Wicked Love. escrita por Beatriz


Capítulo 20
Capítulo 20.




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Kaname queria poder ter ficado ao lado de Kaori. No momento em que ela desmaiou e a confusão toda começou, aconteceu tudo tão rápido e ele teve que deixa-la aos cuidados de Ichijou. Ainda bem que, aparentemente, o loiro ainda estava ao lado de Kaname e não precisou de nenhum comando do Puro-Sangue para pegar a caçadora do chão e sair com ela dali o mais rápido que conseguisse. Kaname não sabe para onde ele a levou, mas sabia que não precisava se preocupar. Ichijou era melhor do que Kaname jamais seria, ele realmente tinha um coração bom.

O caçador, Zero, era tão patético. Perdeu a cabeça tão facilmente, agiu por impulso, mesmo estando extremamente frágil e com tantos vampiros ao seu redor que sua morte poderia acontecer em um picar de olhos. Kaname ainda estava tentando entender como ele havia encontrado Kaori, pois imaginava que o caçador não acordaria tão cedo. Alguns laços são mais fortes do que imaginamos, Kanamei, sua mãe havia lhe dito uma vez. Na época, ele pensou apenas na ligação de sangue, mas agora sabia que existem outros tipos de ligações que podem ser ainda mais forte que a ligação de sangue.

O noivo de Kaori havia tentado ataca-lo dentro de seu escritório. Mesmo frágil como estava, ele ainda conseguiu passar por Aidou e Senri, mas foi finalmente impedido por Akatsuki que era maior e, no momento, bem mais forte que o humano. Contudo, Kain pode ter conseguido para seu corpo, mas a boca não. Kaname ainda teve que ouvir muitos xingamentos. Zero apenas se calou quando Aidou acertou um soco em seu estômago que o fez perder o ar. O Puro-Sangue estava agradecido por seus amigos terem o parado, não queria acabar com o caçador debaixo do mesmo teto em que Kaori estava. Porém, apesar de protege-lo, sentia, emanando de seus amigos, tanta raiva que o sentimento parecia denso como as paredes do escritório, quase palpável. Incredulidade, descrença, raiva, tristeza, traição... Tudo isso eles estavam sentindo em um nível tão alto que pareciam facas atiradas em sua direção.

A ideia de levar Zero para longe dali foi de Akatsuki e todos concordaram, sem esperar pela permissão de Kaname. Talvez seus dias como líder do grupo houvesse acabado. Tudo isso por humana. E valeu a pena? Uma parte de sua mente insistia em perguntar. Talvez sim, talvez não, mas o que estava feito nunca poderia ser desfeito. Ele não tinha o poder de mudar o passado. Seus amigos foram embora com Zero antes que outros vampiros chegassem ao dormitório, o levaram para Deus sabe onde e Kaname ficou tentado a deixa-los para lá e ir atrás de Kaori, mas sabia, no fundo, que não poderia fazer isso. Ela nunca o perdoaria. O Puro-Sangue encontrou-se com Ichijou em um dos corredores, o loiro estava correndo para falar com ele, mas Kaname não tinha tempo para conversa. Ele pediu que o amigo tomasse conta da caçadora e saiu do dormitório, sumindo na escuridão da noite.

Seus amigos, ou ex-amigos, ele ainda não sabia, não deram nenhuma pista de seu destino, mas Kaname conseguiu rastreá-los através do cheiro de Zero. O cheiro humano sempre era inconfundível. Um Puro-Sangue poderia reconhece-lo a quilômetros de distância. Apesar de hoje em dia os vampiros comerem outras coisas também, o sangue humano sempre foi a principal fonte de alimento, então o cheiro era inconfundível.

Kaname os seguiu através da floresta. Ele não sabia como os amigos haviam imobilizado Zero sem machucá-lo, mas imaginava que era impossível tal coisa. Provavelmente o humano estava machucado e por isso o cheiro de sangue estava tão forte. Quando finalmente os encontrou, estavam nas ruínas de um castelo próximo onde Kaname havia se encontrado com eles várias vezes para conversar sem que qualquer outro vampiro da academia os escutasse.

Era um castelo antigo, provavelmente pertencia a algum lorde de um tempo antigo que há muito fora esquecido, porém, agora, o que antes era algo majestoso e imponente, não passava de um amontoado de pedras e algumas fundações que ainda resistiam à ação do tempo. Seus amigos, com exceção de Senri, e o caçador estavam no que antes devia ter sido o pátio de entrada, porém agora apenas o piso ainda estava inteiro. O luz da lua iluminou-os no momento em que Kaname se aproximou, o caçador estava sentado no chão, com sangue escorrendo por seus lábios e as mãos amarradas nas costas. Os outros vampiros estavam dispersos pelo local, uns próximos do humano, outros mais distantes, todos conversando entre si e decidindo o que fazer – ou se sequestrar Zero havia sido uma boa ideia.

— O que ele está fazendo aqui? — era a voz de Rima. Todos os vampiros se viraram para encará-lo.

— Não se atreva a dar mais nenhum passo, ouviu bem? — era Akatsuki agora, se aproximando de Kaname com fúria nos olhos. Antes que ele chegasse até o Puro-Sangue, Aidou o parou, encarando Kaname. Nos olhos azuis do loiro, Kaname pensou ter visto uma súplica para que toda essa noite fosse um pesadelo. — Estamos nessa merda por sua causa!

— Eu não pedi para vocês fazerem isso — Kaname disse, chegando ainda mais perto deles.

— Como você pôde, Kaname? — Aidou perguntou, o rosto tremendo. — Depois de todas as leis criadas, de todo o sofrimento que passamos para não tomarmos sangue humano, de toda a lealdade que sempre tivemos por você, como pôde se envolver com uma humana?

— Não o matem — Kaname disse, apontando para Zero e ignorando as perguntas do amigo.

— Não preciso da sua pena, seu filho da puta desgraçado! — Zero cuspiu as palavras, encarando o Puro-Sangue.

Antes que Kaname ou qualquer outro vampiro pudesse falar mais alguma coisa, Zero soltou-se das cordas que lhe amarravam. Era um caçador afinal, não seria qualquer besteira que o pararia. Ele estava desarmado, mas avançou na direção de Kaname como se estivesse. O que foi em vão, pois o vampiro o parou apenas segurando seu pescoço com força suficiente para fazê-lo perder o ar no mesmo instante.

— Você não é páreo para mim — Kaname disse, olhando nos olhos lilases de Zero. — Então, sugiro que pare antes que se machuque.

— Eu vou... matar... você — Zero disse, com dificuldade.

— Pode entrar na fila então — o vampiro o soltou bruscamente, fazendo Zero cair no chão.

Akatsuki se apressou até o caçador. Segurando seus cabelos brancos, ele pressionou uma adaga em seu pescoço. Vampiro nenhum precisava realmente de armas para matar alguém, mas nenhum amigo de Kaname gostava de fazer isso com as próprias mãos.

— Temos que mata-lo — Akatsuki disse, trocando olhares com todos menos com Kaname. — Temos que mata-lo agora ou ele poderá contar a alguém. Uma guerra pode ser iniciada por causa de... — ele trocou um olhar rápido com Kaname. — Por causa dessa merda!

Pelo canto dos olhos, Kaname percebeu quando Ichijou chegou ao local. Ele se perguntou com quem Kaori estava agora, mas sabia que o vampiro não a deixaria sozinha em qualquer lugar. O loiro estava incrédulo com o que via ali e, provavelmente, estava com tanta raiva de Kaname quanto eles, mas não estava demonstrando, pois parou ao lado do vampiro, observando Akatsuki com aquela adaga.

Kaname nunca tinha visto tanta fúria nos olhos castanhos escuros de Kain. Ele parecia realmente magoado, realmente traído. O Puro-Sangue não tirava sua razão, sabia que o que tinha feita era um erro irreparável desde o momento em que decidiu salvar a vida da caçadora e se ligar à ela. Ele não tirava a razão de nenhum de seus amigos, mas não podia deixar que um inocente pagasse por seus atos. Além disso, se Zero morresse ali, Kaori nunca o perdoaria.

Apenas com um olhar, Kaname empurrou Akatsuki para longe de Zero. O vampiro bateu em uma pilastra à alguns metros de distância. Rapidamente ele se aproximou de Zero e o segurou seu braço, erguendo-o do chão. Mesmo com todo o ódio no olhar do caçado, os dois encararam-se. Algo não dito passou entre eles, um sentimento que eles dois tinham em comum. Para os dois, estar apaixonado pela mesma mulher era um fardo muito grande. Eles sabiam que não poderia matarem-se sem ferira de um jeito incurável. O caçador estalou a língua, virando o rosto para o lado, enojado por ter percebido o que ele não poderia imaginar nem em seus piores pesadelos: Kaori não estava ali naquela sala contra sua vontade.

— Preste atenção — Kaname segurou o rosto do caçador, forçando-o a encará-lo novamente. —, seria muito fácil para mim apagar suas memórias — atrás deles, Seiren deu um passo à frente, mas não faria nada sem que antes o vampiro mandasse. — Mas não o farei. Conviva com isso ou não, é uma escolha sua. O que você viu naquela sala é um crime punido com morte para ambos os lados. Não peço que se importe comigo, não preciso disso, mas, se ainda há qualquer coisa aí dentro de você por Kaori, pense nela. Não quero matar ninguém, mas se você pensar em abrir a boca, eu não vou te deixar escapar ileso.

Zero se afastou de Kaname bruscamente, empurrando o vampiro para trás. O caçador se sentia enjoado, o ferimento em seu pescoço estava sangrando novamente, seu estomago e seu rosto doíam dos socos que haviam levado de Akatsuki. Ele sabia que não tinha forças suficiente e nem estava preparado para lutar contra um grupo de vampiros. Sabia que, por mais raiva que os outros estivessem, eles seguiram o Kuran institivamente. Mesmo odiando isso, ele teve que fazer uma escolha e escolheu continuar vivo, pelo menos por enquanto, pois não se importaria de morrer tendo matado um por um, principalmente Kaname. Sem mais nenhuma palavra, Zero deu as costas para eles e sumiu na escuridão da floresta.

— Kaname-sama... — Seiren disse, mas Kaname ergueu uma mão, calando-a.

— Como você se atreve a deixa-lo fugir?! — Aidou esbravejou, congelando o piso abaixo de seus pés até chegar aos pés de Kaname.

O Puro-Sangue desviou o olhar do caminho para onde Zero havia ido e olhou na direção de Hanabusa. Diante do olhar do vampiro, Aidou vacilou, dando um passo para trás. Apesar de tudo, Kaname ainda era o líder ali, não seria tão fácil assim os outros pararem de teme-lo.

— Kaname-sama — dessa vez Seiren se aproximou o suficiente de Kaname para dizer a ele que haviam outros dois vampiros se aproximando.

Kaname olhou na direção em que ela apontou e esperava ver qualquer um ali menos Maya e seu meio-irmão, Ayato. Os dois caminhavam calmamente, lado a lado, na direção deles. Akatsuki mais uma vez se colocou em modo de ataque.

— Esse grupo de vocês realmente precisa ser estudado — Maya se fez ouvir, adentrando o local onde eles estavam, passando por baixo de uma trepadeira. — Qual é a necessidade de se enfiar no meio do mato apenas para matar um humano?

 — O que vocês dois estão fazendo aqui? — Kaname perguntou, encarando a vampira.

Maya olhou para Ayato pelo canto dos olhos. O vampiro parecia estar se divertindo, estava com os braços cruzados sobre o peito, com um sorriso pequeno no rosto. Ela revirou os olhos e suspirou, encarando Kaname.

— Longa história.

Minutos atrás, ainda na escola...

Depois que Maya deixou a caçadora aos cuidados suspeitos de Senri, ela se dirigiu ao portão da academia, torcendo para que nenhuma besteira acontecesse até ela chegar ao local em que Kaname e os outros estavam. Porém, antes que conseguisse chegar lá, foi parada próximo ao portão de saída por seu meio-irmão Ayato, que estava encostado ao portão, encarando-a.

— Aonde você vai? — ele perguntou, enquanto a vampira passava por ele.

— Não te interessa — ela respondeu.

Retomando seu caminho, Maya revirou os olhos quando percebeu que o vampiro a seguia.

— O que você quer, Ayato? — ela perguntou. — Me deixa em paz.

— Escutei a sua conversa com Ichijou — ele respondeu.

— Sua mãe não lhe ensinou que isso é falta de educação?

— Como ela poderia me ensinar algo se sempre teve olhos apenas para o Laito? — ele respondeu. Maya percebeu uma pontada de ressentimento na fala do meio-irmão, mas resolveu ignorar. Não poderia lidar com dois problemas agora. — Interessante Kaname se alimentar de uma humana bem debaixo do nariz de todo mundo e ninguém perceber. E ela ainda está no dormitório masculino! Eu bem poderia fazer uma visitinha...

— Você pode, por favor, não foder a situação mais do que já está fodida? — Maya perguntou, tentando se orientar pela floresta. Desde criança ela sempre foi uma rastreadora muito boa e encontrar rastros, seja pela terra, ar ou água, era fácil. Não demorou muito para sentir a presença de outros vampiros e seguiu naquela direção com Ayato em seu encalço.

— Foder? — Ayato agora estava bem próximo dela, andando lado a lado. — Eu só animaria mais as coisas. Tudo está tão sem graça desde que aquelas duas caçadoras apareceram na academia.

— Shh! — Maya ergueu uma mão, silenciando o irmão.

Eles encontraram Kaname e seu grupo no exato momento em que o Puro-Sangue deixou que Zero fosse embora sem arrancar mais sangue dele, confiando apenas no bom senso e amor que ele sentia por Kaori para não contar nada daquilo à ninguém.

Agora...

— Vocês deveriam ir embora daqui, Sakamaki — a voz de Ruka se fez ouvir. Ela estava com as presas à mostra, os olhos vermelhos.

— Cala a boca — Ayato revirou os olhos, dando um passo a frente. — No dia em que um de vocês parecerem ameaçadores para um Sakamaki com certeza o mundo estaria acabando ou algo assim.

Ruka fez menção de atacar Ayato, mas a outra amiga de Kaname, Rima, a impediu. Maya andou até o meio do circulo que Kaname e seu grupo formavam.a tensão estava tão alta no local que era algo quase palpável.

— Escutem todos vocês — Maya disse, diplomática. — Já chega dessa palhaçada. Vocês nem ao menos sabem porque Kaname fez tudo isso.

— Não preciso que você fale por mim, Maya — Kaname disse.

— Ah, vai se foder, Kaname — ela olhou para ele, cansada. — Você já causou toda essa confusão. É melhor ficar calado e evitar mais algum desastre — a vampira voltou-se novamente para o grupo. — Temos problemas demais para lidarmos ultimamente. Ninguém aqui vai começar uma guerra por besteira.

— Quem você pensa que é para nos dizer o que vamos ou não fazer? — Aidou se manifestou. — Kaname mentiu para nós, cometeu um crime!

— E quem nunca, não é mesmo? — ela sorriu debochada.

— Se manda daqui, sua Puro-Sangue de merda — Akatsuki, no auge de sua ira, atacou Maya, mas ela foi mais rápida e seu golpe atravessou o abdômen do vampiro como se ele fosse um boneco de palha. O vampiro, bem mais alto que Maya, se curvou sobre ela, cuspindo sangue.

— Não me subestimem — ela disse, ameaçadora. Uma sobre havia caído sobre seus olhos cor de rubi. — Estou falando sério. Sou uma Puro-Sangue — ela se livro de Akatsuki, que cambaleou para longe e foi amparado por Ruka. — Posso matar vampiros como vocês em um piscar de olhos — ela ajeitou a postura, fazendo contato visual com todos. — Vocês querem odiar Kaname? Ótimo, mas uma guerra não seria benéfica para ninguém.

— Está tentando proteger aquela humana? — Ruka perguntou, ainda apoiando Akatsuki.

Maya encarou a vampira por um momento. Ela era patética, sofrendo por um cara que nem ao menos olhava para ela do mesmo jeito.

— Estou tentando proteger todos nós — Maya respondeu. — Se toda essa situação vazar, não atingirá apenas Kaname e a caçadora. O que vocês acham? Que cada um de nós não sofrerá as consequências também? Uma guerra entre vampiros e humanos é a última coisa que precisamos.

— Deveríamos mata-lo com as nossas próprias mãos — Akatsuki cuspiu as palavras, encarando Kaname. O vampiro sentiu uma pontada em seu peito.

— Vocês podem tentar — Ayato disse, dando um passo à frente. Ao lado de Maya, os dois faziam uma barreira entre Kaname e os outros. — Mas terão que passar por nós dois primeiro. E, spoiler: — ele sorriu. — vocês não vão conseguir.

Um momento de silêncio se passou entre eles. Ninguém se moveu e o único barulho era o do vento entre as árvores. Maya sabia que os amigos (ou ex-amigos) de Kaname estavam ponderando se atacariam ou não. No fim, eles escolheram pela saída mais fácil: recuar. Ichijou foi quem colocou juízo na cabeça de todos e conseguiu fazê-los recuarem. O grupo foi se dispersando e, antes de Ichijou acompanha-los, o loiro lançou um olhar para o melhor amigo. Nenhuma palavra foi trocada entre eles, mas Kaname sabia que daquela vez seu amigo não poderia ficar ao seu lado. Kaname assentiu com a cabeça e Ichijou seguiu os outros, sumindo entre as árvores.

— Nossa, que merda você se meteu, hein — Ayato quebrou o silêncio, virando-se para Kaname. — É verdade o que dizem: os quietos são sempre os piores.

— Não era minha intenção... — Kaname começou a falar, mas Maya o interrompeu.

— Se poupe, Kaname. Sinceramente, já passamos da fase de julgamentos. O que você faz ou deixa de fazer é problema seu. Só precisamos ficar de olho naquele caçador e nos seus amigos para que não façam nada que irão se arrepender depois.

Kaname olhou nos olhos da vampira, sentindo um afeto por ela que achava ser impossível.

— Por que você está me ajudando tanto? — ele perguntou.

Maya deu de ombros.

— Eu meio que não quero ter que lutar em guerra nenhuma — respondeu. — E vocês, homens, costumam fazer tanta merda que sempre tem que ter uma mulher para limpar a bagunça.

— Obrigado — ele disse, pegando Maya de surpresa. Kaname ofereceu um lenço para que ela limpasse a mão ensanguentada e a vampira aceitou. — Ainda não agradeci o suficiente por tudo o que você já fez por mim até agora.

Maya limpou sua mão o melhor que pôde e, depois de um tempo, despediu-se do Puro-Sangue e seguiu seu caminho de volta junto com Ayato. Ela estava mais calada que o normal, ainda pensando nas palavras do vampiro. Os dois sabiam que algo estava nascendo entre eles, uma amizade. Ela não estava acostumada a gostar de um Kuran e Kaname também não estava acostumado a gostar de um Sakamaki que não fosse o Rei e a Rainha, os quais Kaname respeitava. Contudo, Maya estava feliz, pois seria uma pessoa a menos para ela odiar.

— Vê se não comenta nada disso com os outros — Maya disse, referindo-se aos outros meio-irmãos.

Ayato apenas sorriu em silêncio. No outro dia, todos os cinco estavam mais que ciente que o Kuran mais certinho do clã estava se alimentando de uma humana.

— x —

O céu já estava começando a clarear quando Kaori finalmente abriu os olhos depois de toda aquela confusão. Ela estava com uma dor de cabeça insuportável, sentia como se um tambor estivesse batendo em suas têmporas. Ela sentou-se na cama em que estava e as lembranças da noite anterior voltaram à sua mente, fazendo-a levar a mão ao pescoço, onde sentiu os dos buraquinhos das presas de Kaname. Kaori fechou os olhos com força, lembrando-se do momento em que Zero apareceu naquele escritório. Por quê ele estava ali? Como poderia saber aonde ela estaria? Por quê tinha que ter entrado justo naquele momento? Foi então que um barulho no quarto a fez abrir os olhos e perceber que havia mais alguém ali além dela.

Os olhos da caçadora encontraram os de Senri no momento em que ele voltava da sacada do quarto. De todas as pessoas que ela esperava ver ali nenhuma delas era o ruivo. Ele fechou a porta da sacada atrás de si, impedindo que o vento frio do amanhecer entrasse no quarto.

— Finalmente você acordou — ele disse, aproximando-se da cama.

— O que está fazendo aqui? — ela perguntou.

— Apenas cuidando de você — ele pegou uma bandeja com café da manhã em uma mesa e se aproximou da cama, deixando a comida com Kaori. — Você ainda está no dormitório masculino. No quarto de Kaname para ser mais preciso — Kaori olhou ao redor, tentando encontrar vestígios do vampiro. — Não é exatamente seguro deixar uma humana sozinha aqui.

— Obrigada — ela disse, olhando para a comida à sua frente.

— Você deveria comer — Senri empurrou gentilmente a bandeja na direção dela. — Perdeu muito sangue ontem à noite.

— O que aconteceu depois que eu... desmaiei? — ela sentiu um nó se formar em sua garganta.

— Em resumo, seu amigo quase foi morto pelos meus amigos — Kaori olhou para ele, assustada. — Mas está bem agora — ele a acalmou. — Todos estão com os nervos à flor da pele, parecendo uma bomba relógio prestes a explodir.

— Eu nunca quis... — ele a interrompeu.

— Você não precisa se explicar para mim — ele colocou o café nas mãos dela. — Sinceramente, eu já sabia que havia algo acontecendo entre você e Kaname — ele admitiu. — Não imaginava que era isso, mas ainda assim.

Kaori tomou um gole do café, sentindo o líquido quente descer queimando por sua garganta, mas estava tão entorpecida que nem sentiu a dor. Ela olhou para o vampiro por um momento, enquanto ele estava distraído passando geleia em uma torrada para ela, e sentiu que queria desabafar com ele mais que com qualquer outra pessoa. Talvez porque ele estava sendo gentil ou talvez porque, se todos na Academia dos Caçadores já soubessem, ela não tinha mais ninguém além daquele estranho a ajudando a comer.

— Estamos ligados através do sangue — ela disse. — Kaname e eu.

Assustado, Senri ergueu a cabeça e encarou a caçadora como se ela tivesse lhe dado um tapa no rosto.

— Quase morri um dia lutando contra um Renagado e, para mim sorte ou azar, Kaname me salvou e me deu seu sangue — ela fechou os olhos, sentindo lágrimas se acumularem em suas pálpebras. — Ele acabou nos ligando nesse dia e eu não entendia o que significava essa ligação, mas fui aprendendo — quando abriu os olhos, lágrimas escorreram por suas bochechas. — Tudo piorou no dia em que descobri que Kaname não tem controle em relação ao sangue humano, por isso não toma. Ele se descontrolou um dia, atacou várias pessoas na cidade e, em uma tentativa de controlar a situação, eu o fiz prometer que só tomaria o meu sangue. Desde então tem sido assim e foi o que vocês todos viram noite passada.

Os dois se encararam por um tempo, sem dizer nada. Senri mal acreditava no que havia acabado de escutar. A ligação de sangue entre um vampiro e um humano era um crime punido com morte de ambas as partes. Por que diabos Kaname faria algo tão imprudente quanto aquilo para salvar a vida de um humano ele não sabia, mas pela primeira vez sentiu algo além de ressentimento pelo primo por ele ter feito aquilo. Senri sempre pensou em Kaname como um herdeiro fraco que apenas fazia aquilo que lhe era imposto, mas, pela primeira vez, havia feito algo que fugia do que esperavam dele. Era uma loucura completa, mas, até onde Senri sabia, era algo que ele fez porque quis. Invejou Kaname mais uma vez naquele momento. Ele queria ter força para fazer algo tão ousado quanto.

— Isso é... — Senri começou a dizer, mas Kaori o interrompeu.

— Loucura, eu sei — ela limpou as lágrimas. — Idiotice. Suicídio. Tudo de ruim que você conseguir pensar.

— Sim, mas você não precisa preocupar — ele disse. — Não vou deixar que nada aconteça com você.

Os dois se encararam por um segundo até que o momento foi interrompido quando a porta do quarto se abriu bruscamente, fazendo os dois se sobressaltarem na cama. Kaname entrou no quarto, observando que Kaori estava acompanhada do primo. Como Senri não parecia apresentar nenhuma ameaça, Kaname relaxou. O Puro-Sangue não sabia se o ruivo estava com raiva dele ou não, mas pelo menos não estava sendo hostil.

— Você pode nos dar um momento? — ele pediu ao primo.

Antes de responder, Senri olhou rapidamente para Kaori que assentiu. Kaname registrou aquele gesto em sua mente, mas não comentou, pois já tinha coisas demais nas quais pensar. O ruivo então levantou-se e saiu do quarto, fechando a porta atrás de si. Agora estavam apenas os dois mais uma vez sozinhos em um local que tudo poderia acontecer. De novo. Constrangida, Kaori voltou a tomar seu café silenciosamente.

— Eu deveria me desculpar com você — Kaname quebrou o silêncio.

— Está tudo bem — ela deixou a xícara na bandeja e levantou-se para coloca-la novamente na mesa. Seu estômago estava embrulhado e ela não conseguiria comer. — Não é como se você tivesse me obrigado noite passada.

Kaori levantou-se e deu alguns passos para longe da cama, mas ainda estava fraca e Kaname a amparou antes que ela caísse e espalhasse comida por todo o quarto. Com a ajuda dele, ela conseguiu deixar o café da manhã onde queria em segurança. Ela ficou um minuto em pé ali, recuperando o equilíbrio e se afastou de Kaname.

— Preciso ir — ela disse, procurando sua mochila pelo quarto. — Preciso ir atrás de Zero.

— Ele não precisa de você agora — Kaname olhou para ela. — Você nem devia voltar para lá.

— E para onde eu iria, Kaname? Apesar de toda essa merda, A Academia dos Caçadores ainda é a minha casa e o Zero ainda é meu noivo e meu melhor amigo. Se eu não for atrás dele agora posso perder a pessoa mais importante da minha vida.

As palavras dela acertaram Kaname em um local muito sensível dentro de si. Ele nunca havia tido nenhuma relação tão próxima com alguém antes de conhecer Kaori e não sabia como era ter tão ligação com outra pessoa, então ele não entendia o que a caçadora sentia por Zero. Não entendi porque ela queria ir atrás de alguém que claramente a estava desprezando naquele momento.

Quando achou sua mochila, Kaori sentou-se novamente na cama de Kaname e começou a calçar suas botas de cano médio que faziam parte de seu uniforme. Kaname a observou por um momento até se decidir sentar-se ao lado dela. O vampiro sentia e percebia facilmente como o corpo da caçadora reagia à proximidade dele. Ele continuou a observando mais de perto agora enquanto ela terminava de se ajeitar. Até que seus olhos pararam no pescoço de Kaori e ele observou as marcas de seus dentes no pescoço dela.

— Você ainda está machucada — ele disse, tocando naquelas marcas com as pontas dos dedos. Ela estremeceu. — Deveria tomar meu sangue para curar logo.

— Não acho que isso seja uma boa ideia — ela disse, se afastando um pouco.

— Má ideia é você sair com essas marcas no pescoço — ele rebateu.

Kaori olhou para as próprias mãos em seu colo por um momento, pensando que queria que as coisas fossem mais fáceis de lidar, que ela tivesse conhecido Kaname em outra vida, onde não existissem vampiros e ele fosse um humano como qualquer outros. Mas isso nunca aconteceria, talvez não existisse outra vida. Talvez eles só tivessem o aqui e o agora.

— O que vai acontecer a partir de agora? — ela perguntou, ainda encarando as próprias mãos.

— Talvez nada, talvez tudo — Kaname respondeu. Delicadamente ele pegou a mão dela e segurou seus dedos entre os seus, fazendo-a olhá-lo nos olhos. — Independente do que aconteça, espero que fique comigo.

Era um tiro no escuro as palavras de Kaname, mas ele esperava que a tocassem de alguma forma. Ele tinha medo que ao conversar com o noivo Kaori percebesse que ela e Kaname eram um erro e se afastasse. Ele não acreditava em nenhum deus, mas se existisse um ele esperava que jogasse ao seu favor.

— Podemos morrer — ela disse, encarando as mãos deles juntas.

— A morte nunca me assustou — ele sentou-se mais próximo dela, obrigando-a a levantar um pouco a cabeça para continuar encarando-o.

Kaname tinha o rosto mais bonito que ela já virá e Kaori pensava como era possível que existe alguém com tal beleza. O rosto dele era milimetricamente perfeito, como se tivesse sido desenhado à mão, os olhos dele eram tão, mas tão intensos e ao mesmo tempo tão silenciosos. Desde que o conhecera, ela difícil decifrar qualquer emoção naqueles olhos. Pareciam poços profundos que poderiam esconder as coisas mais horríveis, mas também as mais belas.

Ela se perguntou como era ser um vampiro, sentir como um, amar, odiar como um. Eles sentiam tudo mais intensamente que os humanos? Eram passíveis de se apaixonar, ter o coração partido como qualquer outra pessoa normal? Ensinavam muitas coisas sobre os vampiros aos caçadores em sua academia, mas não ensinavam que eles tinham corações, que podiam ter alma, ou a ideia dela. Eram apenas monstros, animais sedentos por sangue, protegidos apenas por uma frágil lei criada há muitos anos atrás. Mas quando Kaori olhava para Kaname, tão próximo dela quanto naquele momento, ela não via nada daquilo. Ela via alguém, podia não escutar o coração dele batendo, mas sabia que estava ali em algum lugar.

Ela colocou uma mão no rosto dele, sentindo a pele fria do vampiro contra sua palma. Ele fechou os olhos, entregando-se ao toque dele, o que aqueceu o peito de Kaori tão profundamente que ela poderia esquecer Zero, leis, os outros vampiros e qualquer tipo de problemas. Ela ficaria ali com Kaname para sempre se ele pedisse.

— Por favor, não diga esse tipo de coisa — ela disse baixinho e ele abriu os olhos para olhá-la. — Você dá tão pouco valor assim à sua vida?

— Quando se é imortal a vida para de fazer sentido em algum momento — o vampiro respondeu.

— Você nem viveu o suficiente ainda para falar essas coisas — ela tirou a mão do rosto dele.

— Mas já senti por uma vida, Kaori — ele abaixou o olhar, encarando o peito dela que subia e desci com a sua respiração. — Já fiz coisas erradas e carregados mais pecados do que posso suportar. Eu não odeio minha vida, tenho pais amorosos e tenho... — ele suspirou. — Tinha amigos leais, mas odeio minha existência — ele voltou a olhá-la nos olhos. — E, se há algum significado nela, eu o encontrei quando conheci você.

Aquelas poucas palavras marcaram Kaori como nenhuma outra havia marcado em seus dezoito anos de vida. Se a Kaori dez anos pudesse vê-la agora, estaria saltitante de alegria por ter encontrado seu amor de contos de fadas, mas aquilo tudo era um pesadelo. Era uma utopia, impossível de acontecer. Eles dois eram tão incompatíveis quanto água e óleo. Estavam apenas adiando o inevitável. Ela não podia deseja-lo, ele não podia tê-la. Estavam apenas se iludindo achando que havia alguma esperança naquilo.

— Eu... — ela desviou o olhar do dele, sentindo seu rosto esquentar e um nó se formar em sua garganta. — Desculpe, eu preciso ir.

Kaori levantou da cama, pegou sua mochila e saiu do quarto com lágrimas rolando novamente por sua bochecha. Ela ignorou os amigos de Kaname que estavam dispersos pelo dormitório, ignorou Senri que parecia pronto para intervir caso algo acontecesse, e saiu correndo dela, sem se importar em fechar a porta atrás de si. A manhã estava gelada, mas Kaori mal sentiu o vento frio. Ela correu tão rápido para fora da academia que chamou a atenção de outros vampiros que estavam no pátio, mas ela ignorou todos, saindo dali como uma fugitiva.  

Na floresta, ela teve que se conter o suficiente para conseguir achar o caminho até sua própria academia. Uma vez lá, ela quase desmaiou no meio do pátio, ainda estava fraca e com o estômago vazio, mas respirou fundo e seguiu seu caminho. Todos os caçadores estavam ocupados com seus próprios afazeres, alheios à ela. ela Procurou Zero em todos os locais possíveis, mas não o encontrou. Até pensar no quarto do garoto. Largou sua mochila em seu dormitório e correu até o noivo como se sua vida dependesse disso. Em frente à porta dele, quase perdeu a coragem de encará-lo, mas usou as últimas forças que tinha para bater ali.

Quando Zero finalmente atendeu a porta, ela tinha noção da visão que ele tinha dela: estava pálida, os cabelos bagunçados, sua pele estava fria e arroxeada em alguns lugares por causa do frio, ofegante e com os olhos inchados. Ela estava uma bagunça, o coração doendo em seu peito. Mas ele também não estava com uma aparência melhor: estava com alguns hematomas no rosto que não estavam tão ruins provavelmente por causa do sangue de vampiro correndo em suas veias naquele momento. Além disso, ele ainda estava com o machucado no pescoço apesar do curativo ter sido trocado e estar limpo.

O olhar dele de ódio cravou uma faca em seu coração. Se ele pedisse, ela se ajoelharia, imploraria, faria qualquer coisa, só não podia perde-lo. Não aguentaria perder mais ninguém. Por favor, me perdoe, ela queria implorar, mas sua língua ficou travada em sua boca.

— Vai embora — foi a única coisa que ele disse, fechando a porta na cara dela com um baque forte.

A expressão de Kaori passou de tristeza para surpresa e então para dor. Ela já o havia perdido no momento em que ele entrou naquele escritório e à viu com outro. E não um outro qualquer: um vampiro. Ela havia aberto algo dentro de Zero que nunca poderia ser fechado. Meu deus, como ela se odiava naquele momento.

— Zero... — ela soluçou, se apoiando na porta dele, implorando mentalmente para que ele abrisse. — Por favor...

O caçador não disse nada, estava tudo silencioso do outro lado, como se ele tivesse saído pela janela, mas Kaori precisava acreditar que ele ainda estava ali, que ele ainda a amava o suficiente para não ir embora.

De fato, ele ainda estava ali. A caçadora podia não vê-lo, mas Zero estava com a testa encostada na porta. De olhos fechados, ele sentia seu coração se quebrar mais um pouco toda vez que ouvia a dor na voz de Kaori, o desespero nunca combinou com ela e Zero sempre fez o possível para que ela não sentisse aquilo desde que seus pais morreram. Mas agora ele não podia ajuda-la sem se lembrar do que ela estava fazendo horas atrás.

— Zero... — ela falou de novo. — Fala comigo. Preciso que você me escute. Por favor. Me deixa entrar. Por favor — a voz dela falhou o suficiente para que o caçador cedesse. Ele ainda a amava, afinal.

Zero abriu lentamente a porta do quarto. Derrotado, ele a encarou e ela o encarou de volta e dezoito anos de relacionamento caíram sobre eles como um balde de água fria. Mais que noivos, eles eram amigos, melhores amigos, eram família. Eram tudo o que tinham. Apoiaram-se um no outro por muito tempo e agora pareciam dois desconhecidos. Ele queria enxugar as lágrimas do rosto dela, queria abraça-la e dizer que tudo ficaria bem, mas Zero sabia que nada ficaria bem. Não mais. Tudo o que eles haviam construído juntos havia acabado em questão de segundos. Aquilo era uma despedida, ele sabia. Mas era tão difícil deixa-la ir...

— Por que você fez aquilo? — ele perguntou, sentindo os próprios olhos marejarem. — Que diabos foi aquilo, Kaori?! — esbravejou.

— Me desculpa — ela soluçou. — Me deixa explicar.

— Porra! — ele bateu o punho na soleira da porta.

Dando as costas para ela, Zero deixou que Kaori entrasse. Ela fechou a porta atrás de si.

— Ele me salvou, Zero — ela começou. — Lembra daquele dia na floresta? Quase morri, mas ele me salvou.

— O que ele fez? — Zero virou-se para ela, sem emoção.

— Ele... — Kaori hesitou, mas sabia que não podia mais mentir. — Me deu o sangue dele.

— Ele se ligou à você?! — incrédulo, Zero quase gritou com ela. Kaori se encolheu.

 — Sim, mas...

— Você tem noção do que uma ligação entre vampiro e humano significa?! — ele se aproximou dela, fazendo-a recuar até a parede. As lágrimas estavam incontroláveis agora. — É crime, Kaori! E, mais que isso, como você aceita ficar ligada a uma daquela... Coisas?!

— Infelizmente aconteceu, Zero — ela rebateu. — O que você queria que eu fizesse? Eu estava morrendo!

— Você mentiu para mim!

— Você aceitaria se eu tivesse contado a verdade? — ela estava quase gritando.

Zero ficou calado por um momento. Ela estava certa, não teria aceitado, talvez tivesse tentado matar Kaname.

 — Por que você não quebra a ligação? — ele perguntou, mais baixo. — Por que ele estava tomando seu sangue?

Kaori desviou o olhar do dele, incapaz de encará-lo por mais um segundo.

— Ele... — ela hesitou. — Ele tem um problema com controle. Se tomar sangue humano, não consegue parar. Eu... Estou o ajudando.

A ficha de Zero demorou apenas um segundo para cair.

— Você está dando seu sangue para ele de livre e espontânea vontade?

— Zero... — ela soluçou. — Se você tentasse entender...

— Entender o que, porra?! — ele estava gritando agora e Kaori se encolheu. — Que a mulher que eu amo está servindo de bolsa de sangue para um desses desgraçados que matou nossos pais? É isso que você quer que eu entenda?!

— Eu precisava fazer algo! Você prefere que ele continue matando por aí e inicie uma guerra?!

— Que se foda ele, Kaori! Isso não é sobre aquele vampiro. É sobre você! Sobre a gente! Em algum momento você pensou na gente?

— Eu...

Ele percebeu a hesitação na voz dela e virou-se de costas, de coração partido. É claro que ela não pensou. Se algum dia ele havia significado algo para ela aquilo estava no passado.

— Quando eu acordei na enfermaria e Yori me disse que você havia ido à Academia dos Vampiros buscar algo, não pensei duas vezes e fui atrás de você — ele olhou para ela. — Porque precisava te ver. Não me perdoaria se eu tivesse morrido e você tivesse ficado sozinha. Quando cheguei lá, vi você de relance pela janela naquela sala e entrei lá como se você estivesse correndo perigo. Você tem noção do que eu senti quando vi você com aquele vampiro?

Era uma pergunta retórica e Zero não esperou qualquer resposta antes de virar e continuar arrumando a mala que estava em sua cama. Pela primeira vez, Kaori percebeu o que ele estava fazendo antes que ela chegasse. Seu coração errou uma batida.

— O que você está fazendo? — perguntou, se aproximando. — Que malas são essas?

— Pedi transferência de academia — ele respondeu, sem olhar para ela.

— O que? — ela olhou para o rosto dele. — Não, Zero, por favor. Você não pode fazer isso — ela tentou pegar no braço dele, mas Zero puxou o braço bruscamente, olhando para Kaori novamente.

— Você não tem direito de me dizer o que eu devo ou não fazer! — bateu o punho na mala, sobressaltando Kaori. — Aliás, Yori me contou também o que você fez para que eu não morresse. Me deu sangue de vampiro! QUAL É A PORRA DO SEU PROBLEMA, KAORI?!

Magoada, Kaori desviou o olhar do dele. Podia não ter tomado a melhor decisão, mas estava apenas tentando salvar sua vida! 

— Você está tentando me punir? — ela perguntou, olhando-o novamente. — Zero, o que você quiser que eu faça, eu faço, você só não pode ir!

— Não estou pedindo por nada — ele olhou para ela, derrotado. — Você pode fazer o que quiser, Kaori, eu simplesmente não me importo mais.

Eles se encararam por um segundo e tantas coisas passaram entre os dois. Tantas promessas quebradas, tanto sofrimento, tantas coisas que superaram juntos. Kaori sentiu seu coração murchar. Nem em seus piores pesadelos ela pensava que algo assim poderia acontecer. Mas era tudo sua culpa, não era? Ela havia permitido que as coisas chegassem àquele ponto. Não podia culpa-lo por odiá-la.

— Você está magoado — ela se aproximou dele. — E está reagindo. Você não é assim, Zero.

— É claro que eu sou — ele se afastou. — Você só nunca me viu assim. Nunca precisou. Você não faz a menor ideia de como eu sou quando não estou amando você.

Zero nem precisava ter visto a expressão no rosto de Kaori para saber que havia a machucado com suas palavras. Era o que ele queria realmente. Machucá-la do mesmo jeito que ela havia o machucado. Que ela se sentisse tão mal quanto ele, não importava. Não mais. Ele fechou a última mala e colocou as duas de pé ao seu lado. Kaori assistiu à tudo aquilo impotente.

— Não posso perder você também, Zero... — ela disse baixinho.

— Você já me perdeu — ele disse, dando as costas para ela e seguindo até a porta. — Acabou, Kaori.

Zero abriu a porta e deu de cara com Yori do outro lado. Sem se importar com a presença dela, o caçador passou pela menina e saiu para o corredor, afastando-se com suas malas. As duas meninas se encararam nas duas extremidades do quarto e um entendimento passou por elas. Yori havia escutado tudo, não julgaria a amiga apesar de não entender realmente tudo pelo o que ela estava passando. Estaria ali para ela, caso precisasse. E agora nem precisou esperar que Kaori falasse algo, ela cruzou a distância e amparou a amiga em um abraço apertado enquanto ela desabava.

— x —

Do outro lado da floresta, na Academia dos Vampiros, Laito estava na biblioteca, procurando qualquer livro didático para estudar para o teste de Reiji. Apesar das notícias chocantes que Ayato trouxera até eles na noite anterior, o vampiro ainda passaria seu teste em algum momento e Laito preferia estar preparado a ter que ouvir um monólogo do meio-irmão do quanto ele se daria mal na escola se continuasse assim.

O ruivo ainda pensava sobre os últimos acontecimentos. Kaname tomando o sangue de uma humana? Impensável. Laito não o conhecia muito bem, nem mesmo haviam interagido na academia ou em qualquer reunião entre os clãs. Talvez as personalidades simplesmente não combinavam e Laito também não estava tão a fim de fazer novas amizades. Contudo, cada um sabia sobre o outro e já havia escutado o suficiente um sobre o outro para Laito saber que Kaname era o vampiro mais certinho e tradicional que poderia existir naquele século. E agora essa bomba. O Kuran completamente fora da curva, podendo ser condenado à morte ou, na pior das hipóteses, começar uma guerra. Poucas coisas faziam Laito sentir frio na barriga e uma delas era só imaginar uma guerra estourando entre humanos e vampiros. O país simplesmente implodiria, talvez ninguém saísse 100% bem para reconstruí-lo.

Enquanto divagava, o vampiro pegou alguns livros que considerava bom o suficiente e foi sentar-se em uma das mesas mais afastadas para não ser perturbado por nenhum calouro emocionado ou um veterano ansioso. Porém, ao se dirigir às mesas, percebeu que não só estava completamente sozinho ali como se surpreendeu ao ver a única presença na sala que ele não esperava: seu pai.

O Rei estava sentado exatamente na mesa em que Laito pensava em sentar-se. Os cabelos ruivos estavam muito bem arrumados e ele usava roupas caras, como sempre, porém eram roupas de viagem. Provavelmente ele já estava pronto para fazer a viagem que disse na noite anterior com Elizabeth, então o que estava fazendo ali na academia era um mistério.

— Laito — Karlheinz cumprimentou.

— O que você está fazendo aqui? — o menino perguntou, desconfiado.

— Gostaria de conversar — ele indiciou uma cadeira à mesa para sentar.

Mesmo contrariado, Laito deixou seus livros caírem na mesa com um baque alto e sentou-se aonde o pai havia pedido. Karlheinz ficou encarando o filho por um tempo e Laito se perguntou o que ele via quando o olhava. A semelhança entre os dois era nítida, porém eram tão diferentes. Haviam tantas coisas entre eles. Coisas não ditas, tanto sofrimento e dor e ausência. Laito era o filho que mais afastava Karlheinz de todas as maneiras que podia, porém, é claro, ele sentia falta de um pai. Via os outros alunos da academia, todos tendo uma relação normal com seus pais e ele sentia tanta, mas tanta raiva de não ter o mesmo que sentia medo de um dia isso consumi-lo.

Parando para pensar bem, Laito era praticamente órfão. E o pior: um órfão que tinha os dois pais vivos. Mas do que adiantava? Ele se considerava sem pai e mãe. Odiava os dois na mesma intensidade – talvez Cordelia um pouco mais. Era tanto ressentimento que o coração de Laito endureceu o suficiente para não querer que qualquer um dos dois tivesse um relacionamento normal com ele, ainda que desejasse muito no fundo de seu ser. Cordelia era o lado abusivo, Karlheinz era o lado ausente. Seria ele capaz de superar isso um dia? Ele achava que não.

— Espero que seja rápido — Laito retomou a conversa. — Tenho muitas coisas para estudar.

— Já faz um tempo que não ficamos sozinhos um com o outro — Karlheinz disse, ignorando o filho.  — Você não sente falta?

— Foi você quem escolheu assim — Laitou encarou os olhos do pai, sentindo o coração bater mais forte no peito. — Você nem se importa o suficiente.

— Claro que me importo, Laito — o Rei ajeitou a postura. — Por isso estou aqui. Quero pedir-lhe para manter distância de Maya. Ela não é nenhum brinquedo que você pode usar e descartar. Está entendendo? Fique longe dela ou as consequências podem ser bem ruins para você.

Sem conseguir acreditar nos próprios ouvidos, Laito desviou os olhos dos do pai e encarou as próprias mãos em cima da mesa. A biblioteca caiu em um silêncio profundo. Laito sentiu um buraco abrir-se em seu peito e seu coração cair lá dentro. O abismo que existia entre ele e o pai nunca poderia ser encurtado. Já passaram há muito tempo disso. Não havia mais esperanças. Talvez Karlheinz nem o visse mais como filho, apenas como um peso que ele precisava aturar caso quisesse que alguém o substituísse no Trono um dia.

Ele era apenas um peão no jogo do pai e da mãe, Laito pensava. Apenas uma peça de xadrez maleável que poderia ser descartada a qualquer momento. Havia alguém ali por ele? Seus meio-irmãos? Amigos? Ele não tinha ninguém. Era uma verdade difícil e dolorida de aceitar. No fundo, ele ainda se sentia como o garotinho que foi um dia: humilhando-se por atenção, não recebendo nada além de desprezo. As palavras do pai doíam fisicamente nele, como se tivesse lhe dado um tapa. Quem sabe um tapa teria doído menos. Por que?! Por que ninguém consegue me amar?!, ele pensava. Fechando os punhos sobre a mesa, ele percebeu que estava tremendo. Que estava com os olhos enchendo de lágrimas. Anos e mais anos de dor e tristeza reprimidas; anos em que ele sentiu-se tão sozinho no mundo que quase enlouqueceu. A solidão era uma tortura.

— Você ouviu? — Karlheinz insistiu. — Laito?!

— CHEGA! — Laito levantou-se bruscamente, jogando todos seus livros no chão com o braço. O pai se sobressaltou diante da agressividade. — VAI EMBORA! VAI EMBORA! VAI EMBORA!

Ele repetia como uma criancinha, agarrando a cabeça com as mãos como se quisesse arrancá-la do pescoço. Laito encolheu-se próximo de uma estante de livros e Karlheinz pensou se aproximar, mas achou melhor manter distância.

— Laito eu entendo que está com raiva...

— EU NÃO ESTOU COM RAIVA! — gritou, interrompendo o pai. — ESTOU COM DOR, PAI! E VOCÊ ME COLOCOU AQUI! — ele olhou nos olhos do pai e as lágrimas corriam livremente por suas bochechas pálidas. Seus olhos verdes brilhavam. — Você! A pessoa que deveria me amar mais que qualquer coisa.

Sua voz falhou e ele soluçou. Um soluçou tão alto que foi como se seu peito estivesse rasgando. Karlheinz abriu a boca como se fosse falar algo, mas fechou logo depois.

— Eu não vou tocar na sua filhinha imbecil — continuou, sarcástico. — Pode ficar tranquilo, a sua preferida vai ficar intacta.

— Laito...

— Só vai embora! — apontou para a porta de saída. Karlheinz não se moveu. — VAI! SAI DAQUI!

Havia muitas coisas que eles poderiam dizer um ao outro naquele momento, que Karlheinz, como pai, poderia ter dito, mas o Rei sabia que só pioraria as coisas. Qualquer conversa que eles pudessem ter já havia sido arruinada. Então, o rei fez o que o filho mandou e, lhe dando um último olhar, saiu da biblioteca sem falar qualquer outra coisa.

Sozinho mais uma vez, Laito caiu de joelhos no chão, chorando tanto que sentiria humilhado se houvesse outra pessoa ali com ele. Ele bateu o punho em uma estante de livro que rapidamente se incendiou, como se tivesse entrado em combustão instantânea. Laito nunca teve medo do fogo, era tão imune à ele quanto qualquer portador desse poder poderia ser, então, ainda que sentisse o cheiro de livros queimados e o fogo se espalhando, sentou no chão e abraçou as pernas como uma criança com medo do bicho-papão até alguém encontra-lo e espantar seus demônios para longe.     


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