava vivo. E livre. Ele caminhava seguramente. Poderia descer a colina correndo, naquele momento. Ou rolando. O verde do gramado era indecente de tão gritante, o céu azul demais, e a sua frente Griffith resmungava para que ele segurasse o encosto de sua cadeira com mais firmeza, ou então os dois desceriam a colina de rompante e quebrariam as pernas. E ele faria questão de deixar os ossos sararem somente para atropelar Will depois.

William gargalhou diante de suas ameaças vazias, então inclinou-se para o lado, afim de olhá-lo no rosto...

 E recordou de que nunca o tinha visto. E de que nunca o veria.

Quando despertou, sentiu que todo o sangue havia se esvaído de sua cabeça, deixando-a fria e úmida. Sentiu o ar gélido em suas narinas, e tão rarefeito que era impossível de inspirá-lo. Sentiu-se vulnerável, perdido. Abriu os olhos, somente para descobrir que a mesma escuridão que o cercava quando os tinha fechados o encarava de volta. Essa percepção trouxe uma gigantesca e familiar onda de pânico. Sentiu todo o terror da escuridão sem fim, e da percepção de que, não importava o quanto piscasse seus olhos, como fazia naquele momento, sempre que os reabrisse ainda estaria cego.

Para todo o sempre.

Sem alento.

Sem luz.

Nunca mais.

Não havia ar o suficiente. Ele ouviu um som estranho que o assustou. Todo seu corpo estava gelado. Logo ficou ofegante, à medida que o ar lhe escapava um pouco mais a cada golfada desesperada que usava para captá-lo. Fechou os olhos. Não conseguia respirar. Não conseguia enxergar. Notou que o som que ouvia era o do próprio coração, retumbando dentro de seus ouvidos.

Então sentiu uma mão firme e quente em suas costas nuas. A mão o pressionou gentilmente, afim de que virasse de lado, então outra mão repousou com firmeza sobre seu peito. E uma voz baixa, repetitiva e controlada conseguiu migrar através das batidas descompassadas que reverberavam em seus ouvidos:

— Você é cego, Milorde. Só isso. Respire. Você pode respirar.

Você só é cego. Você consegue respirar. Esforçou-se para retomar o controle de sua respiração. Se não o fizesse, perderia a consciência e desmaiaria. Quando acordasse, ainda seria cego. Manteve os olhos fechados. Começou a contabilizar suas respirações, tentando concentrar-se nelas e afastar os pensamentos que fervilhavam em sua mente.

Havia, claro, ar. Will podia inspirá-lo e foi isso que fez, lentamente.

Inspirar. Expirar.

Quando abriu os olhos novamente, suas pálpebras estavam ligeiramente doloridas, marcadas pela sensação de terem sido fechadas com tanta força. À medida que os músculos de seu corpo foram relaxando, ele notou que uma camada fina de suor cobria sua pele. E que estava tremendo. Sentou-se na beirada da cama tremulamente, e a sensação de moleza em seus braços e pernas o deixou atordoado por um instante; como se estivesse doente e qualquer mínimo esforço o exaurisse.

Quando se assentou devidamente, as mãos que o sustentavam cederam seu aperto seguro. Permaneceu alguns minutos ainda parado. Então William ergueu a cabeça com cuidado.

— Eu estou bem. — disse ao vazio, numa voz vacilante.

O vazio não respondeu, mas imaginou que ele tivesse anuído. Então ouviu-o afastar-se em passadas pesadas, que retornaram pouco depois. Will mantinha as mãos no colo, mas não espantou-se quando sentiu uma xícara ser repousada confortavelmente entre seus dedos. Antes mesmo de pôr ela nos lábios, sentiu o doce e característico cheiro de chá e quase chorou de tamanha gratidão. Embora, tecnicamente, pagasse o homem para fazer seu trabalho.

Joseph fora seu primeiro e até então único valete. William nunca vira sua aparência. Supunha que ele fosse um sujeito alto e forte, pois sempre que o tocava, seu toque era firme e ligeiramente vacilante, como se ele temesse apertar ou pressionar demais e assim machucá-lo. Não sabia nada sobre sua vida, sobre seu passado e presente, sobre sua família – se é que tinha uma – e também nada sobre suas qualificações. Só sabia que ele tinha uma voz calma e controlada e uma incrível habilidade de ser completamente invisível.

Will suspeitava que, mesmo que seu palpite sobre a aparência do sujeito estivesse correto e, logo, ele se destacasse em meio aos franzinos homens ingleses, e mesmo se pudesse enxerga-lo afim de comprovar sua teoria, ainda assim Joseph conseguiria fingir não estar ali. Como se fosse meramente parte do cenário, ou um componente da mobília. William não sabia nada sobre ele. E, ao mesmo tempo, sentia que sabia tudo o que precisava.

Poderia parecer estranho – e talvez o fosse. Quando contratara ele, recebera duras reprimendas de sua mãe pela escolha. Aparentemente, ele não era o mais adequado ao trabalho nos termos gerais que normalmente utilizava-se para julgar um empregado. Mas havia uma maneira de uma presença se tornar conhecida, embora a pessoa em si não o fosse. E William gostava da presença de Joseph. Percebera isso de imediato, quando ele entrara silenciosamente na sala, tão sutilmente que ele só notara sua presença quando sua mãe grunhira um cumprimento em sua direção.

— Há uma carta, Milorde. — o sujeito disse, quando Will terminou com sua xícara de chá, agora visivelmente recuperado de seu ataque. Ultimamente, eles pareciam mais recorrentes que o comum.

— De quem? — indagou, embora não estivesse muito desejoso de ler – ou, na verdade, fazer – nada.

Chegara pouco mais de duas horas antes em Londres. Após duas semanas na companhia de seus amigos, não poderia dizer que pusera os pés em casa no melhor dos humores. Sempre havia uma profunda sensação de vazio após aquelas despedidas. Normalmente, ela persistia por mais alguns dias até que abandonasse William. Era exasperador sentir-se tão incrivelmente bem durante um certo período de tempo, sentir-se tranquilo e completamente confortável, como se estivesse em seu habitat natural junto a seus semelhantes para então ter de retornar de novo para...

Bem, a realidade. A sua realidade.

Franziu o cenho, notando como aquele pensamento retinha uma dose descuidada de autopiedade. Aprendera muito tempo antes que a autopiedade também era uma forma de se sabotar. Então tinha transformado o sentimento em humor e sarcasmo e encontrado um espécime de válvula de escape para tal. Contudo, ocasionalmente o sentimento conseguia penetrar suas defesas. E Will precisava estar sempre alerto para que não permitisse que o dominasse.

Suas próprias escolhas haviam-no deixado cego – e odiava a si mesmo por isso. Odiava o que a cegueira fizera com sua vida. Odiava os ataques de pânico, como Levi denominara aqueles acessos ocasionais que o acometiam – e que para sempre o acometeriam, suspeitava. Odiava as dores de cabeça recorrentes e insuportáveis. Mas mais que isso tudo, odiava a melancolia. De fato, a melancolia o aterrorizava. Mais que a morte, mais que o fogo, mais que a guerra ou o próprio inferno. Pensar em afundar nela a ponto de não poder retornar...

Lembrou-se de Griffith.

A melancolia e autopiedade andavam juntas. E Will fugia delas com o mesmo afinco com que o diabo fugia da cruz.

Estava desesperadamente cansado. Talvez aquilo fosse tudo o que precisava – descanso. Sentia que poderia dormir uma semana. Talvez passasse uma semana ali no quarto, sem o peso de qualquer companhia além da de Joseph. Pensou que ficaria feliz com isso, muito feliz.

Mas haviam aqueles que tinham outros planos para ele.

— A carta é de Lady Dashwood, milorde.

A xícara que repousava nas mãos de William quase escorregou de sua mão e se espatifou no chão.

— O que diz?

— Ela o lembra de que a Srta. Dashwood se apresentará à sociedade esta temporada, e que estão todos em Londres para esse acontecimento. Ela e a Senhorita já chegaram. E a vinda do Sr. e da Sra. Dashwood é prevista. Diz também que estão ansiosos para vê-lo e que pretendem lhe fazer uma visita hoje.

— Como sabem que estou aqui?

Fez-se um breve silêncio, como se o valete esperasse que ele notasse o óbvio:

— Não sei, milorde.  

William soltou um palavrão.

Em sua última contagem, além de sua mãe, do falecido marido desta e de seus dois meios-irmãos, sua família era composta por pelo menos uma tia materna, o marido dela, dois sobrinhos e uma sobrinha, seis mil tios, tias e primos, além de mais uns seiscentos parentes distantes do terceiro e quarto graus dos quais não recordaria o nome nem se lhe dessem a coroa da Inglaterra em troca. Todos que haviam começado a brotar de todos os bueiros imagináveis de Londres, Bath, Derbyshire, Somerset, alguns até de Gales, no momento em que ele recebera o título de Visconde. É claro que nenhum deles aparecera antes disso, quando ele não passava do filho de um advogado morto. E é claro que nenhum deles dera o mínimo sinal de vida quando ele retornara da Península, cego e surdo e completamente louco.

Mas depois que ele recebera um pedaço de terra e tivera uma cortesia nobiliárquica somada ao seu nome, parecera que de repente todos compadeciam-se de sua condição. Quando partiu para o chalé e ficou aos cuidados de Levi Holroyd e uma chance de melhora em sua condição começou a ser visualizada, de repente todos os parentes começaram a cerca-lo como um bando de galinhas determinadas a alimentar um único pintinho frágil, sem se preocupar nem por um segundo com o fato de que poderiam sufoca-lo.

Todos sentiam-se no direito de fazê-lo. Como se deficiência mental fosse um dos sintomas da cegueira e, por consequência, William não passasse de uma espécie de criança muito querida mas que era incapaz de viver sua vida de forma independente, de raciocinar por si mesmo e tomar as próprias decisões sozinho.

Sua mãe, Lady Dashwood, o fazia por amor, é claro. Mas isso não mudava os fatos. Ele era um ingrato miserável, decerto – era muito mais fácil colocar a culpa de suas frustrações em outros. Mas não sabia como não sê-lo. E, naquele momento, sentiu que estava começando a irritar-se.

Irritação nunca era bom. Especialmente em seu caso, a irritação era perigosa. E Will tinha tanto medo dela quanto tinha da melancolia.

— Vamos embora, Joseph. — anunciou, colocando-se de pé.

— Para onde, Milorde? — não havia qualquer surpresa na voz monocórdia do sujeito. Não era a primeira vez que seu patrão fugia, é claro. William passara o ano interior nas Índias, numa estendida estadia que o permitira ser um pouco mais que somente O Visconde Cego.

Fora uma experiência maravilhosa, de fato. Se não fosse contado o período em que contraíra malária e quase morrera. Por um momento, contudo, Will raciocinou que preferiria ter um acesso da doença outra vez antes de se ver de cara com seu meio-irmão e a esposa dele. 

— Não sei. Mas basta refazer a bagagem que montei para a Escócia.

Sua carruagem passou a hora seguinte dando voltas pelas ruas londrinas. Ela partiu da Piccadily, deu uma volta na Grosvenor, contornou toda Mayfair, então seguiu para o leste, em direção à área menos favorecida da cidade. William soube para onde estavam indo pois Joseph o narrou todo o caminho que percorriam. Will se recusava a se sentir culpado – mas é claro que se sentia. Principalmente por Cecily. Quando a noite já havia caído, por fim o lorde ordenou que o sujeito parasse após ouvir de seus lábios o nome de uma rua. E então notou, com certo desconcerto – embora com nenhuma surpresa – que o guiara em direção ao único endereço da região que tinha decorado em sua pouco confiável memória.

O pequeno apartamento de Levi era ligeiramente mais quente e abafado do que o que Will estava adaptado, o que provavelmente significava que era muito pequeno também. Mas sentira-se tão aliviado quando a porta se abrira – mesmo que quem o tivesse atendido tivesse sido uma mulher desconhecida e ligeiramente ameaçadora. Somente ouvir sua voz, bem mais gutural e severa que a do próprio William, o fez notar que ela teria sido de muita utilidade na Península se fosse permitido a mulheres lutarem na guerra.

Após a mulher avisar que buscaria o médico, tateou o caminho com sua bengala até encontrar um pequeno sofá. Mas permaneceu sentado no cômodo que deveria ser a sala de recepção por pouquíssimo tempo. Dois minutos depois ouviu passos apressados descendo uma escada que talvez estivesse visível pelo vão da porta, e então no segundo seguinte Levi estava à sua frente. William podia senti-lo. Aprendera a utilizar bem melhor os sentidos que lhe restavam, de modo que criara quase um sexto sentido no qual apoiar-se. Ele perguntou-se, por um momento, se assim como ele o amigo permanecia nas mesmas roupas com as quais viajara – ao chegar em seu próprio apartamento, o Visconde só fizera o favor de tirar a camisa e apagar num cochilo turbulento. Ao menos, lembrara de pôr a camisa antes de sair de casa, embora não o casaco, ou o colete, ou na verdade todo o resto que não fosse as calças e as botas.

Foi o primeiro a falar.

— Posso ficar aqui esta noite? — o pedido pareceu estranho e ligeiramente patético mesmo para ele. Mas a verdade era que não sabia mais para onde ir. Só tinha uma propriedade em Londres, e não lhe apetecia a ideia de sair da cidade. Pois seus amigos estavam ali. Sua mãe sabia que tinha amizade com o Duque de Barclay, de modo que provavelmente pensaria em procura-lo na residência do duque. Ele sabia que teria de encontrar com Cecily cedo ou tarde. Não podia deixar de vê-la nem que fosse uma vez durante seu début. Só precisava de mais um dia para processar o fato e preparar-se para tal.

Levi parou por um momento. Will teve a impressão, então, de que provavelmente não estavam a sós na sala. Joseph estava ali, decerto, mas pareceu a ele que haviam outras presenças. Estaria a mulher soldado ali?

— Perdão. Boa noite a todos. — conjecturou, inclinando a cabeça num cumprimento, por precaução.

— O quartinho está arrumado. — uma outra voz masculina pronunciou-se. Uma voz jovem. Não devia ser mais velha que Griffith.

— Obrigado, Thomas. — Levi respondeu. Não parecia particularmente surpreso – ou incomodado – com a repentina aparição do amigo. Ele tinha este dom particular de parecer estar sempre no controle, sempre em perfeito equilíbrio. Nada o pegava desprevenido nem o espantava. — William, está aqui comigo Thomas Lowell, meu ajudante. E suponho que você já tenha conhecido a Sra. Fisk, que o atendeu.

William pôs-se de pé e realizou uma mesura. Abriu um sorriso.

— Um prazer conhece-los. Deve ter se assustado, Sra. Fisk, com um homem mal vestido e desalinhado aparecendo à sua porta. Sinto muito pelos meus maus modos.

A mulher murmurou algo que deu a entender que não havia problema. Então um silêncio sepulcral e constrangido recaiu sobre a sala de repente. O sorriso de William estava quase vacilando quando o rapaz, Thomas, anunciou que partiria. E a Sra. Fisk pareceu lembrar-se, de repente, que também deveria partir pois sua irmã precisava dela.

Por fim, William e Levi ficaram sozinhos.

— O que ocorreu? — o médico indagou após um momento.

— Descobriram meu novo covil.

— Ah. — Levi sabia do que estava falando. É claro que ele sabia. E, assim como os outros compreendia bem a frustração decorrente do excesso de zelo. Mas mesmo que não compreendesse, William tinha a impressão que nunca o julgaria. E sempre o acolheria. Pois era assim que eles eram.  

Houve uma pausa durante a qual Will supôs que Levi pensava. O Visconde por fim sentiu-o afundar ao seu lado no pequeno sofá onde voltara a se sentar. O médico suspirou.

— Acho que você não quer conversar. Eu também não. Então deveríamos descansar. — ele anunciou. — Você pode dormir em meu quarto. O quartinho é um pouco claustrofóbico demais.

O mais novo sorriu, extremamente grato. Então deu-lhe um tapinha no ombro – e graças a Deus acertou a mira.

— Ah, não se preocupe com isso, camarada. Todo lugar para mim é escuro e claustrofóbico.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado! Se o fizeram ou não, me deixem saber por suas reviews!
Beijo e até a próxima!



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