1812 — Interativa escrita por Holtzmann


Capítulo 24
Capítulo XXII


Notas iniciais do capítulo

Heyo, darling ones!
Chego aqui com mais um capítulo para vocês, com alguns recadinhos ~
Primeiramente, gostaria de avisar que este é mais um daqueles capítulos em que teremos o ponto de vista de uma das protagonistas e um de nossos mocinhos entrelaçados. É um capítulo em que eu precisava fazer algumas revelações para vocês, por isso ficou muito, muito maior do que o que eu pretendia. Acredito que seja o maior capítulo de toda história até então. Considerei a opção de dividi-lo em dois, mas isso causaria um problema no planejamento da história, então decidi deixar como ficou. Me perdoam por isso?
Segundo ponto! Soltei um pequeno edit sobre esse capítulo no tumblr. Só um edit de apreciação a um de nossos belíssimos homens para complementar o que vocês lerão aqui abaixo.
Terceiro, mas não menos importante, queria dizer que estou muito feliz em ver que vocês ainda estão por aqui, e que leitores adormecidos estão retornando para acompanhar esse delírio. Obrigada obrigada obrigada! Vocês são simplesmente demais! Vou estar respondendo seus comentários pendentes nos próximos dias
Um beijão e boa leitura!



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Londres, 1812

 

Beatrice viu William novamente dois dias depois do baile de apresentação de Cecily.

Como tinha se tornado hábito, ele foi visita-la na Casa Whitmore, trazendo um novo buquê de flores. Antes de descer para encontra-lo no jardim, Abby tirou as últimas flores que ele havia lhe dado e pôs as novas no jarro acima de seu criado-mudo. Elas já estavam perto de murchar, de todo modo.

— Tulipas novamente? — foi o que perguntou a ele, depois de terem se cumprimentado e se sentado num banco de pedra perto do terraço da casa.

— Você não gosta delas? — ele retrucou.

— Eu não desgosto. Mas tem algum tempo que você não me dá nada diferente. Meu pai pode começar a achar estranho.

— Você pesquisou o significado dessas?

— Sim.

Mentirosa.

— Certo, talvez eu não tenha tentado o suficiente, mas essa não é a questão, é?

— Seu pai presta atenção nas flores que eu dou a você?

— Deve prestar. Ele anda bastante impaciente, ultimamente.

— Por?

— Acho que ele está esperando o momento em que você vai me pedir em casamento.

— Se eu for um bom menino, nosso Santo Pai lá no céu jamais permitirá que esse dia chegue.

Os dois riram. Mas após pararem William ficou, de repente, em silêncio. Parecia pensativo. Mas Will não era o tipo de pessoa que simplesmente parava e colocava-se a refletir, a não ser que...

— O que está tramando? — Triz indagou, após um minuto.

— Por que acha que estou tramando algo? — devolveu ele.

Ela contraiu os lábios antes de retrucar:

— Não seria você se não estivesse tramando algo.

— Vou considerar isso um elogio.

— Talvez não tenha sido minha intenção.

— Mesmo assim, é como prefiro considerar. — disse ele, com divertimento.

Beatrice fez uma careta. Após um minuto a mais de silêncio, o Visconde voltou a falar, abruptamente:

— Está tudo bem, Abby?

— Tudo ótimo. — Beatrice respondeu, com cautela. — Mas eu já disse isso.

— Que bom. — ele retrucou, sem importar-se com sua observação irônica. Então hesitou de novo, como se estivesse refletindo se a ideia que tinha em mente – qualquer que fosse – realmente era boa ou não. Após um instante a mais, ele emendou: — Você tem algum vestido que não faça parecer que está indo para um funeral?

— O quê?

— O que fará no sábado?

Ele aguardou, ansioso. Bea olhou-o como se ele fosse maluco.

— É claro que não farei nada. Não posso fazer nada, a não ser que você esteja envolvido, lembra? — indagou. — E por quê, afinal, você está perguntando isso?

Ele demorou alguns segundos para responder, como se desfrutasse do prazer de surpreendê-la.

— Vamos a uma festa.

 

 

 

No fim das contas, Beatrice não entendeu muito bem por que Will decidiu comparecer a comemoração do batismo da sobrinha. Ela desconfiava que era somente pelo desejo de contrariar, visto que aparentemente ninguém - incluindo os próprios pais da criança - esperava que ele fosse. Talvez, finalmente, tivesse decidido encerrar o assunto. Ela não podia saber - depois do encontro no dia da regata de barcos, Abby não voltara a mencionar o tema ou fazer qualquer pergunta que fosse.

Foi decidido que ela estaria muito bem acompanhada só por Cecily, que agora poderia circular ela mesma pela sociedade livremente, e por Grace, de modo que não precisava da companhia de nenhum de seus irmãos ou outro cavalheiro para manter seu cortejo com William adequado. Embora não fosse esperado de qualquer um dos convidados, William insistiu em arranjar um presente para a menina.

Beatrice o ajudou a escolher uma delicada boneca de porcelana que parecia-se muito com um bebê de verdade - embora, como o próprio Visconde tenha atalhado, a presenteada em si ainda era um bebê. Ele pagou sessenta libras na boneca, e assinalou que ela estava praticamente “de graça”. Triz não pôde deixar de ficar pasma com a disposição dele de gastar aquela quantia com pessoas das quais se quer gostava, mas este foi o primeiro passo para que ela entendesse como a noção de dinheiro era diferente para William.

Embora fosse muito estudada em muitos assuntos que lhe interessavam, gestão financeira jamais estivera entre esses assuntos, no caso de Triz. De modo que ela entendia pouco ou quase nada do assunto. O que sabia era que, em sua grande maioria, cavalheiros com título eram donos de consideráveis fortunas familiares. Haviam, é claro, aqueles que devido a sua própria irresponsabilidade ou a irresponsabilidade de seus antecessores, perdiam tudo e mantinham somente o título no qual sustentarem-se.

Ela não tinha ideia de quanto William recebia, por ano. Mas se estivesse próximo ao que o pai dela detinha, então Beatrice sabia que não era pouco. Ele já mencionara que não tinha muita prática ou interesse pelas atividades administrativas - por isso recusara a proposta do próprio tio de se tornar seu administrador, quando essa tinha sido lhe feita. De modo que deveria ter alguém contratado para fazer isso em seu lugar.

Abby esperava, pelo bem da fortuna dele, que esse fosse o caso.

Beatrice ainda não estava completamente livre do luto, de forma que ainda não podia usar cores vibrantes de nenhum tipo. O máximo que poderia arriscar era o lavanda, e foi ele o tom escolhido. Mas ao invés de linho ou musselina, ela arranjou seda. Com uma faixa prateada atada abaixo de seus seios, e uma pequena casquete envolta por uma faixa de mesma cor, assim como um par de sapatos também prateado.

Ela, particularmente, não se importava em ir ao evento, embora seu primeiro contato com Lorde e Lady Dashwood não tivesse sido muito auspicioso. Mas ela temia por Will. Ir ao batismo da filha de sua ex-noiva parecia, na melhor das hipóteses, um ato masoquista, porém ir a uma comemoração cheia de familiares para ver o batismo da filha que sua ex-noiva havia tido com seu meio-irmão, para Triz parecia mais um convite aberto à depressão.

Ela tentou fazê-lo enxergar isso no dia anterior, mas ele rejeitou.

— Se eu não estou preocupado, Abby, acho que você não deveria estar. — William retrucara.

Beatrice dividira a novidade com Jennie, para quem tinha sido obrigada a oferecer um resumo dos recentes acontecimentos. Ela não entrara muito em detalhes quanto a história de William, mas falara à amiga sobre seu histórico com o meio-irmão e a cunhada.

— Verifique se ele não levará um canivete ou uma pistola escondida no colete. — foi o que a jovem recomendou.

— Eu não sei o que esperar disso.

— Vai ver ele só quer comprovar que há experiências piores que a morte.

Elas tinham rido, as duas. Mas isso não servira para amainar a preocupação de Triz.

O dia da festa amanheceu claro e perfumado. O dia estava perfeito para uma festa ao ar livre. Foi a primeira coisa que Beatrice percebeu ao sair da cama e abrir as cortinas. Mas daquela vez o brilho do sol não lhe trouxe alegria. Talvez as nuvens aparecessem. Talvez chovesse de tarde. Parecia injusto que, além de tudo, aquelas pessoas ainda tivessem a sorte de conseguir o dia perfeito para sua festa perfeita.

Beatrice sentia que ainda não sabia de tudo o que envolvia aquela história. Mas pelo pouco que sabia, de modo nenhum se inclinava a simpatizar com Lorde e Lady Dashwood. Talvez estivesse sendo injusta. Definitivamente não era justo condená-los por uma história que só conhecia um lado. Talvez devesse confrontá-los para entender também seu lado - ou talvez devesse deixar o assunto de lado e respeitar o espaço de William e seu direito de reter segredos.

Fosse o que fosse fazer, não poderia fazê-lo naquele dia, de todos os dias. E ela percebeu que, mesmo que chovesse, não daria tempo de cancelar o evento. Provavelmente os anfitriões deveriam ter um plano alternativo. Provavelmente tinham um salão de baile ou dois escondidas dentro da mansão, à espera de acomodar seus convidados - Beatrice e Will, inclusos. E tudo estaria decorado com requinte, como um jardim interno.

Não, não havia como evitar. Além do mais, o próprio William não parecia nem um pouco disposto a recuar em sua decisão, como ficou provado quando, à tarde, a carruagem da família Bedwyn apareceu às portas da Mansão Whitmore. O lacaio abriu a porta do veículo para Beatrice, que ao entrar com Grace se deparou com uma Cecily extremamente sorridente. A jovem estava belíssima, com o olhar brilhante, cheia de energia.

Mal tinham trocado os devidos cumprimentos, ela agarrou a mão do irmão mais velho, que estava sentado ao seu lado.

— Não estou tão assustada como fiquei no meu baile de debút. — ela disse. — Conheço as pessoas agora e elas são mesmo bem gentis, não são? E é claro que ninguém terá olhos para mim enquanto estou com você, por isso não vou ficar insegura. Está mesmo apaixonado pela senhorita Rodwell?

William ergueu as sobrancelhas, claramente pego de surpresa. A própria Triz foi acometida por uma violenta crise de tosse.

— Ah, bom... — o Visconde começou, desajeitado. Então pareceu recompôr-se, pois abriu um meio-sorriso zombeteiro e tocou a ponta do nariz da irmã mais nova. — Mesmo que eu esteja, isso não é da sua conta, é? Não deve se envolver em cortejo de gente grande.

A jovem fez uma careta.

— Eu não sou mais uma criança, Will, e também estou envolvida em cortejo de gente grande. Estou sendo cortejada pelo próprio irmão de sua cortejada, e o Sr. Ravensberg anda me seguindo pelos lugares, e o Sr. Everly dança comigo em todos os eventos que nos encontramos.

— Está apaixonada por eles? — Will questionou. — Por um deles?

Cecily olhou então Beatrice com cautela. A mais velha devolveu o olhar com solidariedade, dizendo:

— Não é porque sou irmã de Zachary que a condenarei se não estiver gostando dele.

A menina lhe sorriu timidamente, parecendo meio sem graça. Mas acabou dizendo, mesmo assim:

— Não. Me perdoe se estou soando ofensiva, senhorita Rodwell, mas... Nenhum deles faz nada, Will. Todos vivem do dinheiro que recebem. O que é o mesmo que eu faço, mas é diferente para uma mulher, nós não temos tantas oportunidades. Se eu tivesse, com certeza a aproveitaria, mas os homens deveriam trabalhar para ganhar a vida, já que podem fazer isso.

— É um conceito bem classe média. — William retrucou, sorrindo.

— É um conceito muito lógico, Cecily. — Triz argumentou, por sua vez. — Concordo com você. Não é nem um pouco atraente que alguém se recuse a utilizar seu tempo e seu cérebro para algo mais que apostar em cavalos tendo a oportunidade de fazê-lo.

— É isso! — Cecily exclamou. — Trabalhar é muito... Atraente.

William gargalhou, erguendo as mãos em sinal de rendição. Nem Triz conseguiu evitar sorrir diante daquela escolha particular de palavras.

— Vocês me massacraram, é isso. — anunciou. — Embora me entristeça saber que não sou atraente a seus olhos nesse sentido, Abby. Se me rende alguns pontos a mais, eu não aposto em cavalos.

Beatrice lhe ofereceu um olhar eloquente. Ele não podia vê-lo, mas talvez tenha-o sentido, pois sorriu para ela. Cecily já tinha, no entanto, mudado totalmente o curso de seus pensamentos.

— Ah! — exclamou. — Mal posso esperar para ver como Anne enfeitou os jardins e saber como todos estão vestidos. Gostou do meu chapéu novo, Will? Comprei depois do meu debút.

— É muito bonito, Ceci.

E então eles tinham chegado.

A Mansão Dashwood era muitíssimo parecida com suas similares de Mayfair. O que a diferenciava era o tamanho de seus jardins. Eram três vezes maiores que os outros que Beatrice tinha visto. Haviam gramados bem cuidados, canteiros exuberantes e árvores que pareciam ter sido escolhidas e colocadas na posição que rendia o efeito mais pitoresco. Havia uma roseira, uma pequena estufa com laranjeiras, um chafariz, além de um terraço em três níveis descendo da casa com flores em vasos de pedra.

Poderia parecer atulhado. Não deveria restar espaço para pessoas.

Mas era magnífico de um jeito quase ofensivo. Quando saíram da carruagem, ela pôde ver melhor Will. Ele estava elegantemente trajado em creme, branco e dourado. A camisa fazia os olhos dele ficarem especialmente luminosos. Mais azuis que o habitual.

— Nada mal, hein? — talvez ele tenha pressuposto que ela o encarava, pois abriu os braços e deu uma voltinha, exibindo-se.

— Nada mal. — Triz repetiu pois, estranhamente, não queria admitir o quanto ele estava bonito. — A mãe vai definitivamente se arrepender de não ter feito de você o pai da filha dela.

William revirou os olhos. Mas não pareceu ofendido. Talvez, afinal, ele realmente estivesse ali com a intenção de encerrar o assunto de uma vez por todas. Se realmente aquela rusga estava afetando sua família, de modo geral, talvez fosse melhor tirá-la logo de vista, por mais dolorosa que pudesse ser.

Afim de confirmar sua suposição, Triz perguntou, cautelosamente:

— Então... Como vamos nos comportar hoje?

William franziu levemente o cenho.

— Sinceramente?

— Sim. Preciso saber. Mas, por favor, não diga que provocaremos choque e escândalo. Está planejando algo terrível?

O olhar cego do Visconde encontrou o dela. Olhos muito azuis, cínicos e insondáveis. Um pequeno enxame de borboletas pareceu voar no estômago de Triz, despropositadamente. Ele lhe ofereceu o braço com um floreio.

— Abby, vamos nos comportar de maneira inacreditavelmente exemplar.

As borboletas no estômago dela começaram a bater asas sem parar, como se estivessem presas às suas costelas. Triz abriu a boca para falar, mas Will a interrompeu.

— Olha, faremos o possível para que seja divertido. — ele disse.

Divertido. Como se ir ao casamento da mulher que amara e que o trocara pelo seu próprio meio-irmão pudesse ser menos dolorido que ter todas as suas unhas arrancadas uma por uma com um alicate. Mas aquela havia sido uma escolha de Will. Embora não a entendesse, Triz o apoiaria, como uma boa amiga. O dia era dele.

— Com uma condição — falou, ajeitando a casquete que escorregava para o lado de seu penteado.

— Qual?

— Você não usará sua cegueira como desculpa para constranger propositalmente as pessoas. Senão, volto para casa e deixo você preso aqui com sua ex-noiva e seu meio-irmão idiota.

Quando ela lhe deu o braço, Bea pensou tê-lo ouvido resmungar, baixinho:

— Estraga-prazeres.

A cerimônia de batismo em si transcorreu sem incidentes, e foi realizada na pequena capela que a mansão tinha ao fundo de sua propriedade, por um clero convidado. Enquanto tudo ocorria, Beatrice olhou em volta, notando os outros convidados. Ninguém que ela conhecesse. O que não era nenhuma surpresa. 

Will e ela sentaram no fundo da pequena e apertada capela junto com Cecily. O único erro que provavelmente a família Dashwood cometera em toda sua impecável organização daquele evento; nem todos os convidados cabiam dentro do espaço. Provavelmente aqueles que tinham entrado eram somente a parte mais íntima do grupo; os familiares e amigos mais próximos.

E ela. É claro.

Os pais seguravam a menina com evidente orgulho durante todo o processo. Beatrice viu quando Lorde Dashwood inclinou-se, beijando a cabeça da recém-nascida. Eles talvez não estivessem felizes um com o outro, como Lady Dashwood dissera, mas era certo que amavam sua filha.

Então, tão rapidamente quanto tinha começado, a cerimônia chegou ao fim. Quando Bea se deu conta, William já tinha se colocado de pé e com o auxílio de sua bengala se dirigia para a saída. Ela viu a parte de trás da cabeça dele, altiva e curiosamente digna, e teve vontade de perguntar se ele se arrependia de ter vindo.

Acima disso, Triz queria perguntar se ele ainda sentia algo por Lady Dashwood. Queria dizer que ele era bom demais para aquela mulher, por mais que as aparências pudessem dar a entender o contrário e que... Não sabia mais o quê.

Só queria deixar as coisas melhores.

— Você está bem? — perguntou, ao se aproximar dele.

A grande questão era que deveria ter sido ele ali. Deveria ter sido ele a segurar a menina, se inclinar e beijá-la no rostinho gorducho. Deveria ter sido ele a sorrir, orgulhoso, e envolver a cintura da esposa com familiaridade.

Ele piscou várias vezes.

— Estou ótimo. — falou. Deu um pequeno suspiro, como se estivesse prendendo ar no peito. — Vamos tomar algo?

Uma tenda foi montada nos jardins para abrigar as mesas onde os criados serviam os quitutes e as bebidas e as mesinhas reservadas aos convidados. Beatrice deixou Will esperando enquanto se prontificava em buscar algo para beberem. Ela abriu caminho pelas mesas cobertas com toalhas de linho branco, talheres e cristais reluzentes. As cadeiras tinham encostos dourados e haviam pequenas lanternas à óleo no centro de cada mesa, rodeadas de arranjos de lírios. O Ambiente estava dominado pelo perfume das flores e das laranjas a ponto de fazer Abby sentir-se sufocada.

Depois de pegar um pouco de ponche com um criado, ela refez o caminho e encontrou Will conversando com um homem. Jovem, com o cabelo ondulado penteado para trás. O sol estava à pino e Triz precisou estreitar os olhos para enxerga-los devidamente.

— Que ótimo rever você, Bedwyn. — dizia o homem. — Madras não é a mesma sem você. Não sei se deveria dizer isso, mas não é mesmo.

Parecia um jovem aventureiro, pelas roupas despojadas e pele bronzeada.

— Gentileza sua.

— Foi tão estranho. Um dia você estava lá comigo, tomando decisões importantes, desenhando leis e me ajudando a implementá-las e então no outro, você...

O homem olhou para o lado, notando Beatrice.

— Ah. — disse, erguendo o chapéu educadamente. — Olá, senhorita.

— Abby, — Will adiantou-se, mantendo os olhos fixos no sujeito e um sorriso em rosto. — quero lhe apresentar Andrew Derwent.

Beatrice entregou um dos copos de ponche a Will, e então fez uma pequena reverência ao cavalheiro.

— Prazer, milorde.

— Ah! — o tal Andrew exclamou, divertido. — Não sou milorde algum, madame. No máximo, um Sir muito do indecente. O estrelato da alta nobreza não recaiu para mim, mas para minha irmã, fico feliz em dizer.

Antes de Beatrice perguntar, Will explicou:

— Andrew foi quem me convenceu a ir para a Índia um ano atrás. Ele propôs o esquema maluco e eu, mais maluco ainda, aceitei. Vivemos e trabalhamos juntos lá durante o tempo de minha estadia. — ele sorriu na direção do amigo. — Andrew é irmão da encantadora Violet Derwent, Lady Hazeltine.

A menção ao nome fez com que o sangue de Triz gelasse de imediato. Ela teve uma sensação horrível – como se alguém tivesse lhe dado uma rasteira de repente. Desde o baile de Cecily, ela evitara pensar sobre a presença de Lady Hazeltine em Londres – e a provável e consequente presença do marido dela. De Dylan.

Evitara pensar sobre isso porque, sempre que pensava, era dominada por um terror imenso de encontra-los. A cidade era grande, mas Mayfair nem tanto, e o universo ou qualquer entidade divina que o estivesse controlando não costumava simpatizar com Triz, de forma que azarada como era, era bem possível que ela acabasse encontrando-os em algum lugar em algum momento.

Seu medo fora tão intenso que, por algumas vezes, ela cogitara a possibilidade de pedir a William que reduzisse a quantidade de aparições públicas dos dois. A única razão pela qual concordara em comparecer aquele evento era, é claro, o próprio Will. Que, aliás, ainda não concluíra:

— Essa, Andrew, é a adorável senhorita Beatrice Ro...

— Beatrice é de bom tamanho. — ela adiantou-se, recuperando-se de seu acesso e interrompendo o amigo. Abriu um sorriso forçado. Não estava certa do quanto Andrew Derwent sabia sobre Dylan ou sobre seu passado, mas não queria arriscar – se lhe desse seu sobrenome, talvez ele a reconhecesse, e então como reagiria? Ela não podia ficar nem mais um minuto perto daquele sujeito. — Will, acho que vou me sentar. Cecily e Grace acharam uma mesa para nós.

Fazendo uma pequena reverência, Triz virou-se e partiu – lutando contra o impulso de correr – para longe.

 

Aconteceu alguma coisa à medida que foi anoitecendo.

Depois que William terminou com Andrew Derwent, ele voltou a encontrar Beatrice e para o alívio dela, o sujeito não voltou a se aproximar deles. Diminuíram a iluminação do jardim, então a mesinha em que haviam se sentado tornou-se um pouco menos destacada e a brisa noturna amenizou o forte perfume das flores. Um quarteto de cordas começara a tocar e a música, somada ao ponche e ao baile tornaram possível que eles se divertissem no lugar mais improvável de todos – Triz até conseguiu esquecer, por um minuto, a presença de Andrew Derwent e a ameaça que ela sugeria.

Will estava relaxado, em contraste a como estivera na capela. Espremido entre Beatrice, Grace, Cecily e Lady Florence Haylock – que fora colocada na mesa junto deles –, ele conversava e sorria para as quatro; vê-lo feliz por um único instante que fosse, naquele dia pouco auspiscioso, afastou os olhares condoídos ou desconfiados das pessoas. Ele obrigou Beatrice a tirar a casquete, deixando o penteado intricado à mostra.

Disse que se ela estivesse tão bonita quanto todos estavam dizendo que estava, deveria exibir isso. Ela suspeitava que o álcool estava começando a falar um pouco mais alto que ele, mas ainda não tinham chegado a um nível que renderia a ele algum tipo de humilhação pública grave, por isso Bea deixou que ele aproveitasse o momento.

Eles ficaram comentando sobre a falta de habilidade dançarina na maior parte dos convidados. Lady Florence resmungou “Meu Deus” várias vezes. Olhou para Beatrice. A cada taça que lhe era servida, o jeito da matrona falar se tornava mais apimentado.

— Não vai dançar, senhorita Rodwell?

— Céus, não.

— Mas você quer dançar. — William observou, e ela percebeu que aquela era uma deixa para uma vez mais performarem o papel de casal apaixonado.

— Eu não quero dançar, a não ser que seja com você. — aquilo era só metade fingimento. Ela realmente não conseguia pensar em nenhum outro homem com quem quisesse dançar naquele circo de horrores além de Will.

— Muito sensato de sua parte. — Lady Florence disse. — Já vi fazendeiros que dançam melhor que os projetos de cavalheiros dessa festa.

Então, quando a escuridão recaiu de vez sobre os jardins, começaram a tocar canções mais lentas. Assistiram Lorde Daswhood rodopiar a esposa pelo espaço que fora reservado para as danças; uma plataforma de piso ladeada por colunas enfeitadas por flores e ramos. O cabelo escuro e lustroso de Lady Dashwood começou a se soltar e ela passou os braços ao redor do pescoço do marido, como se precisasse de apoio. O lorde a abraçou de volta, apoiando as mãos delicadamente em suas costas.

Apesar de serem lindos e parecerem tão felizes ali, Beatrice sentiu certa pena deles. Se Lady Dashwood tivesse sido honesta sobre o que tinha dito, tudo aquilo não passava de uma farsa afim de manter intacta suas aparências.

No meio da música, outros casais também foram dançar – até Cecily foi convidada por um dos cavalheiros presentes –, de modo que os anfitriões ficaram meio apagados e Beatrice se distraiu com a conversa de Lady Florence sobre a falta de senso de moda das convidadas presentes. Até que, inesperadamente, ela se deparou com Lady Dashwood à frente deles. O coração de Triz ficou na garganta.

Annelise Dashwood cumprimentou Lady Florence e inclinou-se um pouco para que Will pudesse escutá-la apesar da música que era tocada. Seu rosto estava um pouco tenso, como se estivesse insegura em ir até ali.

— Obrigado por ter vindo, Will. De verdade. — ela lançou um olhar para Beatrice, mas não disse nada.

— É um prazer. — William respondeu, com simplicidade. — A menina parece adorável. E essa é uma bela festa.

Um lampejo de espanto passou pelo rosto dela. Sendo substituído depois por uma ligeira desconfiança. Ela continuou encarando-o com atenção, como se esperasse que ele pulasse em cima dela ou algo semelhante.

— Acha mesmo? Eu, bom... Há tanto que eu gostaria de dizer...

Will abriu um largo sorriso. Talvez largo demais.

— Realmente? — ele arqueou uma única sobrancelha. — Não precisa. Como Philipp notoriamente nos lembrou em nosso último encontro, já fazem quatro anos. O passado ficou no passado. Lembra da Beatrice?

Lady Dashwood por fim voltou-se diretamente para Triz.

— Lembro.

Fez-se um pequeno silêncio.

Lorde Philipp estava logo atrás, a alguns passos de distância, olhando a cena com cautela. Lady Dashwood olhou para Will por mais um segundo, como se hesitasse... O que quer tivesse a intenção de fazer, acabou desistindo.

— Obrigada, Will. — limitou-se a dizer. — Foi muito bom te ver. E obrigada pelo...

— Vestido. Achei que ficaria adorável em sua filha.

— Sim, adorei o vestido. — ela endireitou-se e voltou para o marido, que virou-se, segurando-a pelo braço.

Beatrice esperou ela se afastar para dizer:

— Você não deu um vestido de presente para a menina.

— Eu sei.

— Que megera. — soltou Lady Florence, de repente. — Não acredito que concordei em vir ao casamento desses dois. Só por ser tia do finado Dashwood? Eu nem mesmo tinha visto esse novo lorde Daswhood até hoje.

Beatrice não pôde evitar dar risada.

— Além disso, — a matrona emendou. — eu soube que ela deixou você por esse aqui, não foi, rapaz?

O riso de Triz cessou e de repente ela ficou atônita, mas Will abriu um sorriso em direção à voz de Lady Florence:

— É o que estão dizendo as más línguas londrinas? Então deve ser verdade.

— Por Deus, então você é um verdadeiro santo. — declarou a mais velha. — E ela, uma estúpida. A moça perdeu sua chance de ouro, ah, perdeu.

O marido e esposa citados ainda conversavam, e Lorde Dashwood insistia em lançar olhar rápidos na direção deles. Como se não estivesse acreditando que William fora tão simpático. Na verdade, mesmo Beatrice ficara surpresa, embora tenha notado, da parte dele, um notável esforço em performar aquela atitude.

— Isso o incomodou? — Triz perguntou.

Will balançou a cabeça.

— Não. — respondeu, e sorriu para ela o mesmo sorriso forçado que oferecera para Lady Dashwood. Aquele sorriso estava um tanto torto, devido a bebida, e algo se agitava nos olhos dele. Algo que Beatrice ainda era incapaz de identificar.

Então, no instante em que a pista esvaziou-se, antes do início da próxima música, ela decidiu que, o que quer que fosse, queria que aquilo desaparecesse. Queria que Will voltasse a sorrir com sinceridade, que ele continuasse feliz como estivera antes da aparição de Annelise. Talvez essa tenha sido a razão pela qual disse abruptamente:

— É uma valsa, Will.

— É mesmo. — ele concordou. — Talvez devesse dançar essa, Beatrice. Tenho certeza que há pelo menos um cavalheiro que dance decentemente nesse lugar. E seu pai não está aqui.

— Com você. — Triz retrucou. — Quero dizer, preciso dançar com você.

Então, estendeu a mão e segurou a dele, começando a se levantar da cadeira onde estivera sentada todo aquele tempo.

— Comigo? — ele riu, ainda sentado. — Acho que não, Abby. Seria realmente um espetáculo digno de ser visto.

— Seria. — concordou ela. — Vamos causar choque e escândalo. Vamos dar assunto para esses idiotas.

— Ah, ótima ideia. — Lady Florence aprovou, erguendo uma taça. — Ótima mesmo.

— Vamos. Enquanto ainda estão tocando música lenta. Acho que uma quadrilha seria mil vezes mais desafiadora para você.

William a encarou, por um minuto. Curiosamente, ele a olhou diretamente em seus olhos, como se pensasse se podia recusar o convite. Depois, surpreendentemente, colocou-se de pé e envolveu o braço no dela.

— Me guie até o lugar certo da pista, por favor.

Beatrice sorriu e o levou até o centro do espaço. Seria aquela uma boa ideia? Provavelmente não. Como o próprio Will apontara, Beatrice dançar naquele momento não seria considerado adequado por seu pai... E por uma considerável parte da sociedade londrina, devido ao seu luto parcial. Mas, pela primeira vez, ela não sentiu-se culpada por desejar fazê-lo.

O que William dissera daquela vez, no jardim? Que, se estivesse morto, ele teria preferido que sua família lamentasse sua morte dançando, rindo e dando piruetas. Eles não poderiam se lembrar de mim com carinho enquanto sorrissem, gargalhassem e girassem como tontos?, foi o que ele refletira. E aquelas palavras tinham surtido efeito sobre Triz, pois poderiam facilmente ter saído...

Dos próprios lábios de sua mãe.

Margot Rodwell tinha sido uma mulher alegre, que sempre tinha um sorriso nos lábios e sempre causava riso onde fosse. Todos a adoravam, sem exceção, embora ela tivesse nascido na França. E Beatrice não tinha fugido à regra. Ela tinha belas e doces memórias de sua mãe – de sua paciência e disposição em ouvi-la, mesmo quando não a compreendia ou não dividia suas opiniões, de seu amor, de seu cuidado e de sua dedicação à sua família.

Mesmo quando Beatrice fora para a América, ainda assim, Margot não a tinha deixado de lado. Elas tinham mantido um contato religioso por meio de cartas, missivas que até hoje Triz mantinha guardadas em uma caixa escondida em seu criado-mudo junto às cartas de Dylan. Naquela época, nem sempre as palavras de sua mãe faziam sentido – mas agora, Beatrice conseguia enxergar a sensatez por detrás das palavras da mãe, e se arrependia por não ter ouvido-a em muitos momentos. Se arrependia de não ter retornado a Inglaterra a tempo, de não ter tido oportunidade de se despedir...

Mas ela já tinha se arrependido por tempo o suficiente.

As palavras de William, de alguma forma, a tinham lembrado de algo muito importante sobre sua mãe – algo que ela parecia ter esquecido; Ela não gostaria de ver Beatrice lamentando-se pelos cantos para sempre – e definitivamente gostaria que ela dançasse com William, se tivesse tido a chance de conhece-lo, e se isso fosse o que realmente quisesse.

Triz nunca deixaria de sentir falta de sua mãe. E talvez, para sempre, se perguntasse como as coisas teriam sido se tivesse retornado a tempo de reencontrá-la uma última vez. Mas, naquele momento, decidiu que faria aquilo de sua própria maneira – não da maneira de seu pai. Ao invés de usar roupas escuras e pesadas e de privar-se de tudo o que pudesse significar liberdade e uma pequena, por menor que fosse, chance de alegria...

Ela viveria. E não se esconderia mais nas sombras. Ela se permitiria viver, dançar, rir, e durante cada precioso momento, lembraria de sua mãe e talvez encontrasse alguma maneira de estar com ela, embora jamais pudesse vê-la novamente.

Certa vez, numa de suas cartas à mãe, Beatrice dividira com ela um pouco da própria decepção e das próprias mágoas. Aquela fora uma missiva importante, pois ajudara Triz a tirar do peito um peso que até então carregava quase que solitariamente. E também pois fora a última carta que ela escrevera a mãe.

 A carta que Margot Rodwell enviara de volta a ela fora curta. Quase um bilhete. Mas a jovem ainda era capaz de recordar de suas palavras.

“Eu acho que todos temos o direito de nos tornarmos infelizes se é isso que escolhemos livremente. Mas não tenho certeza se temos o direito de permitir que nossa própria infelicidade cause a de outra pessoa. O problema com a vida às vezes é que estamos todos juntos.”

E ah, Beatrice não queria mais estar infeliz. Ela queria estar feliz, naquele momento. E depois também. Não só por William, mas por si mesma. Pois sua alma ansiava aquilo tanto quanto seu coração. E ela esperara tanto tempo...

Quando colocou o braço de William ao redor de sua cintura, ele riu nervosamente. Sua própria mão foi até o ombro dele, enquanto a outra entrelaçava-se a mão livre dele. Estavam muito próximos. Próximos de tal maneira que ela podia sentir o perfume almiscarado que ele usava.

— Se eu fizer papel de idiota, as pessoas seriam gentis o bastante para fazer de conta que não repararam? — ele perguntou, baixinho.

Beatrice riu.

Então a orquestra tocou o acorde de abertura e não esperou que alguém mais se juntasse a eles.

Triz foi invadida em iguais proporções por uma onda de insegurança e histeria. A principio, os passos foram executados de um jeito desajeitado, atrapalhado, e ela ficou apavorada diante da possibilidade de realmente sujeitá-lo a uma grande humilhação sem motivo nenhum. Deveria ter planejado aquilo melhor. Deveria ter treinado os passos com atenção. Talvez devesse ter perdido a Zachary para que lhe ensinasse como conduzir sem deixar transparecer.

Mas nada daquilo fora planejado. Ela não tinha a intenção de dançar com William. Muito menos de dançar com ele ali. Ele sempre deixara muito claro que não tinha o interesse em tentar, pois sabia que o resultado seria desastroso. Essa era mais uma prova de que provavelmente a bebida estava o levando longe demais. E talvez estivesse levando Beatrice também.

Pois embora estivessem desincronizados e atrapalhados, ela não conseguiu tirar o sorriso do rosto. Ela estava muito presa no momento, em puro sentimento. Os pés de William finalmente encaixaram os passos e sua mão se espalmou nas costas dela. Ele ergueu a cabeça e sorriu bem perto dos olhos dela.

Então ela viu cores e luz giratória sobre eles e ouviu a melodia e o ritmo e o cheiro de sua colônia e de alguma forma o gosto do ponche que ela tinha bebido há pouco e sentia o calor das mãos dele tocando-a e levando-a e fazendo com que ela se sentisse abraçada e envolvida e mais feliz do que ela tinha se sentido desde...

Desde muito tempo.

Will fez com que ela rodopiasse, e ela gargalhou, e teve que se esforçar para que nenhum dos dois tropeçasse e saísse da pista. Provavelmente aquela não estava sendo a apresentação mais elegante de uma valsa. Mas estava sendo maravilhoso. E eles tinham a pista inteira para si. O resto dos convidados permanecia à margem da apresentação, encarando-os, talvez espantado demais para arriscarem se aproximar.

William cantarolava a música no pé de seu ouvido.

— Eles já estão chocados e escandalizados? — ele perguntou. Triz tentou se atentar melhor nos seus arredores.

Duas pessoas sorriam e lançavam olhares encorajadores, mas a maioria não parecia saber como reagir àquela cena. Lady Agatha os saudou com sua taça de bebida. Depois, Beatrice viu Lady Dashwood encarando-os, aturdida. Quando viu que ela a encarava, a mulher se virou e disse algo para o marido. Ele balançou a cabeça como se eles estivessem cometendo algum crime vil.

Beatrice sentiu um sorriso maldoso se formar em seus lábios.

— Estão sim. — confirmou.

— Hum. — ele murmurou. Ela não soube discernir se estava satisfeito ou não. — Chegue mais perto. Você está cheirando muito bem essa noite. Mudou de perfume?

— Mudei. É um dos que você me presenteou.

— Ah, eu tenho mesmo um excelente gosto.

— Eu ia dizer que você também está cheiroso, mas só por causa desse seu comentário idiota, não vou.

Ele gargalhou.

— Isso não muda o fato de eu, de fato, estar cheiroso. E magnífico. Você esqueceu o magnífico. Eu nem enxergo, e mesmo assim sei que minha aparência essa noite está irresistível.

— Magnífico ou não, se continuar me rodopiando desse jeito, acho que vou acabar colocando tudo o que bebi para fora. Em cima de você. Acho que não ficará muito magnífico cheirando a vômito.

Ele parou de girá-la e diminuíram o ritmo dos movimentos. A mão que estava nas costas dela fez uma ligeira pressão, fazendo com que seus corpos se encostassem brevemente. E – minha nossa – ele era todo calor e solidez. Beatrice arquejou, dando-lhe um tapinha no ombro.

— Ei! — exclamou.

Ela sabia que ele estava sorrindo pelo tom de sua voz quando ele murmurou ao pé de seu ouvido:

— Ninguém mandou vir tão cheirosa. Não consigo resistir, sinto muito. O meu eu conquistador-narcisista-superficial não tem estruturas para isso.

— Você está bêbado.

— Isso não torna minhas palavras menos verdadeiras. — ele retrucou, sem negar a acusação.

— De todo modo, se você não fosse cego, — Beatrice devolveu, com firmeza. — nem se quer notaria isso. Nem se quer me notaria.

— É claro que eu notaria você.

— Não. Se você enxergasse, estaria muito ocupado olhando as mulheres baixas, de cachos e olhos escuros e rosto de boneca. De todo jeito, eu não estaria aqui. Eu provavelmente estaria numa conversazioni, com outro homem misterioso sentado ao meu lado.

Ele piscou.

— Então? Não estou certa?

— Está. Mas, em minha humilde defesa, Abby, eu era um imbecil impressionável antes de perder a visão.

Beatrice gargalhou tão alto que fez com que mais pessoas os olhassem. Ela tentou voltar a ficar séria.

— Me perdoe. Acho que a bebida também está me deixando histérica.

— Quer saber de algo? 

Naquele momento, talvez pela euforia da bebida, talvez pela alegria histérica de estar dançando de novo e pelo significado pessoal daquele ato, ela pensou que podia passar a noite toda olhando para ele. Para o brilho no canto de seus olhos. Para o lugar onde o pescoço encontrava o ombro e os cachos louros caíam desprentensiosamente sobre o colarinho.

— Acho que você vai me falar mesmo que eu não queira.

— Nesse momento, Abby, — ele murmurou. — não há ninguém com quem eu gostaria de estar dançando, além de você.

Então ela quis dizer a ele que sentia o mesmo. Que, sem ele, ela não teria tido a coragem nem a capacidade de fazer o que estava fazendo naquele momento – não sem ser sufocada pelo remorso depois. Quis falar como era grata por ter conhecido ele. Por ter se tornado sua amiga. Quis contar como ele se tornara muito mais do que ela desejara, a princípio, muito mais do que esperara. Mas a música acabou justo nesse instante, o momento passou, e quando ela se apercebeu, eles já estavam rumando de volta à mesa onde tinham se alojado.

Triz deixou Will seguro, sentado numa cadeira, antes de decidir que iria atrás de uma bebida. Que precisava de uma bebida. Algo não alcóolico, especificamente. Ela precisava de qualquer coisa que diminuísse o calor repentino que estava sentindo, e suspeitava que Will também estava precisando.

— Eu vou em busca de um pouco de água. — foi o que falou para ele, antes de se virar e sair marchando em meio a multidão.

Levou um bom par de minutos para, de fato, encontrar um criado que estivesse servindo qualquer coisa sem álcool. Mesmo quando achou, não se tratava de água, mas de uma limonada fria e aguada. Ela não sabia o que deveria ingerir para evitar a ressaca – Zachary era quem tinha esse tipo de conhecimento –, mas pensou que aquilo teria de servir.

Foi só quando estava refazendo seu caminho que Abby notou.

Lady Dashwood tinha se reaproximado da mesa. William, sempre com a etiqueta impecável, se colocara de pé. Ele tinha uma taça de algo escuro na mão, e ela segurava uma taça igual. Pelas expressões faciais de Will, o rumo da conversa não parecia ser dos melhores. Triz aguardou um instante a mais mas, quando decidiu que iria se aproximar afim de interromper o que quer que estivesse acontecendo...

Ela ouviu o som de algo batendo. Então de vidro se despedaçando. E o grito entrecortado de uma mulher. A princípio, pensou que algum dos dois tivesse deixado a taça cair. Mas então viu o sangue; escorrendo pela palma da mão de William, fluindo de um vergão que um caco de vidro fizera. A base da taça estava em cima da mesa, mas todo o resto dela se despedaçara com o impacto contra a madeira.

Um repentino e pesado silêncio caiu sobre o jardim. Beatrice tinha parado no meio do caminho, mas a visão periférica de Lorde Daswhood se aproximando rapidamente de William a tirou daquele estado de choque contemplativo e fez com que ela voltasse a andar, chegando na mesa ao mesmo tempo que o anfitrião.

— Will? Você está bem? — perguntou, agarrando de imediato a mão ferida do amigo. Ela tremia.

Ao seu lado, Lorde Daswhood envolveu a esposa protetoramente nos próprios braços. Lady Dashwood também tremia, com uma expressão lívida no rosto. O lorde encarou o meio-irmão. Mais do que irritado, parecia transtornado:

— Bedwyn, — murmurou rigidamente em sua direção. — Acho que é melhor você ir embora.

A voz dele pareceu trazer William de volta do estado de confusão em que parecia estar mergulhado. Ele olhou ao redor, como se pudesse vê-los; Beatrice, Lorde e Lady Dashwood, os demais convidados. Então uma onda de reconhecimento varreu seu rosto, e ele se desencostou da mesa, começando a andar – quase correr – para fora dos jardins.

Beatrice o seguiu. Não sabia o que tinha acabado de acontecer, não sabia como reagir e nem mesmo sabia o que deveria fazer. Mas sabia o que não deveria; não podia deixar Will sozinho. Não naquele momento. Por isso o seguiu para fora dos jardins e, então, para fora da Casa Dashwood.

Ao invés dele parar na calçada afim de aguardar a vinda de um coche de aluguel ou coisa parecida, visto que a carruagem que deveria vir busca-los ainda não estava lá, ele continuou marchando em linha reta pela rua. Sem usar a bengala. Sem prestar atenção ao movimento nas ruas.

Para piorar, William tinha pernas mais longas que ela. Beatrice precisou literalmente correr para alcança-lo e, quando o fez, esbaforida, precisou agarrar o braço dele para fazê-lo parar, pois os chamados que vinha emitindo desde o momento em que tinham saído da propriedade dos Dashwood não tinham sido suficientes.

— Will! — ela exclamou, agora ao lado dele, com as duas mãos segurando seu braço.

Por fim, ele parou, virando-se em sua direção.

— Abby... — murmurou, como só então tivesse a notado – e se lembrado de sua presença. Ele fez uma expressão transtornada. —... Ah, me perdoe, Abby. Eu simplesmente saí... Me desculpe. Você está bem?

Beatrice encarou-o como se ele estivesse louco.

Eu é quem deveria estar perguntando isso. — retorquiu. Então agarrou o pulso dele, levantando-o para poder analisar melhor sua mão ferida. — Está doendo muito?

Ele piscou, confuso.

— Você não...?

— Pare de falar besteiras e me responda. Está doendo?

Após um instante, ele confessou:

— Está.

Beatrice tirou um lenço de um bolso interno que fizera Grace costurar em todos os seus vestidos, alegando a impraticidade que a falta de bolsos causava. Dobrou o lenço e pressionou-o contra o ferimento na palma de Will, concentrada.

— Eu não acho que o caco de vidro tenha entrado na sua carne. — palpitou, analisando atentamente o vergão. Ele não era raso, mas era limpo. — Me parece que só cortou. Mas vai precisar fechar de algum modo.

— Você não me disse que era médica.

— Cale a boca. Isso não é hora para gracejos.

Ele se calou. Beatrice respirou fundo.

— Para onde você estava indo? — perguntou.

— O quê?

— Quando saiu andando, para onde estava indo?

— Para casa. Minha casa.

— A Casa Bedwyn? — ele não poderia estar pensando em andar aquilo tudo, estava? A Casa Bedwyn ficava localizada no centro de Mayfair, onde os mais ricos que viviam. Como um Visconde, ele era capaz de manter o luxo de uma casa naquelas redondezas, mas como um Barão, Daswhood provavelmente não conseguia, por isso sua propriedade, embora ainda estivesse em Mayfair, ficava em alguma das extremidades do bairro.

Ou seja, longe.

— Não. — ele retorquiu, após um minuto de hesitação. — Minha casa de verdade.

— E onde fica essa casa?

Eles levaram mais de meia hora de caminhada para chegar à Piccadily. Beatrice não estava muito familiarizada com a região. Ela era, em sua maior parte, ocupada por jovens solteiros e ricos o suficiente para residirem em Londres, mas não ricos o suficiente para terem uma grande propriedade só sua. A maioria desses homens eram cavalheiros, mas nem todos.

William não lhe deu muitas explicações. Só a levou para um dos apartamentos – usando a bengala, dessa vez – e, quando bateu à porta de entrada, um homem corpulento e austero abriu-a para eles.

— Joseph. — Will anunciou. Sua voz estava mais clara agora, e ele tinha parado de tremer. Pareceria estar num estado perfeitamente normal... Não fosse o lenço ensanguentado que pressionava contra a palma da mão direita. Ele levantou a mão em questão. — Eu preciso de algo para cuidar disso aqui. Vou levar a senhorita Beatrice Rodwell para meu escritório e não desejo ser interrompido. Ah, a não ser por uma coisa: ela vai precisar de um pouco de chá.

— Eu não... — Triz começou a protestar, mas William não permitiu que terminasse:

— Pois bem, eu preciso de um pouco de chá. Está horrivelmente frio lá fora. Tem certeza que estamos na primavera?

O criado – só podia ser esse seu posto –, Joseph, limitou-se a anuir, mantendo a mesma expressão no rosto. Estaria ele acostumado a encontrar seu patrão naquele tipo de situação? No seu lugar, Triz já estaria em puro estado de agitação, perguntando a William um milhão de coisas. E sobre Beatrice? Por que ele não parecia estranhar a presença dela? Seria tão comum assim que o Visconde trouxesse damas a seu apartamento assim, sem mais nem menos?

Ah, aquele não era o momento para aquilo. Ela tinha perguntas mais pertinentes a fazer.

— Sim, milorde. Estamos na primavera. — o homem declarou, após um instante.

— Aterrorizante. — William declarou, antes de se enfiar dentro do apartamento.

Abby não teve muita escolha além de segui-lo.

Uma vozinha em sua cabeça, a vozinha sensata que a dominava na maior parte do tempo, recordou-a da inapropriedade daquilo. Em poucos minutos, uma carruagem chegaria para buscar a eles na Casa Dashwood. A eles e a... Cecily. Cecily! O que acontecera com ela? Beatrice não se lembrava de tê-la visto por perto durante a cena da taça quebrada mas, se ela não estava ali, onde ela poderia estar?

Eles simplesmente tinham partido e deixado ela lá. Mas Beatrice lutou para lembrar a si mesma de que ela estava em casa. Pelos planos, ela teria ido de volta à Casa Bedwyn com Will, mas só porque ela desejava passar mais tempo com ele. Para todos os fins, seu lar era a Casa Daswhood. Isso serviu para tranquilizar Abby um pouco, mas não serviu de nada para fazê-la sentir-se menos culpada. Afinal, também deixara Grace para trás.

A criada nunca a delataria, embora certamente devesse estar preocupada com ela, mas mesmo assim...

Beatrice precisava deixar isso de lado. Haviam dilemas maiores a serem enfrentados naquele momento.

Ela teve um rápido vislumbre do apartamento; mobília clássica, de bom gosto embora antiga, cores neutras, um tanto fora de moda, mas que deixavam bem claro que quem habitava aquele lugar era um cavalheiro solteiro e desprendido das tendências atuais de decoração.

Quando entraram no escritório, a lareira já ardia, acesa. O tal Joseph provavelmente a tinha acendido mais cedo. William jogou-se de imediato numa poltrona perto dela, o que obrigou Beatrice a sentar-se na poltrona gêmea ao seu lado. Após alguns minutos de silêncio, em que ele permaneceu concentrado apertando o lenço contra a própria mão, Triz não aguentou mais e disparou:

— O que aconteceu, Will?

Os olhos dele moveram-se ligeiramente para o lado, sugerindo que ele a tinha ouvido. Mas demorou mais um par de minutos até que ele realmente se pronunciasse:

— Eu quis falar com Annelise.

Beatrice franziu o cenho, confusa.

— Por quê?

O Visconde fechou os olhos.

Agora que tudo acabara, ele também se perguntava: De fato, por quê?

Mas ele sabia o porquê.

William aceitara conversar com Annelise pois sabia que não poderia fugir dela pelo resto de sua vida.

Ela era sua cunhada e Philipp era seu meio-irmão, independente das desavenças que os tinha separado, e se ele desejava voltar a frequentar suas propriedades em paz e voltar a conviver com sua família no futuro, então seria inevitável que se encontrassem socialmente. E ele queria retomar tudo aquilo que perdera nos últimos anos, graças ao seu próprio instinto covarde de fugir do problema, ao invés de simplesmente encará-lo de uma vez por todas.

Ele não saberia dizer o que motivara aquela mudança de pensamento, embora tivesse suas suspeitas. E todas giravam em torno de uma única palavra, ou melhor, de um único nome; Beatrice. Durante aquelas semanas em que tivera a chance de conhecer Beatrice Rodwell melhor, ele se tornara ciente de suas mágoas e mais profundos ferimentos – causados, em sua maior parte, pela morte da mãe dela e por sua decepção amorosa.

Ele a ouvira falar sobre como sentia-se presa a um destino com o qual não se adequava, o qual não conseguia aceitar inteiramente. Tanto sobre seu papel como mulher em sociedade quanto sobre seu luto pela mãe, Beatrice simplesmente não conseguia aceitar os padrões que lhe eram impostos. E no que se concebia à sua mãe e ao luto por ela, não compreender as razões para essa rebeldia a qual se inclinava claramente a fazia se sentir a pior pessoa do mundo.

Mas Will entendia o que estava por trás daquilo. Ele tinha entendido, desde o primeiro momento em que a tinha encontrado na Conversazioni, que aquela mulher não tinha sido criada para amarras. Beatrice Rodwell era um pássaro que nunca se contentaria em ser enjaulado. Ela era uma criatura criada para a liberdade, e era tudo o que ele não conseguia ser; brava, determinada, corajosa.

Talvez tenha sido isso que o tivesse atraído a ela.

Talvez tivesse sido esse o motivo pelo qual ele desejara ser seu amigo, para começo de conversa. Por alguma razão, quando descobrira a verdadeira identidade dele, e tivera contato com aquela personalidade tão distinta, tão diferenciada, ele... Quisera se aproximar. Quisera entrar na vida daquela mulher tão perspicaz e fascinante.

Porque ele nunca conhecera ninguém assim antes e porque ele mesmo não conseguia demonstrar metade da coragem e da determinação que Abby demonstrava. Ela sabia o que queria e estava disposta a fazer tudo para conquista-lo, sem dar ouvidos às críticas ao redor, mesmo aquelas que vinham de sua própria família.

Enquanto William...

Bom, William tinha acreditado que conseguira vencer o pior – afinal, ele tinha encontrado uma forma de aprender a lidar com sua cegueira, o que poderia ser considerado o maior desafio na situação. Mas não era. O maior desafio, no caso dele, era reaprender a tomar as rédeas sobre a própria vida. Reaprender a se impor.

Reaprender a viver por si mesmo.

Nada na vida de William era realmente dele, ele percebeu com uma epifania, na tarde em que tinha contado a Beatrice sobre seu incidente e sobre como, depois de ficar cego, ele nunca voltara a pisar na Casa de sua mãe – nem na própria casa, na verdade, temendo que ela pudesse estar lá. Nada era dele. Nem nunca havia sido. Nem mesmo sua casa. Ele lembrava-se do dia em que tinha voltado para sua propriedade no interior, após seu tempo de convalescença, e de sentir-se um menininho que voltava da escola para ficar sob os cuidados da mãe.

Enquanto ele se recuperava de seus ferimentos, sua mãe havia aprendido a se tornar dona de uma grande propriedade – a propriedade dele – e tinha obtido um imenso sucesso na tarefa. Sucesso até demais, na realidade. E por tê-la visto tão confortável no novo papel e se sentir atordoado – e até oprimido – com a nova casa e a nova vida, ele não fizera nada logo de início para reivindicar seus direitos como homem da casa e como senhor do Viscondado Bedwyn.

E era tentador culpar aos outros por isso, já que desde seu incidente, eles continuaram a sufoca-lo suas atitudes que, embora fossem – a maioria – motivadas por amor, o faziam sentir-se a criatura mais estúpida e incapaz do mundo.

E havia sido que ele fizera por muito, muito tempo. Culpara a eles. Culpara sua mãe por seu cuidado sufocante que o mantinha afastado. Culpara Annelise e Philipp por terem traído ele e o esfaqueado pelas costas em seu momento mais vulnerável, tornando insuportável a ideia de encontra-los em qualquer lugar que fosse.

Assim, ele se ausentara. Ele fugira – para longe da vida deles, para longe de sua família, de Cecily e de tudo e todos que conhecia e amava. Começara a viajar, como uma desculpa para ficar longe da Inglaterra, e limitara seu círculo social basicamente a seus amigos e a seu valete, convencendo-se de que eles eram tudo o que ele precisava. Convencendo que aquela vida era o suficiente. Que era a melhor vida que poderia ter.

Só que não era. E Beatrice Rodwell o fizera perceber isso.

Com sua determinação e sua irreverência ela, sem perceber, fizera William notar quão covarde era. A verdade era que ele era um completo idiota. Por que sempre permitia que as outras pessoas – em especial as mulheres de sua vida, como sua mãe – o manipulassem e o comandassem?

Era verdade que às vezes elas tinham boas intenções ou, ao menos, esse era o intuito. Mas em outras ocasiões, ele também sentia que havia uma certa intenção maligna – embora não proposital. No entanto, qualquer que fosse o caso, nenhuma única vez ele tinha resistido àquelas interferências. E quando fizera isso, ele tinha fugido.

Por tudo que era mais sagrado, será que ele nunca seria um adulto responsável, capaz de pensar e agir por si mesmo, livre da influência dos outros? Não tinha sido sempre assim, certo? Fora um menino decididamente independente. Se não fosse, não teria ido contra tudo e todos para seguir uma carreira no exército. Mas, depois de seu incidente, permitira se transformar naquele fracote.

Beatrice Rodwell o tinha perguntado o que ele aspirava em sua vida. E ele tinha dito a ela que queria ser dono do próprio destino – e só depois de pronunciar aquelas palavras é que tinha finalmente reconhecido a veracidade delas.

Após aquelas semanas, ele tinha tentado traçar um plano para conquistar aquele objetivo. Não tinha tido conseguido como resultado nada muito exato – aquela era uma ideia que ainda estava começando a se assentar em sua mente, na verdade. Quando pensava no que queria fazer da vida, William não conseguia pensar em nada específico. Apenas ideias abstratas e sem nexo. Talvez o objetivo de sua vida, agora, fosse encontrar um objetivo para sua vida.

Mas, antes, precisava fazer algo. O primeiro passo que deveria dar – e talvez o mais difícil deles – rumo a seu novo futuro era encerrar o assunto com Annelise e Philipp.

Afinal, já faziam quatro anos. E aquela rusga era um dos principais obstáculos que o tinha mantido afastado da família naqueles últimos anos. Ele queria colocar um ponto final de uma vez por todas naquilo. Fosse o que fosse, Philipp ainda era seu meio-irmão e Annelise sua cunhada. Eles eram família. E não era preciso adorar a família.

O laço existia de qualquer jeito.

E o laço entre e Philipp, particularmente, tinha histórico.

Diferente de Cecily, Philipp na verdade não era filho biológico da mãe de Will. Ele era filho do Barão Dashwood com sua primeira esposa. Quando o Barão tinha se casado com ela, Philipp e William tinha sido apresentados e convencidos de que deveriam se tratar como irmãos, independente de seu sangue.

E isso não fora difícil. Eles tinham idades próximas e tinham frequentado Eton juntos. No dia em que tinham sido apresentados, eles tinham brigado, e Will acabou deixando um olho roxo em Philipp. Como castigo, tinham recebido bengaladas nas costas e a partir daí tornaram-se amigos fiéis, praticamente inseparáveis.

Philipp e William estudavam juntos. Passavam todos os feriados escolares juntos. Eles costumavam brincar pela propriedade Dashwood, William fingindo ser um soldado de cavalaria e Phil, um homem da marinha.

— Juntos, vamos acabar com aqueles franceses, Will! — Philipp costumava gritar, antes dos dois garotos entrarem numa luta de espadas com cabos de madeira e depois caírem de tanto gargalhar no chão após um deles ser atingido.

Quando Will decidira deixar os estudos para seguir carreira no exército, com a benção de seu tio, o Visconde Bedwyn, ele convidara Philipp para ir junto, sabendo que o irmão sempre tinha ansiado uma carreira militar assim...

Mas Phil negara a proposta, em detenção de continuar seu aprendizado para se tornar o futuro Barão Dashwood. Na época, Cecily já era uma criança pequena, e a saúde do Barão já tinha decaído consideravelmente. Philipp sabia qual era seu lugar, e sabia que a qualquer momento precisaria receber seu título e tudo o que vinha junto.

Will, não. Will não queria saber do título que o tio lhe tinha prometido, embora esperasse recebê-lo um dia. Afinal, o Visconde Bedwyn era então um homem perfeitamente saudável, ainda jovem e tão aventureiro como sempre tinha sido. Como ele poderia adivinhar que o sujeito contrairia malária em sua viagem para as Índias e morreria dali a um ano e meio?

É claro que ele não poderia. E, assim, ele aceitara o posto no exército com todo a empolgação do mundo, bêbado na glória de conquistar seu sonho. Olhando para trás, as reações divergentes à expectativa das novas responsabilidades que acompanhavam os títulos provavelmente foram um pequeno prenúncio do rompimento que depois ocorreria entre eles.

Pois depois que William partiu para a Península, ele nunca mais viu Philipp.

Mesmo depois de perder a visão e de receber a notícia do rompimento de seu noivado com Annelise e do início noivado da própria com Philipp, ele ainda assim ouvira Philipp. Diferente de Anne, Philipp não fora falar com ele. Nem uma palavra. Nada. Nem o visitara depois em qualquer outra ocasião, no hospital ou depois dele ter voltado para a Casa Bedwyn e dos dois terem recebido seus respectivos títulos.

Como se tivesse sido ele que apunhalara o próprio irmão pelas costas.

Sim, ele teria que falar com Philipp, também. Em algum momento. Mas achava que falar com Annelise primeiro seria mais fácil – ela, pelo menos, ainda parecia querer falar com ele. E, embora hesitasse em admiti-lo, Will também queria falar com ela – para tentar organizar suas ideias, para tentar deixar para trás uma bagagem múltipla e intricada.

Pois havia sempre a ameaça de uma dor de cabeça toda vez que sua mente esbarrava naquela tal bagagem. E aquela sensação de pânico que ele não conseguia entender muito bem. Ele não sabia, tampouco, o que mais havia para compreender.

Annelise tinha rompido o noivado e casado com Philipp. Ponto final. Ela dissera a William, na ocasião em que o tinha visitado no hospital para dar-lhe a notícia, as próprias razões para isso. E, embora não fizessem a dor da traição diminuir, o lado mais sensato de Will não podia condená-la...

Por inteiro.

Talvez tivesse sido por isso que, quando tinha se deparado com ela e Philipp no piquenique da regata, ele tivesse reagido tão mal a eles. Ainda não sabia muito bem o que sentira quando ouvira de novo a voz dela após todos aqueles anos. Aquela voz sofrida, cheia de remorso e tão dolorosamente familiar. Não importava como se sentia, na verdade.

Aquela história estava prestes a ser encerrada.

Foi o que tinha pensado, quando ouvira a voz de Annelise aproximar-se dele mais uma vez, enquanto esperava Beatrice voltar com as bebidas.

— Will. — ela dissera. — Há algo que eu queria dizer a você. Pensei em dizê-lo quando vim cumprimenta-lo antes, mas... Não me pareceu adequado.

— Que bom. — ele retrucara, pragmático. — Porque há algo que eu também gostaria de dizer a você, Lady Dashwood.

Ele a sentira se mover, inquieta, ao seu lado. Parecia que a tinha pego de surpresa – afinal, até então não tinha demonstrado nenhuma disposição em falar com ela.

— Aceita uma bebida? — ela perguntara. Parecia que queria tornar o momento mais descontraído.

Antes que ele respondesse que já estava aguardando Beatrice, no entanto, ele sentira a mão dela tentando entregar uma taça com algo gelado dentro à mão direita dele.

Aceitara a taça, então, crendo que seria rude simplesmente empurrá-la de volta.

— Devo me sentar? — perguntara, incapaz de conter o toque de ironia na voz.

— Ah, Will. — ela lamentara. — Por que continua usando esse tom comigo?

— Você realmente quer que eu responda?

William podia ser muita coisa, mas não era de sua natureza ser rude, nem minimamente descortês. Só que a presença de Annelise o enervava de um modo que não compreendia – era algo além do ressentimento pelas mágoas passadas. Ele não sabia definir o que era, no entanto. Fosse o que fosse, o desestabilizava como nada mais conseguia desestabilizar.

Ela comprimira os lábios. Ele não podia vê-la, é claro, mas sabia que ela tinha feito isso. Pois nada mudava o fato de que a conhecia há muito, muito tempo. Haviam coisas – e pessoas – que simplesmente não dava para se esquecer, por mais que se desejasse fazê-lo.

Após um súbito silêncio, cheio de carga acusatória por parte dele, Annelise murmurara:

— Sinto muito.

Então era isso que ela queria dizer a ele? Inexplicavelmente, Will vira-se impaciente.

— Você já disse isso algumas vezes, Lady Dashwood. E eu já disse que não há mais o que se desculpar. Já fazem quatro anos.

— Não estou dizendo por mim, — ela retrucara. — estou dizendo por Philipp.

Isso, então, pegara ele de guarda baixa. Algo começara a borbulhar dentro dele – Will reconheceu o sentimento facilmente. Era a indignação, seguida de perto pela raiva, seu pior e mais perigoso inimigo.

— Em nome do Barão Dashwood? — indagara, com uma risada seca. — Imagino que se ele realmente se arrependesse de algo, poderia ter feito isso, hum... Digamos... Quatro anos atrás?

— Will, — Annelise protestara. — por favor, não fale dessa forma. Philipp queria falar com você quando fomos ao hospital naquela ocasião, queria mesmo, mas ele... Não conseguiu reunir a coragem. Ele achava que seria um golpe profundo demais para você.

E ele não estava errado.

Will balançara a cabeça, então. O que estava fazendo? Tinha decidido levar aquela conversa por um rumo totalmente diferente. Era para estar oferecendo a ela palavras pacíficas, de conciliação mas, ao invés disso, continuava despejando veneno em cada frase que pronunciava. E a cada palavra dita por Annelise, inexplicavelmente, mais furioso ele se sentia.

— Ele nunca se perdoou. — a voz dela continuou entrando por seus ouvidos. William esquecera-se de como a voz dela podia ser suave e doce. Envolvia todos os seus sentidos, como sempre. — Parecia ser a coisa certa a fazer, na época. Nós dois achávamos que seria algo que você aprovaria, e meus pais, até mesmo sua mãe, concordaram. Nós não acreditávamos... Pois bem, seu médico não podia nos dar certeza de sua recuperação. Mas quando decidimos ir lá contar a você, Philipp não conseguiu. Ele mudou de ideia, dizendo que estávamos traindo você.

— Pensei que tivessem sido apoio um para o outro. — em meio à onda de fúria e estranho pânico que começava a dominá-lo, William conseguira retruca-la, com amargor. Ele recuara um passo, ainda segurando a taça com a bebida numa mão. Levara a mão livre até a testa e começara a esfrega-la, como se quisesse afastar a dor de cabeça que estava começando a aproximar-se.

Mas ela não parecia querer ceder. E, por tudo o que era mais sagrado, Annelise não parava de falar.

— E fomos, a princípio. — ela respondera. Sua voz estava frágil, quebradiça. Isso teria compadecido William se ele não estivesse sentindo, naquele momento, que ele mesmo estava caindo dentro de um precipício aterrorizante e familiar. Sem resistência. Sem controle. — Mas quando ficamos sabendo de sua recuperação, depois, foi terrível... Para nós dois. E pior ainda para Philipp. Ele simplesmente não podia acreditar no que tinha feito com você.

Cale a boca, ele pedira, mas o pedido não saíra pelos seus lábios.

Will não queria acreditar naquelas palavras. Talvez porque elas tivessem pegado-o de surpresa, e estivessem surtindo um efeito indesejável nele. Mas por que Annelise mentiria sobre aquilo? Ela parecia estar tentando fazer o mesmo que ele – as pazes. Então por que ele só estava ficando mais e mais nervoso?

E Annelise ainda não tinha terminado.

— Mas foi tão maravilhoso para você. Ao mesmo tempo em que se sentiu mal, Philipp ficou tão feliz ao saber de sua melhora. Nós dois ficamos. Mas... Na cabeça dele, já tínhamos cometido um erro trágico.

Faça silêncio, suplicara, e uma vez mais, as palavras ficaram presas em sua mente. Ele sentiu que despencava num abismo muito familiar, mas do qual tinha conseguido fugir nos últimos anos.

Não. De novo não.

Começara a esfregar a testa com mais força.

Philipp nunca escrevera para ele. Talvez tivesse encontrado a mesma dificuldade de colocar a pena no papel que ele, Will, sentira depois de seu casamento com Annelise. Perguntou a si mesmo o que realmente teria pensado Philipp ao decidir se casar com Anne, e sua mente deu um daqueles recorrentes blackouts – não havia maneira melhor de definir o que acontecia, o que fez a dor em suas têmporas aumentar.

Por tudo que era sagrado, aquela voz não parava!

— O que mais queremos é resolver isso. E eu também queria dizer a você que eu nunca...

Nas profundezas da própria mente, Will ouvira o som abafado de um estrépito. Então ouvira Annelise arquejar, e isso fez com que ele abrisse os olhos que se quer lembrava de ter fechado. Mas o que de fato o trouxe de volta para a realidade foi a intensa pontada que sentiu na mão direita e o ardor que se espalhou por ela em seguida.

Ele não conseguia vê-la, mas num lapso, soubera que sua mão estava ferida. Ele conseguira sentir o sangue escorrer dela, e reconhecera o estrépito anterior como o ruído de vidro se quebrando.

Foi então que ele notara o que tinha acontecido. O que acabara de acontecer.

Mas como ele poderia explicar isso à Beatrice? A última coisa que queria fazer, agora que sentia que estava começando a conquistar sua confiança, era assustá-la. Mas agora eles estavam ali, e ele sabia que ela não se contentaria em partir sem uma explicação.

Por isso, após um minuto que bem poderia ter sido uma eternidade, William parou de apertar o lenço que ela lhe dera contra a palma ensanguentada de sua mão.

— Algum tempo atrás, — começou. — você me perguntou porque eu não voltei para casa, depois do meu incidente.

A princípio, Beatrice permaneceu em silêncio. Mas então, quando Will não continuou a falar, disse:

— Sim. — e ele era incapaz de ouvir o que havia por trás de seu tom de voz. Desde que tinham se retirado da Casa Dashwood, ela não falara quase nada, e o pouco que falara fora com um tom de voz controlado.

Teria ela se espantado com o que tinha visto na festa? Provavelmente. De modo que, no fim, todas as suas preocupações eram inúteis. O melhor que poderia fazer ela tentar deixa-la menos assustada. Embora não soubesse bem se isso era possível.

— Eu já lhe disse em que condição estava quando cheguei da península.

— Sim.

— Não havia como voltar daquela forma. Cego e surdo, eu não era nada além de uma existência agonizante.

Ele ouviu-a engolir levemente em seco antes de dizer:

— Sim.

— Mesmo depois de recuperar a audição, não voltei para casa. Por isso minha mãe, Annelise e Philipp vieram me ver no chalé. Minha audição tinha voltado, e eu estava consciente, mas nem sempre conseguia pensar com clareza ou compreender o que acontecia à minha volta e o que as pessoas diziam. Eu constantemente ficava fora de mim. O que, na verdade, não é uma definição muito precisa do que me ocorreu...

William fez uma pausa, buscando as palavras exatas. As memórias do início de sua recuperação eram, em sua maior parte, grandes borrões estroboscópicos de sons e cheiros e sensações, perdidos na escuridão de sua cegueira. Isso quando não eram somente isso – escuridão, vazio.

Só em lembrar daqueles primeiros meses, Will sentia-se pendendo de volta ao estado contínuo de confusão e pânico que havia os regido.

—... Porque tudo ficaria bem se eu estivesse fora de mim. O problema era que eu ainda estava preso dentro de mim. Não podia escapar. Minha mente era como um tabuleiro de xadrez - os quadrados escuros eram a parte consciente e os brancos eram os espaços vazios e incompreensíveis que eu era incapaz de alcançar.

Beatrice então fez uma pergunta que não sabia se desejava saber a resposta:

— E quando você tentava alcançá-los...?

Os olhos de Will desfalcaram-se, como se ele estivesse muito longe, de volta àquele tempo que descrevia.

— Quando eu me esforçava demais para alcançar esses espaços e tentar preenchê-los, duas coisas podiam acontecer: ou eu era acometido por um de meus episódios de terror ou era castigado por terríveis dores de cabeça que sempre precediam... — ele fez uma pausa. Seus dedos arranhavam ansiosamente os braços da poltrona. Beatrice conseguia ouvir o atrito de suas unhas contra o couro. — Eu queria machucar todos, principalmente aqueles que não eram gentis comigo. Eu queria puni-los. Eu queria me machucar. Odiava todo mundo, sobretudo a mim mesmo, por ter acabado daquele jeito. Depois que voltei a ouvir, meus amigos me disseram que, nas poucas vezes em que conseguia falar, eu falava aos berros, e a cada três palavras eu soltava algo estarrecedor até para o vocabulário de um soldado. Eu era perigoso. Violento.

Beatrice continuou ouvindo, com as mãos entrelaçadas uma na outra.

— Quando me levaram até Bath, eu estava preso numa camisa de força. Pelo tempo em que fiquei sem escutar foi pior, mas não melhorou muito depois que voltei a escutar. Eu me lembro...

Ele parou. Sem pensar muito, Triz estendeu a mão e repousou-a sobre uma das mãos dele. Foi então que percebeu que ele tremia. Novamente.

— Não precisa continuar. — pediu. — Esqueça isso, Will, e vamos apenas...

— Não. — ele retorquiu, com firmeza. Seu cenho estava franzido. — Eu preciso falar. Você precisa entender o que aconteceu lá atrás.

Após alguns minutos, em que parecia estar se esforçando para lembrar, ele prosseguiu:

— Eu lembro... Da primeira coisa que eu ouvi. — William fechou os olhos com força. — Eu estava sendo envolvido... Por braços conhecidos, familiares. Os únicos que tinham conseguido me envolver, apesar de meus esforços furiosos em refutá-lo. E então eu ouvi a voz dele.

— De quem? — Bea indagou, com delicadeza.

Um sorriso trêmulo entremeou-se nos lábios do Visconde, então.

— De Levi. — respondeu. — Ele me pedia, vez após vez,.. Que eu parasse de me machucar. E me pediu também para não desistir. E então, quando acenei com a cabeça, mostrando que tinha ouvido... Ele me soltou, só para me abraçar de novo com mais força.

Isso, meu rapaz, fora o que Levi dissera a William. E o alívio em sua voz tinha feito com que ele quisesse chorar. Pois depois de tanto tempo perdido num poço de escuridão, com somente os próprios terrores para fazê-lo companhia, Will finalmente tinha sentido...

Que não estava mais só.

— Levi tinha conseguido se aproximar e me levar para Bath, onde encontrou bons tratamentos para mim. Mas mesmo depois de recuperar a audição, eu ainda era instável. — William continuou, inexpressivo. — Pouco depois de chegarem, Anne veio me contar que o fim do nosso noivado seria anunciado nos jornais do dia seguinte e que, alguns dias depois, haveria o anúncio do seu noivado com Dashwood. Meu irmão. Meu melhor amigo. Ela disse que seu coração estava partido, que os dois tinham ficado desolados com o que acontecera comigo, mas que tinham encontrado conforto um no outro e que me amariam pelo resto da vida.

As mãos de William agora estavam fechadas em punhos.

— Eu compreendi o que ela disse. — ele afirmou. — Mas não consegui responder. Só saíram sons incompreensíveis da minha boca quando tentei. Fiquei desesperado para impedi-los. Aquilo não podia estar acontecendo, eles não podiam... — ele inspirou ruidosamente. Parou. Balançou a cabeça. Então prosseguiu, retomando o tom de voz controlado: — Levi tinha nos servido chá, e quando ela tentou sair, eu... — os nós dos dedos dele estavam quase roxos, e sua voz de repente soou entrecortada, como se ele fosse incapaz de acreditar no que diria a seguir: —... Não me lembro de tudo desse dia, mas... Eu quebrei uma xícara na parede, ao lado da cabeça dela.

Ah. Os olhos dele continuavam vidrados no chão quando concluiu:

— Não sei por quê fiz isso. Eu só não queria que ela partisse. Depois que ela foi embora, eu destruí a sala. Quebrei as cadeiras, rasguei as cortinas. Estava desesperado para falar com Philipp, mas não conseguia emitir uma palavra se quer. Foi como se todo o avanço que eu tinha obtido no meu tratamento tivesse ido por água abaixo. De todo modo, ele não apareceu, e logo depois disso eles foram embora.

— Seu irmão. — repetiu Triz, num murmúrio.

William virou o rosto, como se estivesse envergonhado demais para olhá-la diretamente:

— Eles se casaram. — sentenciou o que ela já sabia.

— Lady Dashwood me disse que hoje vivem quase separados, depois do nascimento da menina. — contou Beatrice. — Parece que são infelizes.

A boca de William se contorceu com zombaria, e ele riu, sem humor.

— Eu deveria estar me regojizando. — disse, baixinho. — Mas pobre Philipp.

— O que aconteceu lá atrás. — Triz falou, lentamente. Ainda estava digerindo tudo o que tinha acabado de ouvir. — Aquilo foi...?

— Eu não sou desse jeito. — Will apressou-se em dizer. — Não mais. Até essa noite, já faziam dois anos... Que isso não acontecia. Normalmente, eu começo a sentir dores de cabeça, e então já trato de arranjar alguma forma de me acalmar antes que piore. Mas hoje... — ele parou. Parecia francamente confuso. E frustrado. —... Eu não sei o que ocorreu hoje.

Após um minuto, Beatrice disse:

— Eu acredito em você. — pois ela conseguia sentir que ele parecia esperar algum tipo de confirmação ou reação dela.

William abriu um sorriso sofrido.

— Acho que agora é a hora que você se levanta e corre para o mais longe de mim quanto possível, Abby.

Ela ergueu os olhos para encará-lo diretamente:

— E por que eu faria isso?

— Estou certo de que a última coisa de que uma dama que está sendo cortejada quer ouvir são as histórias do cavalheiro que a está cortejando com outra mulher.

— Uma parte da história. — Beatrice corrigiu-o, baixinho. Jogou a cabeça para trás e olhou para o rosto, iluminado pelas chamas da lareira. — Essa não é a história inteira, é? Você disse que não se lembra de tudo.

Ele desviou os olhos para algum ponto no chão.

— O problema — declarou, sorrindo sem jeito. — é que nem sempre consigo lembrar do que não consigo me lembrar... Ou que não consigo lembrar essas coisas. Aquela explosão arrancou parte dos meus miolos junto com minha visão, parece. Ainda há todo tipo de lacuna em minha cabeça. Principalmente nas memórias dos primeiros meses após minha recuperação. Sou uma confusão, Abby. Uma grande pilha de confusão.

— Somos todos uma confusão. — ela esperou que ele pudesse ouvir o sorriso em sua voz. — Acho que faz parte dessa coisa de ser humano.

— Mas não são tantos assim aqueles que estão por aí soltos, com cabeças que parecem aqueles queijos franceses cheios de buracos. — retrucou ele. — Seu cortejo de mentirinha tem um maldito queijo na cabeça, Abby.

Triz começou a rir e, para sua surpresa, Will também.

— Que aventura. — ela declarou. — Já te falei que adoro aventuras?

Eles riram mais uma vez.

Então, no instante seguinte, a porta abriu-se.

— Pediu chá, milorde? — Joseph perguntou, na entrada do escritório.

O Visconde virou-se ligeiramente na direção dele:

— Ah, por favor, Joseph.

— Milorde, — o criado informou, enquanto os servia. — enquanto conversavam, sua carruagem chegou, trazendo uma moça à bordo. O que devo fazer com ela?

Beatrice quase saltou da poltrona.

— Grace! — exclamou. — Deve ser a Grace.

William assentiu.

— Por favor, Joseph, leve a senhorita Rodwell até a carruagem e peça para que o cocheiro leve-a junto a senhorita Grace para a Casa Whitmore.


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