1812 — Interativa escrita por Holtzmann


Capítulo 26
Capítulo XXIV


Notas iniciais do capítulo

Hello, pessoal!
Retornando dos mortos com esse capítulo que demorou, mas saiu, yay! Peço perdão again pelo tempo esparsado entre o lançamento de um capítulo e outro. Mas ainda estou por aqui, e ainda tenho planos para essa história querida. E nesse capítulo temos avanços sendo avançados num dos nossos casais, hehe. Tava na hora já. Por isso precisei reservar este cap em particular para esse casal. Admito que fiquei receosa quanto ao tamanho do capítulo, e considerei dividi-lo em dois. Peço que vocês me informem nos comentários se teriam preferido assim ou se postar tudo junto foi realmente a melhor decisão. O que vocês opinarem, eu levarei em consideração nas próximas vezes que um capítulo desses surgir.
Nos próximos dias, como de costume, estarei respondendo os comentários pendentes de vocês! ♥
Ah! Outra coisa! Eu tenho uma história para recomendar a vocês, caso tenham interesse em interativas do universo de Game of Thrones. A escritora é uma amiga talentosíssima, que também criou a nossa querida Isabella de Ortiz. Eu mesma já deixei minha personagem lá, hihi. Tenho certeza que vocês vão curtir!

Link spirit: https://www.spiritfanfiction.com/historia/a-danca-das-serpentes--interativa-25061853
Link Nyah: https://fanfiction.com.br/historia/810087/A_Danca_das_Serpentes_-_Interativa/

Ademais, boa leitura!



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Londres, 1812.

 

Ophelia tinha recebido uma missiva de Levi Holroyd no dia anterior.

A missiva parecia muito inofensiva, a princípio. Ela começava com assuntos amenos, perguntas sobre seu bem-estar e como andavam as coisas. Mas acabava com um convite. Um convite que ela passou o resto do dia e uma boa parte da noite remoendo.

Haveria um sarau, uma conferência, de alguns colegas que Levi conhecera em Edimburgo. A maior parte deles cientistas ou aspirantes às ciências das mais variadas áreas. A ideia do sarau era reunir estas mentes afim de apresentar alguns dos mais recentes projetos e estudos do meio, entre eles, uma palestra sobre astrofísica que seria dirigida por um dos mais íntimos destes colegas.

Levi fora convidado.

“E, sabendo como se interessa por esta área, não pude deixar de pensar que talvez tivesse o interesse em comparecer”.

Certamente o interesse não faltava em Ophelia. Não era todo dia que uma mulher podia facilmente adentrar num conluio tão fechado como era o meio intelectual. Muito menos uma mulher como Jo, uma mera professora que não tinha qualquer ligação com nenhum daqueles homens da ciência. Mas haviam impeditivos mais que consideráveis aí.

O primeiro deles foi até fácil de se solucionar; Não que Jo tenha procurado solucioná-lo, a solução só caiu no seu colo, inesperadamente. Tendo a saúde de Jacob melhorado, Lorde e Lady Beaumont partiriam para passar o fim de semana em Derbyshire, onde estavam alguns parentes do senhor e, em ocasiões normais, Ophelia teria os acompanhado para que o pequeno Jacob não perdesse a regularidade de suas aulas.

No entanto, Lady Beaumont dispensara o fato. Ela explicou que normalmente não admitiria que a rotina de Jacob de estudos fosse perturbada, mas naquele caso em específico, ela preferia que o garoto tivesse o tempo livre para passar um tempo com os pais. Jo ficou francamente confusa, mas aceitou o argumento, naturalmente. Lady Beaumont disse que ela poderia aproveitar o fim de semana a seu bel prazer, se assim desejasse, contanto que na segunda ela estivesse pronta para pegar pesado com as aulas.

O segundo empecilho era um pouco mais desafiador. Levi não mencionara nada sobre qualquer outra companhia, o que queria dizer que provavelmente eles viajariam juntos. Sozinhos. Jo e ele. Não que Ophelia se preocupasse particularmente que Levi fosse lhe fazer algum mal. Mas ainda que fosse uma governanta, ela era uma mulher solteira, e ele um homem solteiro, com a ideia de partir numa viagem – ainda que curta – totalmente desacompanhados.

Ninguém podia impedi-la de sair além dela mesma e de seus próprios receios, é claro. Ela tinha recebido aqueles dias de folga diretamente dos senhores da casa, e não era como se estivesse cometendo nenhum crime ao aproveitá-los – mas, ao mesmo tempo, não queria ser vista entrando sozinha numa carruagem com um homem, principalmente porque não tinha tecido nenhuma boa história para explicar a situação. E a última coisa que Ophelia desejava era uma escandalização desnecessária de algo que era somente um passeio inofensivo.

Afinal, era um passeio inofensivo, não era? Ela estava somente aproveitando uma oportunidade que lhe tinha surgido, e que talvez nunca mais voltasse a surgir, de caminhar e interagir num meio dentro do qual dificilmente seria aceita graças às limitações sociais e de gênero. Só a ideia de poder ter contato com tantos nomes renomados e cheios de conhecimento era o suficiente para deixa-la em absoluta ebulição.

Não importava que essa oportunidade em particular tivesse sido oferecida por um cavalheiro praticamente desconhecido. Ah, não desconhecido. Levi Holroyd não era desconhecido, ele era seu amigo. Mas se fosse pega em flagra viajando sozinha com ele, bom, afirmar que eram amigos não a ajudaria. Curiosamente, o escândalo não era o principal motivo de sua ansiedade.

E sim a presença particular de Levi Holroyd. Afinal, ela já andava tendo bastante dificuldade em lidar com as coisas que aquele homem despertava nela. Mas ao mesmo tempo em que se sentia ameaçada por elas, ela simplesmente não conseguia se convencer a se afastar. Por isso tinha decidido que, apesar dos riscos, ela iria sim para Bath.

Não permitiria que anseios tão estúpidos a impedissem de vivenciar aquilo.

Ela se manteria no controle, convenceu-se. Conteria as próprias emoções. Conteria a si mesma. Era uma especialista nisso, e não seria agora que deixaria de ser.

De uma forma ou de outra, alguns cuidados precisariam ser tomados. Seria melhor se ninguém a visse saindo, ou soubesse para onde ela estava indo e com quem. Não havia nenhum ponto em cortejar um escândalo desnecessário. Ela não sabia ainda como se apresentaria em Bath, mas sabia que não podia se apresentar como uma governanta; para isso, ela precisaria de um disfarce.

Tinha sido por essa razão que, na noite anterior, ela tinha ido até a casa onde Adelaide, seu cunhado e seus sobrinhos estavam passando aquela temporada. Jo dividira com ela a notícia da viagem, deixando de um lado um detalhe ou outro para tentar controlar a reação que certamente Ade teria.

Não funcionou.

É claro que sua irmã entrou em ebulição como uma chaleira ao saber que ela tinha planos para os dias de folga, e que esses planos não envolviam passar tempo com ela.

— Eu amo você, — Ade tinha jurado, segurando suas mãos. — e é por isso que me deixa tão feliz vê-la fazendo novos amigos.

Ophelia ficou um tanto surpresa pelas palavras da caçula. Falando daquele jeito, Adelaide fazia parecer que ela era algum tipo de eremita solitária e antisocial, coisa que não era... Era?

— Eu posso saber com quem você planeja fazer essa viagem? — a mais nova tinha tentado arrancar dela, fazendo beicinho.

Mas Jo somente sorrira para ela:

— Não, não pode. Não agora.

Ophelia não apreciava a ideia de guardar segredos de Ade. E reconhecia que não fazia sentido em fazê-lo, tratando-se de algo tão simples. Sua irmã certamente não a julgaria – muito pelo contrário, ela tinha certeza de que Ade empolgaria-se com toda uma novela dramática e romântica em cima do caso. Mas Jo tinha poucas coisas verdadeiramente suas – fossem objetos, pessoas, ou lembranças.

Ela queria que aquela viagem fosse uma delas. Queria guarda-la numa caixinha dentro do próprio coração, para poder revisitá-la sempre que desejasse, em suas lembranças e sonhos futuros. Havia qualquer coisa de deliciosa em ter um segredo só seu – ainda mais um que tinha um tom quase que ilícito. Aquele seria seu pequeno ato de desafio, sua pequena fuga rebelde.

E ela não queria compartilhá-la com mais ninguém.

Ade aceitou relativamente rápido o silêncio de Jo, embora tenha continuado a choramingar ocasionalmente durante o processo de auxílio à irmã. Ophelia tinha decidido que usaria durante a conferência o vestido novo que Lady Beaumont tinha lhe dado – era o vestido de tecido e cortes mais nobre que ela tinha. Mas ela ainda precisaria de um vestido para o dia, para usar na ida e na volta e durante o tempo em que estivesse lá.

Ophelia não sabia exatamente o que faria em Bath enquanto não estivesse na conferência, mas achava que logo descobriria. Ade aprovou o vestido verde para a conferência, mas discordou da ideia de Jo de aumentar sua manga.

— Se fizer isso, continuará parecendo um vestido de governanta, talvez uma governanta mais chique, mas ainda uma governanta.

A caçula sugeriu, ao invés disso, que elas encurtassem as mangas e Ophelia usasse luvas compridas para cobrir a parte nua dos braços, se assim desejasse fazê-lo. Seria muito mais elegante, ela garantiu, e faria Jo parecer uma dama ao invés de uma criada.

— Mas eu sou uma criada. — Ophelia argumentara.

— Não durante esses dias. — Adelaide retrucara. — Em Bath, você não será a senhorita Wright dos Beaumont, e sim a senhorita Ophelia Joanne Wright de Midlands. — a caçula batera palminhas animadas. — E eu já sei o que pode combinar com o vestido.

Ade fez com que Jo provasse o que pareceu ser uma centena de combinações de sapatos, jóias e possíveis estilos de penteados. Ophelia duvidou continuamente da necessidade de tamanho circo, mas é claro que Adelaide não quis nem ouvir sobre isso. Ela tirou vários artigos de seu próprio acervo, oferecendo-os à irmã, e garantindo que não tinha problema nenhum em ela usá-los. Ela não parou até que tivessem definido cada combinação de traje que Jo usaria em cada ocasião e momento da viagem, considerando todas as possíveis atividades que poderiam possivelmente serem sugeridas.

— Eu não acredito que eu precise de um traje de equitação, Ade. — Ophelia protestara, em determinado momento. — Mesmo se eu for convidada para cavalgar em Bath, farei isso uma vez e então nunca mais na vida.

— Por isso que você levará o meu. — Ade insistira. — Se não usar, ao menos saberá que esteve precavida para o caso de precisar usar.

Dessa forma, Jo retornara mais tarde que o esperado para a Casa Beaumont. Todo o resto da criadagem já estava adormecida, àquela hora, mas isso pelo menos deu-lhe a oportunidade de começar a embalar suas coisas sem que ninguém notasse. Tinha sido arranjado que Levi Holroyd apareceria com um coche às cinco horas da manhã. Ele o estacionaria no fim do quarteirão, afim de não chamar atenção para a Casa Beaumont, e Jo sairia pela porta lateral da casa, a porta utilizada somente pela criadagem, e percorreria o caminho pela calçada até a carruagem.

O esquema parecia muito clandestino para ter sucesso. No entanto, o esquema acabou sucedendo sem contratempos. Aos dez minutos depois da cinco, Ophelia estava colocando suas duas malinhas no bagageiro da carruagem e às cinco e quinze, ela estava entrando no veículo para se deparar com...

Levi Holroyd. E um outro rapaz que ela desconhecia. Após um instante de hesitação, Jo entrou e se acomodou no banco de frente a eles.

— Bom dia para você, senhor. — disse, rapidamente, para o médico.

— Bom dia, senhorita Wright. — ele respondeu. — Presumo que esteja se perguntando quem é o marmanjo ao meu lado. Deveria tê-lo mencionado na carta, me perdoe. Este é Thomas. Devo ter mencionado ele antes em outras conversas. É meu ajudante e aprendiz.

— Senhorita. — o garoto, Thomas, inclinou o queixo de forma solene. Ele parecia muito novo, com o cabelo cacheado um pouco comprido além da conta.

Jo abriu um sorrisinho amarelo para ele.

— Não se preocupe. — Levi se adiantou, como se lendo sua mente. — Thomas é de confiança e muito discreto, quando devidamente incentivado. Ele só pegará uma carona conosco para visitar a mãe e as irmãs, que vivem em Bath.

— Não incomodarei seu passeio, senhorita. — Thomas assegurou.

Ophelia adiantou-se, gesticulando:

— Ah, não! Por favor, não pensei que incomodaria. Me desculpe se passei a ideia errada, é que eu...

O médico deu uma risada descarada. O malandro.

— Se reagir assim sempre que for pressionada em Bath, senhorita Wright, acho que acabará se colocando numa situação comprometedora.

Jo olhou-o com eloquência.

— Está é uma situação comprometedora.

— Talvez. — ele acenou, parecendo um tanto divertido. — Mas não precisa ser, contanto que concordemos muito bem sobre o que realmente se trata.

A governanta cruzou os braços:

— E do que se trata, senhor Holroyd?

Levi ergueu levemente as sobrancelhas.

— Eu acredito, — ele disse. — que meu pai e seu pai devem ter sido primos muito distantes criados separadamente. Creio que eu deva ter descoberto isso recentemente, assim como descoberto a existência das filhas deste primo distante, e que eu esteja muito agradavelmente surpreso em resgatar esta parte perdida de minha família. Tão feliz que tenha prometido a uma dessas primas, a senhorita Ophelia Wright, de que a levaria até Bath, pois era seu desejo há muito conhecer a cidade e seus encantos, e como poderia eu negar este favor a uma tão querida parenta?

Ophelia não pode deixar de sorrir diante daquilo. Parecia que o médico estava pelo menos três passos à frente dela. E ele claramente estava animado com a viagem. O que a fez se perguntar...

— Por que exatamente está indo para Bath mesmo?

Levi deu de ombros.

— Tenho alguns assuntos para resolver na cidade. — disse. — Como disse, fui convidado por este velho amigo para esta conferência, mas não estava particularmente inclinado a viajar só para ver e ouvir um bando de cientistas interagindo entre si. Os cientistas são as mais estranhas criaturas existentes, vai descobrir, senhorita Wright, e as menos socialmente habilidosas também. Eles raramente conversam, e quando conversam, você não consegue entender metade do que falam.

Ophelia estreitou os olhos.

— Mas decidiu ir mesmo assim.

— Sim, eu decidi. — o médico cedeu. — Pois tenho uma propriedade na cidade que preciso visitar há algum tempo. Você sabe, conferir como as coisas estão. E Thomas já estava querendo visitar a família algum tempo, eu sabia que a senhorita poderia se interessar pela conferência... Uni o útil ao agradável e decidi fazer o que devia já ter sido feito e de quebra ajudar alguns amigos.

Jo aceitou a explicação. Mas, do outro lado, o garoto, Thomas, estava com um sorriso de canto em lábios, o tipo de sorriso que sugeria que ele sabia de algo que ninguém mais sabia. A carruagem já tinha começado a andar. De todo modo, Ophelia não o conhecia o suficiente para pergunta-lo sobre, então teve de se contentar com aquela dúvida em particular. Mas fez questão de sanar outra que a estava incomodando recentemente.

— Senhor Holroyd, — chamou, após um instante. — sobre meu serviço na Casa Beaumont...

— Sim? — o médico indagou.

Jo não queria de nenhuma forma ofendê-lo – ou soar ofendida, mas precisava confirmar aquilo.

— Tenho a impressão que houve uma intervenção terceira no processo. — disse, com delicadeza. — Eu posso estar errada, mas algo me faz crer que alguém falou com o Duque de Barclay sobre meu interesse no trabalho, e o fez conversar com a irmã sobre, o que talvez tenha influenciado na decisão de Lady Beaumont de me contratar.

O médico franziu o cenho.

— Eu não estou ciente disso. — respondeu. — Acredito que possa ter pensado que fui eu, mas garanto que não fiz nada do tipo. Eu a avisei da oportunidade, mas disse a senhorita que teria de conquista-la sozinha. Garanto que não intervi de nenhum modo nisso.

Embora tivesse estado suspeita esse tempo todo, Ophelia acreditou nele. Acreditou, pois ele parecia estar sendo franco, e acreditou pois não achava que ele teria motivo para mentir, de um modo ou de outro. Mas se não tinha sido Levi a conversar com o Duque, quem teria sido?

Bom. Provavelmente aquele mistério precisaria ser posto de lado por um momento.

— Acredito que chegaremos em Bath no fim do dia. — Thomas disse, abruptamente, olhando pela janela. — Conheço um lugar onde podemos parar para almoçar antes de seguir viagem. E um lugar onde podem se hospedar à noite, chegando lá. Não pretende ficar no chalé, pretende, Levi?

O rapaz fizera a pergunta de uma forma bastante casual, mas Ophelia notou que havia algo por detrás de suas palavras, algo que sugeria que a ideia não agradava a ele. Ao mesmo tempo, fez com que Jo percebesse algo.

— Sua propriedade é um chalé? — perguntou ao médico. — É aquele chalé que me mencionou? O que usou como hospital para seus pacientes?

— Sim. — Levi respondeu para ela. Então virou-se na direção de Thomas. — E não, Tom. Duvido que o chalé esteja apto para ser habitado. Será mais confortável e... — ele fez uma pequena pausa, relanceando um breve olhar para Jo. —... Apropriado, arranjar uma hospedagem.

O aprendiz acenou com a cabeça.

— Eu sinto muito por não poder oferecer a hospedagem de minha casa. Lamento que não temos quartos o suficiente para...

— Não se preocupe. — o médico deu um aperto amigável no ombro do garoto. — Foque em passar tempo com sua mãe e com suas irmãs. Encontramos você domingo de manhã, quando formos partir de volta a Londres.

O rapaz anuiu, ainda que contrariado. Ele parecia se preocupar com seu professor. O modo como agiam perto um do outro fez Ophelia perceber que a relação entre eles certamente era mais que somente uma relação profissional.

A primeira metade da viagem correu com tranquilidade depois disso. Levi e Thomas engataram numa conversa contínua sobre o trabalho, comentando sobre alguns pacientes que deveriam visitar quando retornassem a Londres e seus estados de saúde. Eles mudaram o assunto um pouco depois, tentando incluir Ophelia na conversa, mas ela preferiu se limitar a fazer adições pontuais ao diálogo.

Preferia muito mais só encostar a cabeça no vidro da janela e ouvi-los, enquanto a paisagem passava diante de seus olhos. Não demorou para que a visão dos prédios da capital fosse substituída pela visão dos campos limpos da primavera que circundavam a estrada de um lado e do outro. Jo ficou prestando atenção à forma como o céu, a vegetação e até o ar mudava parecia mudar conforme rumavam cada vez mais em direção ao interior.

Ao meio-dia, pararam numa pequena hospedaria na beira da estrada para fazer seu desjejum. Até esse momento, Ophelia ainda não sabia muito bem como se sentar ou como manter um sorriso ou, pelo menos,  um olhar de interesse em seu rosto enquanto dividia o veículo com os outros dois. Mas sair da carruagem e se sentar à uma mesa facilitou um pouco as coisas.

Eles comeram e, dentro de alguns minutos, voltaram a subir na carruagem e retomar o percurso. Parecia que todos queriam chegar o mais rápido possível ao destino, cada um por suas razões particulares. Levou ainda o resto da tarde para chegarem até Bath. Quando o fizeram, o sol já estava quase se pondo.

Thomas foi deixado no centro da cidade, de onde partiria até a casa onde sua mãe e suas irmãs viviam, nas imediações rurais dela – embora Bath em si pudesse ser considerada uma grande imediação rural, havia uma parte dela que era rica e próspera, a parte em que a aristocracia convivia, e outra parte que era pobre e menos glamourosa. Era para a segunda parte que Thomas iria.

Assim que o rapaz desceu, Levi explicou a Ophelia sua história. Explicou que o pai dele tinha servido na guerra e morrido, deixando para a mãe e para os filhos somente uma pequena renda que teria servido muito bem a uma víuva solitária... Mas que não era muito para uma viúva com três filhos para alimentar e cuidar.

Por essa razão, Thomas tinha aprendido a trabalhar desde muito cedo. Pequenos bicos em fazendas próximas de sua casa, a maior parte das vezes. Ele passava dias fora de casa, trabalhando durante toda a manhã e tarde, dormindo em celeiros junto com os animais, e retornava com o dinheiro que sua mãe usava para complementar as necessidades da família.

Ainda assim, sempre havia algo faltando na casa dos Lowell. Quando as irmãs de Thomas eram pequenas, as coisas eram um pouco mais fáceis. Mas elas envelheceram, e logo o único par de vestidos que cada uma tinha parou de servir a elas, assim como seus sapatos e seus outros anseios. Muitas vezes, a mãe deixara de comer ou comprar algo de que precisava para dar prioridade a elas ou a Thomas.

Mas um dia, o garoto cansara-se disso, e partira para Londres afim de realizar seu sonho de estudar medicina – e dar uma melhor condição de vida à própria família.

— Ele assumiu o papel que deveria ter sido de seu pai, veja bem, — Levi disse. — e nunca o perdoou.

— Por morrer?

— Por ter escolhido morrer. — o médico corrigiu. — O pai dele estava livre do dever de atender ao chamado do exército, devido a uma deficiência na perna. Mas ele escolheu ir, do mesmo modo, pois considerava que era seu dever como um homem do rei.

Jo refletiu naquelas palavras.

— É claro que ele não planejou morrer. — Levi acrescentou. — Mas poderia ter escolhido ficar em casa. E Tom nunca o perdoou por ter decidido o contrário.

— Ele acredita que ele os abandonou.

O médico anuiu.

Após Thomas descer da carruagem, só sobrou Ophelia e Levi ali dentro. O interior do veículo parecia, de repente, ter apenas metade de seu tamanho anterior. O que era impossível, é claro, pois o espaço era o mesmo espaço do começo da viagem. Mas não parecia. Isto era inconveniente, decerto. Talvez, depois de tudo, talvez ela devesse ter fugido sozinha e viajado a cavalo ou mesmo em uma carruagem do correio, se desejava ir àquela conferência.

Levi parecia alheio àquilo. Tinha virado a cabeça e estava olhando a cidade pela janela, sem encarar Jo diretamente. A governanta nunca tinha notado, até agora, como muitos assentos de carruagem eram estreitos. Seus joelhos estavam quase se tocando. Após um instante, sem voltar-se na direção dela, o médico indagou:

— Está tendo dúvidas? A sinto um pouco tensa. Mas lamento que seja um pouco tarde para voltarmos de imediato à Londres. Se quiser retornar, só poderemos voltar a viajar amanhã de manhã. Deseja voltar?

A sugestão trouxe os sentidos de Jo de volta aos eixos.

— Absolutamente não. — assegurou. — Eu não voltaria por nenhuma razão. Não quis voltar no início da viagem, e não quero voltar agora. Mas se o senhor mudou de ideia sobre a ideia me acompanhar, é claro, eu não...

Ele por fim voltou-se na sua direção.

— Não mudei.

— Me sinto culpada. — admitiu Ophelia. — Aposto que o senhor tinha planos bem diferentes para sua estada em Bath.

— Não se sinta. — Levi retrucou. — Se eu não quisesse companhia, não a tinha convidado, Ophelia.

A governanta anuiu, sem muita escolha além dessa.

— Demoraremos ainda alguns minutos até chegar na hospedagem. — o médico acrescentou. — A vi bocejar uma ou duas vezes no caminho. Talvez queira descansar um pouco antes de chegar lá.

Não fazia muito sentido em descansar no caminho para o lugar onde iria fazer justamente o mesmo. Mas Jo aceitou a sugestão avidamente, pois se pelo menos fingisse estar cochilando, não se sentaria na obrigação de manter uma conversa de pé – e ela tinha descoberto que era incapaz de fazer isso, estando só na presença de Levi Holroyd, num ambiente fechado como aquele.

Só iria fechar os olhos por alguns minutos.

No entanto, ficou mais consciente dele quando fez isso. Podia sentir o calor do corpo dele, embora não estivessem se tocando. Podia sentir o cheiro de algo distintamente masculino – couro, sabão de barbear, o que fosse. Era difícil distinguir cheiros individuais, naquele espaço confinado, mas todos eles somavam algo bastante atraente e absolutamente proibido.

E ela não deveria estar pensando nessas coisas agora.

Passou o resto dos minutos que sobraram afugentando-as da mente. Então o momento de desembarcar chegou, e Jo ficou indescritivelmente aliviada em poder sair daquela carruagem de volta para o ar livre. Eles pegaram suas bagagens, Levi combinou com o cocheiro onde e em que horário se reencontrariam no domingo, quando fariam a viagem de volta à Londres, e foi até a recepção para confirmar a reserva dos dois quartos que tinha realizado previamente – um para ele, e um para sua prima, a senhorita Wright.

Jo dispensou o jantar naquela noite, garantindo que a única coisa que queria era uma cama para dormir e se preparar devidamente para o dia que os esperava amanhã. Embora eles não tivessem acertado realmente como aquele dia seria. Tudo o que ela queria, na verdade, era um momento a sós, longe da presença de Levi Holroyd por tempo o suficiente para voltar a agir e a pensar como ela mesma.

Ah, aquele seria um longo fim de semana.

 

Na manhã seguinte, Ophelia usou a água para banho oferecida pela hospedagem para se limpar e pôs um dos vestidos que Ade tinha lhe emprestado para a ocasião. O vestido era cinza-claro, e tinha um casaco verde que fora feito sob medida para acompanha-lo. Além do casaco, ele também acompanhava uma cartola de feltro cinza brilhante e uma fita verde que combinava com o casaco.

Adelaide tinha garantido a Ophelia que, naqueles dias, todas as damas finas andavam usando cartolas como aquelas. Jo não podia negar que era elegante. Talvez elegante demais para alguém como ela. Mas usou-a, de todo modo, arrumando o cabelo da exata maneira como Adelaide tinha lhe instruído.

Antes de sair do quarto, parou para dar uma olhada em si mesma. Não era comum que Ophelia se arrumasse com esmero. Não tinha condições para isso, e como governanta, a última coisa que precisava fazer era chamar atenção para si mesma. Mas ela teve que admitir que, quando o fazia, era um prazer ver como ficava.

Parecia uma mulher de verdade, sofisticada, e não uma pobre criatura pálida e em eterno luto. Jo virou para um lado, virou para o outro, admirando-se um pouco mais... Até notar que o tempo tinha corrido rápido demais, e que já estava atrasada para o café da manhã.

Ela desceu e esperou na sala privada que Levi tinha reservado para eles. Ophelia não tinha perguntado, mas tinha certeza que aquela viagem não estava sendo-lhe barata. Afinal, ele precisava contratar um coche de aluguel, bancar a hospedagem... Jo trouxera algum dinheiro consigo, pois decidira que pagaria pela própria hospedagem e custos que viessem junto com a estadia em Bath.

A última coisa que desejava era ser um estorvo.

Ophelia esperou, um tanto ansiosamente, a chegada de seu companheiro de viagem. Mais ou menos dez minutos depois de sua chegada, Levi atravessou a porta da sala privada. Mas ele parou ainda na entrada, encarando-a fixamente, com uma expressão meio estranha no rosto. Parecia paralisado e francamente horrorizado. Oh, céus, ela tinha exagerado demais com aquelas roupas, não tinha?

— Cristo. — o médico declarou, finalmente. Então deu um passo descuidadamente apressado para a frente e fechou a porta firmemente atrás de si. — Pensei por um momento que tivesse confundido a sala.

Jo remexeu-se, inquieta, na cadeira.

— Eu tive de deixar todos os meus vestidos negros na Casa Beaumont. — explicou. — Pensei que não seria bom continuar parecendo uma governanta, aqui em Bath...

— Pensei que estivéssemos viajando como primos.

— E estamos. — Ophelia retrucou, parando de sentir-se ansiosa e começando a ficar um tanto aborrecida. — Pelo modo como está falando, parece que estou vestida como uma prostituta, senhor.

— Como uma jovem lady. — o médico disse. — Me perdoe, senhorita Wright. Não quis ofendê-la. É que agora estou frustrado com a ideia de apresentá-la somente como minha prima.

Jo olhou-o. Deveria ter ficado mortificada pela sugestão em suas palavras, mas ao invés disso, sorriu para ele.

— Este será um sofrimento que terá de tolerar, senhor, pelo menos por enquanto.

Levi soltou um suspiro propositalmente afetado.

— Farei meu melhor para sobreviver.

Ele se sentou e um pouco depois, um serviçal entrou com a bandeja do café da manhã. A piada pareceu quebrar o gelo que tinha se instalado entre eles na parte final da viagem. Era bem mais fácil conversar fora de uma carruagem; embora ainda estivessem sozinhos num lugar fechado, a sala de jantar era infinitamente maior e mais aberta que o veículo.

Eles conversaram sobre os planos para o dia enquanto comiam. A convenção ocorreria à tarde, depois do almoço, de modo que eles tinham a manhã livre para aproveitar a cidade. Jo sugeriu que fossem visitar o tão comentado chalé primeiro, visto que este fora o principal motivo pelo qual ele tinha vindo. Ele concordou, e decidiram que depois da visita ao chalé ele a levaria para conhecer um pouco da cidade antes de voltarem a hospedaria e se prepararem para o evento.

Foi muito fácil ficar à vontade depois disso. Era muito fácil ficar à vontade perto de Levi Holroyd, e Jo tinha descoberto isso há algum tempo.

O jeito de Levi era relaxado, agradável, até afetuoso. Ele sorria com frequência para ela, e mesmo quando não o fazia, seus olhos eram sempre bondosos. Mas Jo se viu questionando sobre aquela bondade quase perpétua, sobre aqueles olhos sorridentes. Seriam eles uma espécie de escudo? Para impedir que outras pessoas vissem o que estava por trás? Para ver o mundo e as outras pessoas como ele queria ver, apesar de tudo o que estava escondido profundamente dentro dele?

E ela suspeitava que havia algo, sim. Tinha que haver. Embora soubesse bastante sobre ele, ela sentia que ainda haviam lacunas inteiras em sua história que estavam longe de seu entendimento. O que será que se escondia nelas? Aquele homem parecia emitir luz onde quer que fosse, mas toda luz criava sombras. Onde estavam as sombras dele?

Em determinado momento, as piadas se tornaram mais frequentes e um tanto mais ousadas. Jo talvez tenha ficado confortável demais, pois viu-se perguntando, em determinado ponto:

— Qual seria a outra opção?

O médico franziu as sobrancelhas levemente.

— O quê?

— Se não fosse me apresentar como sua prima, — Jo explicou. — como me apresentaria? Qual seria o disfarce?

Levi a encarou por um instante. Então um brilho travesso invadiu seus olhos.

— Acredito — falou. — que se não fosse minha prima, a senhorita Wright, você só poderia ser... Minha esposa, a senhora Holroyd. Só isso explicaria estarmos viajando juntos, sem companhia, sendo um cavalheiro e uma dama.

Ophelia sentiu o peito tremer. Ah, ela começara aquilo. Não podia deixar a peteca cair agora. A faria parecer patética, além de covarde. Mas não precisou. Pois logo o médico acrescentou:

— Mas isso não colaria. Conheço pessoas aqui, muitas há anos, e dificilmente conseguiria sustentar uma mentira como estas quando voltasse à Bath sozinho, depois.

Jo abriu um sorrisinho.

— É claro.

— Se sinta agradecida, Ophelia, por não ter de fingir ser minha esposa. Tenho a sensação de que eu seria um diabo difícil de se lidar.

— Um diabo difícil de se lidar. — Ophelia repetiu, colocando um cotovelo na mesa e apoiando o queixo no punho. — Realmente, senhor? Como?

Os lábios dela estavam curvados para cima, e ela estava lutando contra a vontade de simplesmente abandonar o assunto e se esconder de novo atrás de uma conversa segura e amena. Mas, ao mesmo tempo, um sentimento de travessura coquete que não reconhecia como pertencente a ela a estava fazendo seguir em frente. Jo mal se reconhecia. O que ela estava fazendo? Flertando deliberadamente com aquele homem?

Podia ser um flerte de brincadeira, mas ainda era um flerte, não era? A estava divertindo muito, com certeza, mas até que ponto continuaria soando como uma brincadeira? Ela nunca tinha flertado com ninguém, nem mesmo de brincadeira, então honestamente não tinha muita noção de como fazer aquilo.

O médico balançou a cabeça.

— Termine seu café. — orientou. — Temos um chalé a visitar.

 

O Chalé na verdade era uma casa resistente, quadrada, de pedra cinzenta com um telhado de ardósia vermelha. Parecia que deveria ter pelo menos quatro aposentos no andar de cima e mais uns tantos quartos no andar de baixo. Havia uma varanda na parte da frente e uma clarabóia no telhado acima dela. Um jardim formal a rodeava, delimitado por uma cerca de madeira caiada.

Havia um celeiro considerável em um canto. O que obviamente tinham sido canteiros de flores em um momento estavam nus para além de algumas ervas daninhas, mas a grama havia sido cortada recentemente. Sua imensidão verde era salpicada por margaridas ou por botões de ouro.

— Isso é um chalé?

— Bem, — Levi disse. — não é uma mansão, mas também não é o abrigo de um eremita.

— É uma casa. — Jo disse. — Uma bela casa. Pensei que você a tivesse vendido para se mudar para Londres.

— E vendi. — o médico respondeu. — Mas tia Florence a comprou de volta, por teimosia, e me devolveu ela, dizendo que não se vendia presentes que lhe eram dados.

Jo sorriu.

— E desde então ela esteve vazia?

Ele acenou.

— Sim, esteve. Eu pago alguém para vir ocasionalmente cuidar do jardim, quando sobra algum dinheiro, o que não é comum. Mas é o máximo que consigo, com minhas condições.

Levi a levou em uma excursão pelo chalé.

Era bastante óbvio que ninguém visitava o lugar em muito, muito tempo. Uma fina camada de poeira parecia cobrir cada centímetro quadrado, do chão ao teto, e todos os móveis estavam cobertos com lençóis. Mas a medida que Levi foi falando, Ophelia tornou-se capaz de visualizar em mente como o lugar deveria ter parecido em seus tempos de atividade, quando tinha abrigado o grupo de soldados feridos sob a responsabilidade dos cuidados de Levi.

Primeiro, ela quis ver onde todos tinham ficado durante os anos em que o Chalé servira de hospital. Ele mostrou-lhe os quartos onde cada um deles tinham ficado, dando atenção particular aos quartos de seus três amigos; O Duque de Barclay, o Conde de Lannair e o Visconde Bedwyn. E o tempo passou rápido enquanto ele contava algumas histórias sobre cada um deles e seus ferimentos e o tempo que tinham passado ali para se recuperarem - por incentivo de Jo.

— Pode parecer estranho para você que eu me lembre desses anos com tanto carinho — ele falou, em determinado momento, quando tinham parado naquele que tinha sido o quarto de William. — Ele gostava de assistir o rio daqui, embora não pudesse vê-lo. Ele gostava de ouvi-lo, depois que sua audição voltou, e ele mantinha a janela aberta todos os dias, mesmo nos dias mais frios, para que pudesse sentir o cheiro da água doce e das plantas. Eu não conseguia sentir esses cheiros, mas ele sim. Coisa da cegueira, acredito.

Levi parecia de repente muito saudoso.

— Ele sofreu muito. — concluiu. — Todos eles sofreram. E às vezes era quase insuportável assistir isso quando havia tão pouco que eu pudesse fazer para aliviar esse sofrimento. Mas, apesar de tudo, aqueles anos foram os anos mais felizes da minha vida.

— Eu diria que você viu o sofrimento em sua pior forma, e a resistência humana em sua melhor. — disse Jo. — Eu não conheço tão bem todos os pacientes que passaram por aqui, é claro, só os três que se tornaram seus amigos. Mas eles parecem ser seres humanos extraordinários, todos eles, e eu acredito que hoje são quem são pelo menos em parte por causa de tudo o que sofreram, e não apesar desse sofrimento.

— Tive o privilégio de conhecer eles e amar eles como se fossem minha família — Levi respondeu, enquanto começava a conduzi-la até o quarto onde Griffith ficara.

— Eu acredito que você teve, — concordou Jo. — e que eles também tiveram o enorme privilégio de conhecer você e ser amados por você.

Aquela talvez fosse uma opinião meio tendenciosa, é claro.

— Por que fez isso? — Ophelia perguntou, quando entraram no quarto do Conde de Lannair.

— Transformar minha casa num hospital? — ele perguntou enquanto olhava para as paredes e o chão do quarto. — Eu realmente não sei se onde a ideia veio. A casa parecia vazia e meio opressiva, quando a ganhei de Tia Florence. Eu me sentia vazio e oprimido. Longe do campo, minha vida estava vazia e sem sentido, meu futuro parecia vazio e desagradável. Não havia nada além de vazio dentro de mim. Como encher minha casa de homens sequelados e feridos poderia me ajudar com isso? Não sei.

Jo ficou pensativa por um momento.

— Talvez, — começou. — porque você estava acostumado a cuidar, e continuar fazendo isso, mesmo longe do campo, fosse o que precisava para continuar feliz.

Ophelia acreditava naquilo, pela forma como ele falara anteriormente sobre sua aspiração e sua ligação profunda com a profissão. Estava bem claro que Levi Holroyd considerava a medicina como mais que uma profissão; era sua paixão, sua aspiração. Por ela, ele perdera todos os laços com sua família mas, em compensação, parecia ter encontrado outra naqueles três fiéis amigos pela qual melhora dera tudo de si.

Ophelia nem conseguia imaginar como tinha sido, para ele, passar aqueles anos dedicando-se exclusivamente a tratar as mazelas físicas e emocionais daqueles homens. Estar rodeado de pessoas que experimentaram tamanho sofrimento, e sentir-se no dever de servir de suporte para elas. Ele dera tanto de si mesmo, que era incrível que ele ainda tivesse algo sobrando.

Mas esse era o mistério do amor, não? Quando mais se dava, mais se tinha.

Eles seguiram caminho pelo corredor e entraram no quarto seguinte.

— Esse é um bom palpite. — o médico respondeu, e então sorriu para Jo. — Mas, por favor, peço que não exponha isso aos outros, senão vão passar um ano fazendo piada disso.

Jo jurou que não diria nada. Então Levi sentou-se na cama que um dia fora do Conde de Lannair. Ele espalmou uma das mãos sobre o colchão coberto, e deslizou-a de um lado para o outro, distraidamente.

— Quando ele chegou, — o médico disse. — consultei outros colegas médicos, e todos pareciam concordar que a melhor opção, se ele quisesse sobreviver, era que amputássemos suas duas pernas. Mas Griffith não quis nem ouvir falar disso, e disse que preferiria morrer a ter as duas pernas amputadas.

Jo o ouviu em silêncio. Griffith era o nome do Conde de Lannair, ela sabia, pois Levi a tinha dito. O Conde era o mais novo do grupo; algo como vinte, vinte e um anos, no máximo. Ele fora ferido muito novo, e Ophelia não conseguia nem imaginar como a ideia de perder as pernas teria soado para um garoto de dezesseis, dezessete anos.

— Se as pernas não fossem amputadas, suas chances de viver seriam ainda menores. — ele prosseguiu. — Eu quase me arrependi. Nunca vi ninguém sofrer tanta dor quanto Griffith.

— Você não esperava que ele fosse sobreviver?

— Pelo contrário. — o médico respondeu. — Olhei em seus olhos no dia em que o trouxeram para cá, e soube que Griffith era teimoso demais para morrer, aquele fedelho.

Havia um sorriso em sua voz, como sempre parecia haver quando ele falava de qualquer um daqueles três. Mas parecia haver um carinho muito particular quando ele mencionava o Conde de Lannair. Quando ele falava sobre o Visconde ou sobre o Duque, parecia que ele estava falando de irmãos seus, mas quando ele falava do Conde de Lannair, havia sempre um toque paternal em suas palavras.

— Você é muito afeiçoado ao Conde, não é? — Jo perguntou. — Fala dele como se fosse um filho seu.

Levi deu risada.

— Eu certamente não tenho idade para ser pai de Grifo, — retrucou. — mas se você estiver certa, acho que pode ser porque Griffith tem uma idade próxima de meu sobrinho, Brendan.

— O Marquês de Stanbrook. — falou Ophelia. — Me lembro dele, do jantar na casa do Visconde e da Viscondessa Haylock.

Ela também se lembrava de algumas coisas que observara nas palavras e atitudes do Marquês, assim como de Levi e da mãe do marquês, a Duquesa de Kennard. Talvez aquela fosse a hora de esclarecer isso melhor.

— Levi, — Jo chamou. — Senhor Holroyd.

— Você viajou comigo de carruagem sozinha até Bath, Ophelia, não acha que já pode me chamar pelo nome? Pois eu quero chama-la pelo seu.

Jo balançou a cabeça, como se estivesse lidando com uma criança particularmente travessa.

— Levi, — ela repetiu. — me perdoe se isto soa invasivo, mas o que acontece entre você, o Marquês e a Duquesa de Kennard? Notei que havia algo no ar... Durante aquela noite, no jantar.

— Ah, — ele disse. — eu não lhe contei esta parte da história, contei?

Ophelia balançou a cabeça negativamente. Ele voltou-se por um momento na direção da janela ao lado da cama do Conde de Lannair. Então, após um instante, falou:

— Você já sabe sobre o conflito entre mim e George e qual foi a base para ele.

Jo anuiu.

— O que você não sabe, é que houve mais além disso. — o médico continuou. — Quando a Duquesa casou-se com George, ela era somente a senhorita Elizabeth Hayford. Filha de um Conde, bisneta de um Duque, ela era a esposa ideal para George. No entanto, ela era oito anos mais nova que ele quando se casaram. Não uma diferença imensa, quando comparada à diferença entre outros casamentos da aristocracia. Mas quando eles casaram-se, Lizzie era somente uma jovem de vinte e quatro anos, enquanto George... George era o Duque de Kennard, desde os dezessete anos.

— Não sabia que ele tinha assumido o título com essa idade.

— Meus pais faleceram quando eu tinha um ano de vida. Um naufrágio infeliz à caminho das Índias. — Levi explicou. — George tinha dezessete. Ele sempre foi o Duque de Kennard, desde que me lembro. Ele agia como se fosse muito mais velho do que realmente era, e Lizzie agia como se fosse muito mais nova do que realmente era. A situação entre eles era difícil, veja bem, e Elizabeth era então a única mulher numa casa só de irmãos. Ela não tinha muitas amizades, nenhuma verdadeira, e não sabia nada de George. Ela só o tinha conhecido no dia em que ele pedira sua mão em casamento, na frente dos pais dela. E George não parecia muito atento às dificuldades que a esposa andava tendo ao tentar se adaptar à nova vida e à nova família.

— Mas você estava atento a isso. — aquela era uma suposição. Pelo que Ophelia conhecera de Levi Holroyd, parecia bastante claro a ela que ele tinha um dom particular em identificar e lidar com os problemas que os outros andavam enfrentando.

— Eu percebi isso. — Levi concordou. — E ofereci a ela um ombro amigo. Ofereci a ela meu apoio. Eu tinha somente dezesseis anos, na época, mas Lizzie identificou-se mais rápido comigo que com George, que tinha trinta e dois e agia como se tivesse cinquenta. Ela agarrou-se à mim, e eu retribuí o gesto, porque já estava enfrentando problemas com George e suas opiniões sobre meu desejo de estudar medicina, e também estava precisando de alguém para chamar de aliado. Mas George não viu isso com bons olhos.

O médico balançou a cabeça.

— Eu não compreendo o porquê, para ser honesto. Talvez ele tenha se sentido ameaçado ao ver que eu tinha conquistado algo que até então ele não conseguira conquistar; a confiança e a afeição de Lizzie. Talvez ele tenha sentido ciúmes, por eu ser mais novo. Acho que ele achava que isso me tornava de alguma forma mais atraente para Lizzie. Não sei. O que sei é que, quando Brendan nasceu, George colocou na cabeça que o garoto na verdade era meu, não dele.

Céus. Isso explicava muito, na verdade. As palavras do Marquês de Stanbrook ecoaram na mente de Ophelia. Meu tio é inocente de tudo que é acusado. Ela sabia que havia ali algo mais que somente uma mágoa derivada de opiniões diferentes. Só não sabia que seria algo assim. Estranhamente, o Marquês de Stanbrook lembrava ao tio, principalmente quando sorria.

No entanto, ouvindo-o contar aquilo, Jo sabia que não era possível que houvesse qualquer verdade naquela acusação. Levi parecia bastante melancólico, e não era para menos; Ophelia não podia conceber como tinha sido para ele ser acusado dessa forma pelo irmão. Como ela teria reagido, se Ade tivesse feito algo semelhante contra ela?

Era ridículo. Era inconcebível. Impensável. Era...

— Fui embora para Edimburgo um pouco depois. — Levi concluiu. — Como pode imaginar, com o posicionamento de George contra meus estudos e sua acusação contra mim, tornou-se insuportável permanecer. Além disso, eu não queria mais prejudicar Lizzie. No dia em que eu parti, eu e George brigamos feio... E eu disse a ele que poderia me criticar o quanto desejasse, mas que eu não toleraria que ele desrespeitasse Elizabeth dessa forma. Ela sofreu muito, Ophelia, mas nunca abandonou os próprios princípios. Ela pode nunca ter amado George, mas nunca faria algo como trai-lo, mesmo que isso significasse sua própria infelicidade. Ela era boa demais para ele, era o que eu costumava dizer, mas hoje vejo que na verdade ela era boa demais para qualquer um. Ainda é.

— E você também. — Jo acrescentou, quando ele por fim acabou.

O médico franziu o cenho em sua direção, parecendo não ter entendido suas palavras. A governanta explicou:

— Eu posso estar indo além do que me cabe, Levi, — disse. — mas pelo pouco que conheço do senhor e de toda essa questão com seu irmão... Posso ver que o senhor é bondoso demais para crucifica-lo, como a maioria das pessoas certamente estão dispostas a fazer.

Inclusive eu. A vida de George Holroyd podia ter sido como foi, mas nada justificava, na concepção de Ophelia, o que ele fizera ao irmão mais novo. Todo seu contexto de vida poderia explicar suas ações... Mas justifica-las? Jamais. Não havia justificativa plausível para o que ele tinha feito.

O médico se levantou da cama, e rumou afim de atravessar a porta de volta ao corredor. Ophelia o seguiu, e ele entrou no último dos quartos daquele lado da casa. Por um instante, Jo achou que a conversa tivesse terminado ali, mas estava enganada.

— George cresceu sob muita pressão. — Levi disse. — Uma pressão que eu jamais serei capaz de compreender, mas sobre a qual entendi um pouco ao conhecer Aiden. O Duque de Barclay. Esses homens com muito poder nas mãos, Ophelia... Eles não nascem do jeito que são. A esmagadora maioria deles é criado para agir dessa maneira. Apesar de tudo, não consigo não me compadecer com sua situação. Tanto a de Aiden quanto a de George.

Ele parecia, de repente, um tanto reflexivo.

Poder é um privilégio, e poder é uma doença. — recitou. — Eu li isso quando era criança, num livro. Essas foram palavras ditas por uma governante. Uma princesa, se não me falha a memória. Eu não as compreendi bem na época em que as li, mas depois que conheci Aiden Gillingham... Acho que finalmente pude entender o que elas significam.

O médico encostou e deslizou a mão numa das paredes daquele quarto que, provavelmente, tinha pertencido ao homem supracitado.

— Esta era a enfermidade do Duque de Barclay? — Ophelia perguntou, um tanto cética. — Foi isso que o fez ser internado nesse chalé? Poder?

Levi abriu um leve sorrisinho sem humor.

— Pode-se dizer que sim. Os homens adoecem por uma série de razões, senhorita Wright. Não cabe a mim julgá-los por isso, apenas tratar e fazer o melhor para que se recuperem.

— E o Duque se recuperou?

— Não sou eu quem devo confirmar ou negar isso. — o médico respondeu. — Digamos que ele melhorou o suficiente para retomar a própria vida. Mas não sei se há uma cura verdadeira para ele. Para nenhum deles. Mesmo assim, a vida deve continuar.

— A vida às vezes dificulta um pouco essa tarefa.

Isso fez Levi dar uma risada.

— Costumamos presumir que a vida é muito mais fácil para os outros do que para nós mesmos. — disse ele. — Suspeito que raramente seja. Eu diria que a vida não foi feita para ser fácil.

— Que rude da parte de quem a inventou.

Trocaram sorrisos. Mas então o sorriso dele esmaeceu aos poucos.

— Acho que está na hora de ir. Ou nos atrasaremos para a conferência.

 

Eles fizeram uma pequena parada na hospedagem afim de se trocarem.

A parte mais difícil para Ophelia foi o penteado. Tinha treinado aquelas tranças um milhão de vezes com Adelaide, mas descobriu, enquanto se arrumava, que tinha dez polegares no lugar dos dedos, e que todos estavam quebrados. Ela sentia-se ridiculamente nervosa – expectante, na verdade. Mas não era só sobre a conferência em si.

Sentia-se expectante sobre a ideia de passar mais uma noite na companhia de Levi, de caminhar ao seu lado, não como uma governanta, e sim como uma dama aspirante das ciências – a dama que ela teria sido, em um universo diferente. Em uma vida diferente. A vida que sempre tinha desejado. E com o homem com o qual permitira-se sonhar nos últimos dias, mas só aquilo.

Um sonho. Era o que tudo aquilo era. Levi Holroyd não era seu, e ela não era a dama aspirante a cientista. Mas ah, por uma noite, só por aquela noite, ela poderia permitir-se fechar os olhos e fingir que sim. Ninguém precisava saber. Nem mesmo ele.

Aquele seria seu segredo. Seu mais precioso segredo.

Quando Jo por fim desceu até a recepção, Levi já estava lá. Ele deu uma boa olhada nela quando parou no último degrau. Uma olhada demorada, como se embebesse de cada detalhe que seus olhos captavam. O vestido era de um verde-claro primaveril. O tecido da roupa – Seda? Cetim? – reluzia e cintilava sob a luz baixa. As luvas que iam até metade do braço eram de um dourado fosco, assim como os sapatos. Um xale de mesma cor cobria seus ombros. No pescoço, usava uma corrente de ouro bem simples com um pequeno pendente de diamante. Ouro e diamante também reluziam nos lóbulos das orelhas, sob o cabelo. Um leque de marfim pendia de um dos pulsos.

Todos presentes de Ade. Ophelia nunca tinha se considerado uma mulher particularmente atraente. No máximo, sabia que sua aparência era passável – não desagradável de se olhar, mas também nada que faria um homem parar no meio de rua movimentada, ou mesmo num salão de baile semivazio. Mas, naquele momento, pela primeira vez em sua vida, ela se sentiu irresistível. Arrasadora. Linda de verdade.

Para Levi Holroyd, ainda que talvez para mais ninguém. Oh, isso era perigoso.

— Vamos indo, prima? — a voz do médico trouxe-a de volta ao mundo real. Ele falara num tom de voz suficientemente elevado para que não só ela ouvisse-o. Ah, é claro. O teatrinho que tinham combinado.

— É claro, primo. — Jo respondeu, com a maior graciosidade que pôde, descendo o último degrau.

Eles entraram no coche e atravessaram parte da cidade até a propriedade Gracechurch. Levi explicou que a propriedade não pertencia a seu amigo, mas que ela lhe fora cedida para o sarau. Quando pararam diante das portas de entrada, Jo prendeu a respiração. Não era uma casa, mas praticamente um castelo.

Tinha um espetáculo imponente de torres quadradas com acabamento que lembrava cobertura de bolo. Toda a superfície das paredes recebido um reboco, com pedrinhas misturadas à massa, de modo que a fachada cintilava sob a luz do crepúsculo. Luzes brilhavam em todas as janelas, grandes e pequenas. À volta deles, jardins primorosos perfumavam a noite. Ela ainda não os tinha conseguido admirar direito, mas o aroma envolvia seus sentidos, deixando-a tonta.

Ophelia já vira e visitara muitas casas impressionantes, e outras tantas elegantes. Mas aquilo? Aquilo era pura opulência. Eles entraram numa curta fila de entrada, mas não demorou para que sua vez de terem os nomes anunciados chegasse. O mordomo inclinou-se na direção de Levi, aguardando que ele o informasse.

— Sir Levi Holroyd, de Derbyshire, e a Senhorita Ophelia Joanne Wright, de Midlands.

Assim que entraram no salão, eles foram imediatamente abordados por um cavalheiro um pouco mais velho que Levi, mas que ainda não parecia ter chegado aos quarenta. Ele tinha sobrancelhas e cabelo escuro e um rosto comum, mas algo nos seus olhos revelava um quê de inteligência notável. Sorrindo, ele estendeu a mão para Levi.

— Holroyd! — exclamou. — Como é bom vê-lo. Por um momento, acreditei que não viria. Você raramente abandona aquele buraco fumacento da capital.

— Precisava respirar um pouco do bom e puro ar do campo, Baily. — o médico retrucou, bem-humorado. Então relanceou um olhar para Ophelia. — E também devia um favor a uma prima querida. Esta é a senhorita Ophelia Wright. Ophelia, este é Francis Baily*. Como eu tinha dito, Francis e eu nos conhecemos em Edimburgo.

— Não esperava que Holroyd pudesse ter uma beldade dessas em sua família. — o cavalheiro, Baily, retrucou, com graciosidade.

Levi ergueu as sobrancelhas.

— É o sangue.

— Não o mesmo que o seu, certamente. — Sir Francis retrucou, gargalhando junto com o colega em seguida. — O que a traz até Bath, senhorita Wright? Principalmente, o que a traz até esta alcova onde os homens mais insanos da Inglaterra estão se juntando?

— Sinto dizer que Ophelia pode também ser adepta desta insanidade em particular, Francis. — Levi se adiantou. — Acontece que minha prima é uma estudante entusiástica do mundo astrofísico.

O cavalheiro mais velho olhou Ophelia com interesse renovado.

— É mesmo? — perguntou. Então abriu um largo sorriso. — Ora, é claro, Holroyd nunca viria a este lugar voluntariamente. Devo agradecê-la então por tê-lo arrastado até aqui, senhorita Wright, e devo me desculpar com você, Holroyd.

— Por quê? — o médico indagou.

— Por tirá-lo de tão adorável companhia. — Francis respondeu, estendendo o braço para Ophelia. Jo hesitou, mas Levi abriu um sorrisinho, incentivando-a, e ela por fim envolveu seu braço ao do homem. — Vamos, senhorita Wright. Que tal conversarmos um pouco, de estudante para estudante?

Francis Baily era um homem muito simpático e educado. Ao vê-lo se aproximar, Ophelia francamente esperara ser recebida com bem menos disposição. Não que acreditasse que ele fosse ser descortês – homens como ele raramente eram. Mas estava certa de que, ao ter seus interesses mencionados, ela seria ouvida no máximo com um sorriso educado, mas distante, o tipo de sorriso que os homens davam às mulheres quando sentiam-se desconfortáveis com suas conversas mas não desejavam ser rudes ao interrompê-las.

Entretanto, não foi o que ocorreu com Baily. Ele tomou a iniciativa da conversa, dando uma volta no salão principal com Ophelia à tiracolo e dividindo com ela um pouco de seus estudos recentes. Não demorou muito para que Jo ficasse à vontade com a conversa, e que percebesse que aquele homem era, senão genial, alguém muito perto disso.

Ele contou-a que estava trabalhando num projeto particularmente ambicioso, que pretendia intitular de “Catálogo das 2881 estrelas”. Comentou que tinha um observatório particular em sua pequena propriedade, ali em Bath, e que o usava para seus estudos.

— Por que não em Londres, senhor? — Jo perguntou a ele. — Por que montar um observatório em Bath, e não em Londres, onde está o maior fluxo de conhecimento acadêmico?

Sir Francis sorriu para ela.

— Pois nós astrônomos não somos somente acadêmicos, Senhorita Wright. — ele respondeu. — Somos muito além disso. Somos admiradores do mundo natural. Já tentou ver estrelas no céu de Londres? É praticamente impossível. Enquanto aqui em Bath, o ar e o céu estão sempre limpos e plenamente visíveis.

Então Ophelia começou a fazer-lhe mais perguntas sobre aquele projeto em particular, e Francis respondeu todas com muita empolgação e disposição. Mas sua conversa teve de ser interrompida pelo anúncio do começo da palestra, que era o atrativo principal do evento. Eles se reencontraram com Levi, que estivera revendo e conversando outros colegas de Edimburgo presentes ali, de acordo com ele.

Jo e Levi arranjaram lugares para si mais ao fundo do salão. Levi enfrentou com muita valentia a palestra, que certamente foi dolorosamente entediante para ele. Mas Ophelia bebeu cada palavra dita com o anseio de alguém que estava sem água a dias, em pleno deserto. Ela manteve os olhos fixos no orador durante todo o processo, tanto que mal notou as vezes em que o médico a seu lado relanceou olhares em sua direção, sorrindo consigo mesmo.

Quando a palestra acabou, Sir Francis voltou a abordá-los, mas dessa vez Levi não se afastou. Ficaram conversando os três juntos, e Jo até chegou a mencionar um pouco de seus próprios focos de estudo.

— Acho o trabalho de Digges com o Paradoxo da Noite Escura particularmente fabuloso. — ela viu-se dizendo, em determinado momento, para Sir Baily. — Devo ter lido aquele postulado pelo menos um milhão de vezes.

— O Paradoxo é certamente intrigante. — Sir Francis concordou. — Ele abriu nossos olhos sobre uma verdade muito simples que estava literalmente debaixo de nossos narizes.

Levi pigarreou levemente.

— Agora em inglês, por favor?

Jo e Baily riram, antes dela começar a explicar a Levi do que estavam falando. Passaram mais algum tempo conversando. Nesse meio tempo, outros cavalheiros e damas vieram e foram, parando para cumprimenta-los em seu caminho. Um casal em particular trocou breves palavras com Baily, que logo em seguida voltou-se na direção de Jo e Levi com um pedido de desculpas:

— Lamento que minha presença é exigida. — disse. — Mas foi bom revê-lo, Holroyd, meu velho, e foi um prazer conhece-la, senhorita Wright. Espero que possamos nos encontrar novamente para continuarmos nossas discussões. Tenho planos de, num futuro não muito distante, poder criar um lugar onde todos nós entusiastas do universo possamos nos reunir afim de pesquisarmos e estudarmos juntos, e seria um prazer incomensurável vê-la lá, algum dia.

Por um momento, Ophelia não compreendeu muito bem o que tinha ouvido. E depois que compreendeu, não acreditou.

— Este é mesmo um convite verdadeiro, Sir Baily? — perguntou, encantada. — Ou somente um convite educado? Por favor, me seja honesto, pois dependendo da resposta, acho que corro o risco de desmaiar aqui mesmo.

O cavalheiro riu, divertidamente.

— É um convite verdadeiro, é claro. — assegurou.

— Ah, você e este seu delírio de seu clubinho de novo, não é Francis? — Levi retrucou. — Você fala disso desde a universidade.

— Mas está mais perto do que nunca, Levi. — Baily assegurou. — Já tenho até mesmo o local, na capital. Mas até lá, senhorita Wright, suas cartas serão sempre bem recebidas por mim e sua presença em Bath será sempre bem agraciada. Por favor, me escreva ou venha visitar-me novamente, então talvez possa leva-la ao observatório que mencionei.

Ophelia deu uma resposta amena antes dele partir. A noite estava sendo maravilhosa, mas ela não podia deixar-se empolgar demais. Se o fizesse, talvez se sentisse tentada a fugir da realidade – e fugir da realidade só a causaria dor, pois teria de voltar para ela novamente, depois. E a sua realidade era a de que era uma governanta, uma professora, não uma cientista. E que aquele mundo de Sir Baily, o mundo sobre o qual tinham tanto conversado durante aquela noite...

Aquele mundo nunca tinha sido dela. Ele nunca estivera ao seu alcance, e nunca estaria.

Ela engoliu o pensamento com resignação, mas Levi pareceu ter notado sua reação, pois assim que Sir Francis partiu, ele voltou-se a ela:

— Você deveria escrever para ele, sabe. — falou. — Francis não costuma ser ameno nas coisas que fala. Acredito realmente que ele tem interesse em conversar com você e conhecer um pouco mais de suas ideias e...

— Talvez. — Jo interrompeu-o, rapidamente. Então, notando que talvez tivesse soado um tanto rude, acrescentou, com um sorrisinho amarelo: — Quem sabe? Talvez eu escreva mesmo. Pode ser interessante.

Mas suas palavras não soaram convincentes nem mesmo para si mesma. Levi a olhou durante um instante a mais. Então, incapaz de simplesmente continuar sustentando aquele olhar – e a própria mentira –, Jo deu um passo na direção da saída:

— Acho que preciso de um pouco de ar.

— Mas as danças começarão logo. — o médico disse.

— Ah, não tenho interesse em dançar. Não essa noite.

Ele anuiu, então.

— O que preferir

Eles saíram pelas portas de vidro, enquanto os jogadores se instalavam nas mesas e se formavam duas fileiras de pares prontos para iniciarem a primeira quadrilha da noite. Ninguém notaria a saída deles, pensou Jo.

— Aah — exclamou Levi, parando e olhando o céu assim que tinham posto os pés para o lado de fora do castelo. — Sabia que seria uma noite luminosa. Não há nenhuma nuvem no céu, e olhe, a lua está quase cheia.

Ophelia acenou.

— Com um milhão de estrelas para complementar sua luz. — concordou. — Por que as pessoas não ficam constantemente impressionadas com o tamanho e a majestade do universo, eu me pergunto.

— Deve ser o hábito. — o médico disse. — Estamos acostumados com ele. Acho que se fôssemos cegos de nascença, e de repente começássemos a ver, ficaríamos tão avassalados por uma noite como essa que ficaríamos olhando o céu até o amanhecer. Ou talvez simplesmente começaríamos a supor que estamos no centro de tudo e que somos mestres que tudo que vemos. O que eu honestamente duvido que seja verdade.

O ar estava deliciosamente fresco, depois do calor do dia. Ophelia baixou o xale até os cotovelos e inspirou profundamente a doçura da noite.

— Sair foi realmente uma ideia inspirada. — comentou, encarando o céu com atenção.

— Se você quer realmente uma vista de tirar o fôlego, — Levi falou. — deveria subir ao topo daquela colina ali.

A colina para a qual ele apontou fazia parte do parque onde a propriedade estava. A elevação era coberta por bosques de giestas, flores silvestres e gramíneas. Não tinham passado por lá em nenhum momento, desde sua chegada.

— A vista deve ser bonita. — Jo disse.

O médico a encarou com um meio-sorriso que parecia doce e pueril... Mas que de pueril não tinha nada.

— É muito longe para ir agora?

Ocorreu à Jo que sim, aquela era uma distância muito longa para que uma dama solteira fosse com um cavalheiro solteiro de noite, mas ela desprezou o pensamento quase no mesmo segundo. Tinha vinte e seis anos e era uma mulher independente. Não era uma jovenzinha delicada amarrada pelo decoro e por companhias vigilantes.

Acontecia que aquele cavalheiro em particular não era qualquer cavalheiro. Mas ela queria tanto ir, mesmo assim. Se isso a pusesse mais perto das estrelas, o risco valia, não? Tinha que valer.

— Não. Não é longe. — murmurou, suavemente, por fim.

Eles caminharam lentamente, conversando. Nenhum dos dois pensou em levar uma lanterna, mas de todo modo, não era necessário; a noite estava tão iluminada que quase parecia dia. A colina era mais íngreme do que parecia. Quando chegaram ao topo, Ophelia já estava ofegante e seus pés estavam meio doloridos por terem pisado em pedras pontiagudas durante o caminho. Mas assim que pararam, ela imediatamente decidiu que tudo tinha valido a pena, ao ver a vista.

— Oh, olhe! — Jo exclamou, encarando o céu. Daquela altura, ela tinha uma visão mais vasta, e uma ilusão quase palpável de que estava um pouco mais perto do tapete estrelado acima de sua cabeça. Mas Levi não encarava o céu, e sim encarava ela, com o cabelo meio despenteado pela brisa que ali em cima era quase uma ventania.

— Eu sabia que você ia gostar. — o médico falou, sorrindo.

Mesmo àquela hora da noite, daquela posição, Ophelia ainda conseguia ver milhas e milhas de terra, dormindo pacificamente sob o céu de verão. Mas foi um lago, não muito distante de onde estavam, que prendeu a atenção da governanta; ligeiramente prateado, o reflexo da lua formando uma larga e brilhante faixa que atravessava-o verticalmente.

Jo permaneceu olhando tudo por mais um minuto, maravilhada, antes de se voltar ao médico novamente:

— Ah, eu estou tão feliz que me trouxe aqui! — exclamou. E não estava falando somente da colina.

 Ela ainda não estava certa se aceitaria o convite do Senhor Francis ou não, mas só ter tido a oportunidade de conhece-lo, de conversar com ele de igual para igual, de sentir-se parte de um grupo que a respeitava, apesar de seu sexo, de ter uma oportunidade... Tudo aquilo tinha sido muito além do que Jo esperava de Bath, e da própria vida, na verdade.

Levi sorriu para ela.

— Não fiz isso somente por você. — falou. — Mas por mim, também.

Jo inclinou a cabeça para o lado. O médico explicou:

— Pois vê-la feliz me deixa feliz também, Ophelia.

Ophelia sorriu de volta para ele, meio encabulada.

E então pensou, uma vez mais, enquanto olhava para aqueles olhos sorridentes, que ele era um homem terrivelmente solitário. Ele mesmo tinha o admitido um pouco depois deles se conhecerem. E ocorreu-lhe que talvez a única maneira que ele encontrara de lidar com a própria solidão fora se doando, curando os outros e fazendo as outras pessoas felizes – a visita ao chalé e agora, aquelas palavras, a fizeram chegar nessa conclusão. Não recebendo. Talvez ele nem soubesse como receber.

Quem ou o quê tirara essa habilidade dele?

— Eu sugeriria que sentássemos um pouco. — ele continuou. — Mas acho que isso sujaria o seu vestido. Pode se sentar no meu casaco, se quiser.

— Meu xale servirá bem. — Jo garantiu, tirando-o e forrando-o no chão. — E ele é grande o suficiente para nós dois.

Ela se sentou sobre o xale, e em seguida o médico sentou-se a seu lado.

— Eu costumo passar aqui, quando venho à Bath. — ele contou. — Quando quero pensar. Até no no inverno, embora fique frio e ventoso. Isso é o que há de mais bonito na natureza, acho. Ela nunca é igual, mas sempre é bonita e consoladora, do próprio modo.

Eles permaneceram sentados, num silêncio agradável. Então ele começou a pergunta-la sobre o trabalho, e ela falou um pouco sobre Jacob, Lorde e Lady Beaumont, suas aulas e os outros criados da casa. Ophelia falou muito mais do que era costume seu, como costumava acontecer sempre que estava perto de Levi Holroyd, estimulada pelas perguntas dele e seu evidente interesse em saber as respostas.

— E você? — perguntou, em determinado momento. — Ser médico não parece um serviço fácil.

Então, Levi explicou para ela como funcionava seu trabalho. Ele tinha alguns pacientes fixos, parte deles sendo os homens que tinha tratado no chalé anos atrás, mas também costumava trabalhar em hospitais ocasionalmente, principalmente por causa de Thomas – aquele era o nome de seu aprendiz. Levi disse que ela poderia conhecê-lo quando voltassem a Londres, se quisesse. Contou a ela um pouco sobre a história do garoto, e também falou um pouco mais sobre seus amigos.

Por fim, eles ficaram em silêncio de novo. E Jo ainda permanecia maravilhada pela visão acima de sua cabeça. Mas estava começando a ficar tonta de tanto manter a cabeça inclinada para trás para poder ver. Por isso, se deitou sobre o xale e cruzou as mãos atrás da cabeça.

— Ah, — suspirou. — assim é bem melhor. Eu adoraria saber quantas estrelas exatamente estamos vendo.

— Se você realmente quiser conta-las, por favor, não se incomode comigo aqui. — o médico disse, rindo e virando a cabeça para olhá-la, deitada.

— Não adiantaria. — Jo retrucou. — Não quando sei que há outras tantas que não conseguimos ver.

— Até onde você acha que se estende o universo?

— Até o infinito, é claro.

— Eu sou só um médico, Ophelia, minha mente não abrange o infinito. Tem que ter um fim em algum lugar, não?

— Talvez tenha. Mas a grande questão é, o que há depois do fim?

Ele sorriu, erguendo as mãos em rendição.

— Eu desisto. — declarou, deitando-se ao seu lado enquanto ainda ria.

Jo apontou para uma constelação que parecia muito um forcado meio torto.

— Aquela é Andrômeda. — contou.

— E aquela? — perguntou o médico, mostrando um rabisco que parecia a letra W.

— Cassiopeia.

Ele moveu o dedo um pouco para a esquerda.

— E aquela?

— Agora você me pegou. — a governanta falou. — Não faço ideia.

— Bom, você tinha de ter algum defeito, não é?

Eles riram juntos, mais uma vez. Mas então, após um minuto, Ophelia murmurou:

— Eu tenho bem mais que um defeito.

Levi virou a cabeça para olhá-la com mais atenção.

— Mas nenhum tão grotesco, não que eu tenha notado. — ele argumentou.

Jo balançou a cabeça.

— Você não sabe tudo.

Após alguns instantes, o médico murmurou, com suavidade:

— E você vai me contar?

Ophelia fechou os olhos.

Ela não sabia o que de bom poderia sair disso. Suspeitava que absolutamente nada. Ela evitava sempre que possível rememorar o passado, e nunca permitia que ele ocupasse espaço demais em sua mente – afinal, sempre havia o risco de acabar remoendo-o compulsivamente, algo que além de prejudicial seria completamente inútil. Mas, ao mesmo, sentia-se muito confortável ali. Sob as estrelas, na companhia de Levi Holroyd.

Ela sentia-se próxima daquele homem, estranhamente ligada a ele, como não se sentia há muito tempo com ninguém, a não ser Ade, Adam e Bertha, que sempre estavam longe demais. Talvez fosse pelo fato de ter aprendido tanto sobre ele em tão pouco tempo. Levi Holroyd falara a ela sobre sua família, sobre seus amigos, e seus pensamentos mais íntimos que envolviam não somente eles, como também sua percepção sobre sua vida e sobre si mesmo.

De algum modo, ela não só se sentia confortável ao lado dele, como também sentia-se em débito com ele. Ele andava se esforçando tanto, levando-a até Bath, agindo com toda aquela gentileza e bondade, sem parecer esperar nada em troca... Ele a tinha perguntado, em outra ocasião, se ela realmente queria ser sua amiga.

A esta altura, Ophelia achava que aquilo tinha deixado de ser uma opção. Eles já eram amigos, do próprio modo. E ela estava muito feliz em ter Levi Holroyd como amigo, pois sabia que não conseguiria nada além disso, por parte dele; e isso era bom. Porque fazia com que suas próprias fantasias e sentimentos inapropriados permanecessem contidos.

Mas, se desejava manter aquele amigo em particular, ela sabia que precisaria falar.

— Eu já lhe contei um resumo de minha vida. — Jo começou. — Mas houve alguns detalhes que deixei de fora.

Levi esperou, em silêncio, até que ela prosseguisse:

— Mesmo antes de meu pai morrer, quando eu era mais nova... Minha mãe tinha grandes planos e esperanças para mim. Para Adelaide, minha irmã, também, mas como eu era a mais velha, ela sempre investiu muito das energias em mim. Ela esperava e sonhava que eu me tornasse uma dama exemplar, e arranjasse um bom casamento... Um ótimo casamento, até, que me desse uma vida estável e confortável. Coisa que toda mãe deseja para uma filha, acredito eu.

O médico ao seu lado anuiu vagamente. Jo inspirou o ar da noite uma vez mais antes de continuar.

— Mas eu não estava totalmente de acordo com ela. Não é que eu não quisesse aquilo, mas... Eu era jovem. Tinha outras ambições, outros desejos, muito maiores. Eu cedia e fazia o que ela queria, pois no fundo sabia que ela só queria o meu bem, e porque sabia que minhas chances verdadeiras de conquistar o que eu queria eram mínimas... Mas não demorou até que eu me cansasse. Interpretar um personagem que não condiz com você pode ser algo exaustivo. Houve um momento em que nem mesmo eu sabia diferenciar quem era Ophelia e quem era a dama que minha mãe queria que ela fosse. Não éramos ricos, então o casamento era a melhor chance que tínhamos de conquistar algo, mamãe dizia. A morte de meu pai tornou essa necessidade maior, naturalmente. Mas eu não queria pensar sobre isso. Precisava de um pausa, um descanso.

Jo começou a massagear as mãos ansiosamente.

— Certa noite, — contou. — recebemos um convite para um baile. Eu sabia que mamãe me convenceria a ir, mas não queria. Tudo o que eu queria era uma noite para mim. Uma noite para voltar aos meus livros de astrofísica, uma noite para voltar a parecer um pouco mais comigo mesma. Então eu peguei o convite e o queimei na chama de um lampião que usava para ler à noite. Mas eu não o apaguei. Eu não sei o que deu em mim, eu nunca o esquecia aceso, mas naquela noite eu esqueci.

Ophelia balançou a cabeça, fechando os olhos. Sua próxima fala veio no formato de um longo suspiro:

— O fogo se alastrou rápido. — disse. — Ele primeiro tomou conta de meu quarto. Eu despertei com a sensação de que a pele de meu braço estava sendo esfolada. Mas eram somente as chamas lambendo e consumindo a madeira de minha cama. Eu consegui sair, antes que a fumaça me sufocasse, mas não completamente ilesa. Minha mãe e Adelaide escaparam sem ferimentos, mas nossa casa foi completamente destruída. Perdemos o pouco que tinha nos restado, Ade e mamãe poderiam ter morrido, e tudo por conta de minha ignorância.

Ela achou que Levi talvez tivesse balançado a cabeça, pois logo em seguida ouviu-o falar, suavemente:

— Você era jovem. — ele disse. — Era jovem, e estava sob muita pressão. Era esperado que se sentisse esgotada. Além disso, não fez isso de propósito. Você não queria queimar sua casa. Não queria ferir sua mãe e sua irmã. O que aconteceu foi uma infelicidade, uma tragédia. Não um gesto de crueldade. Estou certo que sua mãe e sua irmã sabem disso.

— Você não conhece minha mãe. — Jo retrucou, abrindo os olhos. — Eu sempre fui um desafio para ela, desde o início. Eu nunca quis cooperar com seus planos, e ela sabia disso. Depois da casa ser destruída, nós ficamos desabrigadas, reféns da boa vontade de outros parentes, a maioria que nem se quer conhecíamos.

— Foi assim que sua mãe foi viver com a irmã dela, imagino.

Ophelia anuiu.

— E você e sua irmã?

— Eu e Ade fomos para outro lugar. Há este parente distante... Ele se chama Adam. Adam nos abrigou e cuidou de nós. Eu devo muito à ele e à Bertha. Bertha é uma criada da casa dele, que também nos ajudou muito durante o tempo em que estivemos lá.

Na verdade, Ophelia devia tudo à Adam e Bertha. Tudo e um pouco mais.

Após o incêndio, ela tivera uma grande dificuldade... Em se reerguer, em se recuperar. Suas feridas – tanto as físicas quanto as emocionais – tinham levado um longo tempo para se curarem e, ainda assim, tinham deixado marcas que suspeitava que carregaria pelo resto de sua vida.

Adam também tivera suas próprias feridas. E ainda tinha. Jo suspeitava que aquilo fora o que acabara ligando-os, no fim de tudo. Adam carregava uma lista de arrependimentos maior do que a dela, e Jo suspeitava que abrigar ela e Adelaide tinha sido a maneira como ele tentara expiar os próprios pecados.

De um modo ou de outro, tinha funcionado. Eles tinham conseguido se reerguer, os dois, cada um da própria maneira e em seu próprio ritmo. Fora Adam quem incentivava Jo a estudar e começar a trabalhar como professora. Essa parte fora até fácil. O mais difícil tinham sido as supracitadas cicatrizes.

De início, Ophelia não suportava o olhar que as pessoas lhe lançavam. Ela também não gostava da própria aparência. Na verdade, nada em si mesma a agradava, e ela era incapaz de enxergar qualquer coisa em seu futuro além da escuridão e reclusão do próprio quarto – afinal, o que faria uma garota que, além de completamente pobre, tinha perdido toda a beleza que um dia poderia ter tido? Não havia mais nada de verdadeiramente atraente em Jo, e isso significava que ela estava perdida. Ela não tinha só destruído a vida da mãe e da irmã, como também tinha destruído a própria vida.

E não havia escapatória.

Ou, ao menos, foi o que tinha acreditado por muito tempo. A mudança de pensamento veio aos poucos, de mãos dadas com a resignação quanto a própria aparência. Ophelia sabia que não era bonita, e sabia que as cicatrizes que marcavam seu braço e parte de seu ombro jamais permitiriam que ela fosse considerada assim, algum dia.

Mas também sabia que isso não mais condenava seu futuro. Com a ajuda de Adam, Bertha e Ade, tinha feito para si mesma um futuro, apesar disso. E realmente sentia-se muito contente por isso.

— Você fala com muito carinho de Adam e Bertha. — ela quase tinha se esquecido, por um momento, de que não estava sozinha.

— Ah. — murmurou. — Sim. Eu me afeiçoei muito a eles, e eles a mim, acho. O amor às vezes tem um jeito estranho de se comportar.

Levi sorriu levemente.

— Tem mesmo. — concordou. — Eu, particularmente, nunca imaginei que três soldados sequelados tornariam-se as pessoas que mais amo em minha vida.

— Nem eu que um viúvo amargurado e uma criada de cozinha me levantariam dos mortos.

Apesar do assunto sensível, eles riram juntos, os dois. Então, pelos minutos seguintes, partilharam de um silêncio sociável e acolhedor.

No entanto... Não demorou para que Jo detectasse outra dimensão em seus sentimentos e sensações. Eles estavam tão próximos que ela era capaz de sentir o calor do corpo de Levi, ao seu lado. Eram um homem e uma mulher deitados juntos no cume de uma colina deserta à noite, sem se tocar, mas quase. Eles conversaram e conversaram. Riram juntos mais de uma vez, dissipando a estranha névoa que tinha sido trazida pelo assunto anterior.

Sim, eles eram amigos, Ophelia pensou, mais uma vez.

Mas não era amizade que trazia aquela percepção quase física da presença dele. Nem que tornava o simples ato de observar as estrelas em... Bom, muito mais do que apenas observar as estrelas. Ela experimentou aquela estranha eletricidade que parecia crepitar entre eles, e secretamente... Gostou dela. Mas ao mesmo tempo, sentiu-se extremamente intimidada.

Tinha medo de si mesma, tinha medo dele. Embora soubesse que nada aconteceria a não ser que permitisse.

Ophelia era incapaz de explicar o que era aquele medo. Mas muito menos se dedicou a explorá-lo, ou aos pensamentos e sentimentos que estavam dominando-a naquele momento. Limitou-se a desfrutar daquele instante, sabendo que quando estivesse de volta à Casa Beaumont, imersa nas atividades rotineiras do dia a dia, recordaria aquela noite e a reviveria em cada momento, cada sensação, e quem sabe até lamentaria muito em privado pelo que poderia ter sido sua vida se não...

Mas não adiantava de nada querer mudar o passado. Nem mudar como as coisas eram e deviam continuar sendo.

— Ophelia, — Levi murmurou de repente. — acho que talvez tenhamos passado tempo demais aqui. Os outros convidados devem ter ido embora, a essa altura. O pessoal do campo costuma se recolher mais cedo. Espero não tê-la comprometido de algum...

— É claro que não. — Jo respondeu, prontamente. Mas se sentou, arrumou o cabelo e se levantou bem rápido, enquanto ele ainda a encarava. — Ninguém nos viu sair. E se alguém nos vir agora no retorno, não importa, não é? Somos só dois amigos que saíram para tomar um ar juntos.

O médico a encarou, como se analisasse seu sorriso amarelo e um tanto forçado.

— Amigos. — ele repetiu, e então abriu um sorrisinho enviesado, nem um pouco parecido com os sorrisos espontâneos que tinha oferecido até então durante aquela noite. — Fico feliz de sermos amigos. Achei que não seríamos mais, após nossa última conversa, na Casa Beaumont.

Eles ainda continuavam muito próximos. Jo se virou e começou a se afastar mas, quando percebeu que talvez sua atitude fosse parecer um tanto brusca, olhou para trás e disse, alegremente:

— Vamos ver quem chega primeiro lá embaixo!

Em seguida, começou a descer a colina correndo, tropeçando, escorregando, gritando e gargalhando e machucando seus pés, até que chegou ao pé da elevação, um pouco depois do próprio Levi. Ele estava sorrindo de novo, um sorriso de verdade, quando Jo parou ao seu lado e adaptou o passo ao dele, ainda sem fôlego e ainda rindo ela mesma.

Eles levaram ainda um minuto para recobrar de vez o fôlego. Ophelia apoiou-se nos próprios joelhos durante o processo, e quando voltou a se erguer, Levi estava de novo muito perto. Ele a observava com atenção, como se estivesse gravando a forma como se parecia naquele momento. Havia algo em seus olhos azuis, algo difícil de se interpretar, a princípio, mas que agitava-se neles, e que começou a deixar Ophelia agitada também.

— Amizade, não é? — ele repetiu, com suavidade, inclinando a cabeça na direção da de Ophelia. — Eu retiro o que eu disse alguns minutos atrás. Essa palavra me parece insuficiente. Não tem a sensação de que somos algo mais que amigos, Ophelia?

O coração de Jo errou uma batida. Mas ela não soube dizer se de deleite ou de decepção. Ela estivera alimentando pensamentos que iam além de amizade por Levi Holroyd há algum tempo, mas somente pois tinha a certeza de que nunca seria correspondida – não havia risco nenhum de encarar a real possibilidade de ter de fazer algo sobre isso. Era muito mais seguro apenas manter tudo dentro de sua mente e de seu coração. Muito mais fácil. Mas agora ele estava ali, insinuando tudo o que ela esperava que nunca insinuasse, tudo o que ela secretamente queria que insinuasse...

Ela balançou a cabeça.

— Não diga isso — protestou, baixo. — Por favor. Não estrague o que compartilhamos. Não tente flertar comigo.

Mas Levi apenas sorriu para ela.

— A última coisa que pretendo é flertar com você, Ophelia. —  então ele baixou a cabeça e encostou os lábios aos dela. A princípio, Jo permaneceu imóvel, e sentiu uma estranha melancolia preencher seu peito. Ela não queria beijá-lo. Ela queria muito beijá-lo. Levi parou um instante, como se estivesse lhe dando a oportunidade de recuar...

Mas Jo não recuou. Ela apenas ficou ali, paralisada, como se qualquer movimento pudesse acabar com o encanto do momento. Ophelia Joanne Wright nunca tinha sido beijada antes. Se aquilo era um beijo, não se parecia em nada com o que ela tinha lido nos poucos livros de romance que pegara secretamente de Adelaide. Era totalmente diferente – e estava muito além de sua capacidade de resistir.

A mão de Ophelia subiu para o rosto dele, indo até sua nuca. Seus dedos passearam pelo cabelo espesso, enquanto a outra mão seguia para a cintura dele, sob o casaco de noite – ela precisava segurar-se em algum lugar, senão corria o sério de risco de tombar para o lado. Acima de qualquer coisa, ela temeu ser horrível naquilo – afinal, não era a voz da experiência no assunto.

Mas Levi foi muito paciente. Ele passou os lábios pela sua boca em movimentos curtos, até que ela reunisse coragem para corresponde-lo, ainda que timidamente. A mão que até então só estava repousada em sua cintura, puxou-o levemente para mais perto. Jo abriu os lábios sob os dele, e ela foi tomada por inteiro pela sensação física daquilo – choque e assombro, prazer e um medo que mais a atraía do que repelia.

O toque de Levi era muito terno, muito gentil, longe de ser brusco ou impaciente. Ele tinha um sabor doce e quente, e parecia ter esperado muito tempo por aquilo. Jo colocou as mãos nos ombros dele e afastou-o.

Com muito mais relutância do que deveria.

Ele não resistiu nem a impediu. Ergueu a cabeça, abriu um meio-sorriso devagar.

— Acho que eu a assustei, Ophelia. — ele disse.

Jo quis abrir a boca e dizer que não. Mas ela não conseguiu. Ainda sentia o gosto dele. Sentia a presença dele em sua boca. Sua mente estava quase entorpecida. E ela sabia que aquele beijo tinha sido uma das experiências mais gloriosas e memoráveis de sua vida.

Como uma pessoa podia ser tão patética?

Levi parecia esperar alguma resposta por parte dela. Mas a única coisa que Ophelia fez – a única coisa que concebeu ser capaz de fazer, naquele momento – foi virar-se e ir embora.


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