Martírio. escrita por Sevenhj777


Capítulo 6
Morgarath.




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Ulrich ergueu sua armaria contra as crianças, que se abraçaram e buscaram apoio com as criadouras, serviçais que colocaram o próprio corpo na frente dos menores que almejam defender, levando balas por eles se necessário. As crianças mais inocentes não se moveram há tempo, e logo foram silenciadas mediante os disparos abruptos que escaparam do cano da metralhadora de grosso calibre.

 

Um garotinho loiro e com grandes olhos mergulhados em preto foi o primeiro. Ele largou o pescoço do cadáver para fitar os soldados com inocência, novo demais para reagir ou associar a arma a sua morte. Pobre coitado. Uma bala atravessou-lhe um dos olhos diagonalmente, saindo pela parte traseira do crânio num show de horrores que transpareceu a cabeça achatando e a cortina de sangue pintada na parede atrás de si.

 

Como se estivesse em câmera lenta, Ulrich pôde associar cada segundo daquela cena com os próprios olhos mergulhados em confusão e adrenalina. Se sentiu extremamente leve com o genocídio que está fazendo, chegando a abrir um sútil sorriso de canto, que se esvaiu quando a imagem macabra ressurgiu em sua vista, num flashe energético.

 

Novamente aquele ser macabro, vampírico, anormal. É uma criatura que beira os dois metros e vinte, com uma coluna retorcida e com os ossos da costela amostra, furando a própria pele e exibindo as inúmeras ramificações negras que cobrem todo corpo pálido da criatura, como veias e artérias. Ele tem fios de cabelo negros, tão extensos que chegam a encostar nos joelhos igualmente tortos e magros da criatura. Ela tem dois grandes olhos com uma esclera tão escura que fitá-lo é como encarar o abismo; além de iris brancas e reluzentes como uma estrela. 

 

Completamente nua e rodeada de vários seguidores, a criatura se destaca não só pelo tamanho quanto pelo sorriso macabro, estampando os dentes serrilhados que estão amostra inclusive nos buracos que há em suas bochechas. Nas paredes, os símbolos em sangue exibem a cruz religiosa invertida, sinalizando o anticristo. Talvez por isso esse ser seja tão valorizado entre homens e mulheres, por ser visto como uma figura religiosa. 

 

A multidão se aglomera ao redor de uma mulher, visivelmente em pânico. Está grávida, com um enorme volume em sua barriga que é aberta de maneira tribal e sem os cuidados necessários. Um bebê é tirado de seu ventre, mas ele não reage.

 

Mesmo viva, a mulher continuou agonizando em lágrimas, num misto de sensações cruéis demais para serem descritas. A criatura se aproximou vagarosamente da mulher, com os dentes ainda serrilhados expostos, mas agora, num tom de raiva.

 

Aos prantos, ela não pôde fazer nada quando agarrada pelos ombros. Aquele ser abriu a bocarra de maneira anormal, deixando os próprios ossos estalarem e se retorcerem para se adaptar a situação. É como a elasticidade de uma cobra para engolir uma criatura muito maior que ela, dessa vez, para devorar a humana numa só mordida.

 

Ulrich deixou aquele lapso de memória se dissipar como poeira ao vento, ainda em transe. O dedo não saiu do gatilho em nenhum momento, deixando uma fila de cadáveres infantis acumulados contra a parede. Miolos, sangue e fluidos humanos preenchem o chão de maneira nojenta e agoniante. 

 

De repente, a força do soldado de uma estrela se esvaiu com um empurrão partido de Alissa Portnova, que se projetou contra Ulrich como última forma de pará-lo. Ele saiu do transe imediatamente, deixando finalmente a metralhadora descarregar e os últimos disparos acertarem a luminária do grande salão, deixando tudo escuro. A loira subiu em cima do homem, pressionando o corpo dele contra o chão e chutando a metralhadora para longe. 

 

— Ulrich, Ulrich! — Ela exclamou, chacoalhando o homem. Ulrich está completamente em pânico, ofegante e suando frio. Isso só mostra a intensidade da visão que teve, uma vez que sempre mostrou nojo e raiva pelos vampiros, mas até então nunca medo. Ele foi se equilibrando aos poucos, retomando uma respiração estável.

 

Uma das maiores associações dos vampiros a algo, com certeza, é aos morcegos. O motivo é óbvio: as presas e a ânsia por sangue no cardápio são as principais razões, mas não as únicas. Vampiros possuem sentidos apurados, mas contam com uma característica a mais, a ecolocalização. Isso significa que têm diferentes meios de se localizarem, e no escuro, a vantagem é completamente deles. 

 

Abrindo vagarosamente os olhos, uma mulher finalmente despertou entre os choros da maioria das crianças, que felizmente sobreviveram. Estiradas ao chão, duas das adultas estavam ali jogadas, com perfurações de balas por todo o corpo. Como vampiras já desenvolvidas, precisaram levar uma quantidade absurda de disparos para morrerem naquela cena, e isso aconteceu quando protegeram os menores com os próprios corpos.

 

 A sobrevivente se ergueu vagarosamente, estampando um sorriso aconchegante às crianças junto ao indicador sinalizando silêncio. Sabia que tinha que passar confiança para mantê-las longe do pânico, mesmo que isso signifique ignorar as inúmeras marcas de bala no abdômen e seios. 

 

Os fios de cabelo lisos, escuros e longos da mulher agora estão melados com o sangue de suas companheiras, assim como o seu próprio. É uma cuidadora bem alta, magra e com olhos pretos, que parecem se misturar ao tom da esclera que escureceu quando a adrenalina invadiu o seu corpo. Ela tem um rosto fino, e apesar da idade madura, parece ter parado de envelhecer aos vinte e cinco, sem exibir uma única ruga de expressão.

 

Com todo cuidado, a mulher segurou a mão de duas crianças e sinalizou para o restante acompanhá-la. Respirou fundo, checou o cenário e teve certeza de que está livre, acelerando passos silenciosos em direção a porta.

 

Alissa Portnova é vicê-capitã, e tão preparada quanto Aaron para situações diversas. O problema está em Ulrich, que só lhe deu trabalho até aqui. A loira se arrastou até a própria arma, jogada no chão enquanto ela se ocupava em silenciar o companheiro de equipe. Reerguendo o seu rifle, ela ligou a lanterna e deu de cara com algumas das últimas crianças que passam pela porta, e teve chance de executá-las ali mesmo.

 

Alguns disparos foram feitos, mas todos acertaram as paredes. Ninguém foi mais ferido do que já estava antes, e todos vampiros escaparam do cômodo. Abaixando a própria máscara, Alissa inclinou o pescoço e vomitou tudo que tinha pra vomitar. 

 

O cheiro de carniça está invadindo suas narinas, e a visão de tantas crianças abertas pelo chão não poderia resultar em outra coisa. Alissa provavelmente não acertou os disparos de propósito por sentir que não tem estômago para tanto.

 

— Alissa? O que aconteceu?! — A voz de Aaron escapou do comunicador que a loira tem, posicionado em seu ombro direito. Ela precisou de uma pausa de longos segundos para responder.

 

— Ulrich perdeu o controle e eles fugiram. — Ela afirmou, pressionando o botão do comunicador. Foi direto ao ponto, tentando manter a calmaria em seu tom de voz. 

 

Do lado de fora, a chuva se intensifica de maneira extrema, e Aaron engole seco. Sabia que era um erro incluir Ulrich numa operação do tipo, mas sequer teve chance de saber como seria com antecedência. Seu estômago se revirou só em cogitar no estrago que seu agora odiado aluno causou.

 

— Dmitri, Kafka. Eu preciso de vocês. — Teoricamente, Adamik só precisa de Nail, mas não é como se pudesse confiar num vampiro iniciante sozinho. As coisas vão começar a esquentar com a fuga dos alvos, por isso os sentidos de Nail são essenciais para localizá-los, mesmo ciente de que há outra vampira lá dentro. — Se juntem a Alissa, levem armas e os mantimentos necessários. Agora.

 

Aaron ordenou visivelmente nervoso. Nail assentiu com a cabeça, apanhando firmemente a maleta preta com os mantimentos. Dmitri, por sua vez, checou as condições de seu rifle e ambos seguiram em frente, buscando dar o suporte necessário para encontrar os alvos – de preferência, sem terem que fazer uma chacina desta vez.

 

Joseph Makarov, por sua vez, canaliza seu esforço num dos comunicadores que possuí. Ele está um pouco distante, protegido da chuva e tentando de todas as formas entrar em contato com uma das divisões, fracassadamente. 

 

— Divisão C1, é possível que o inimigo esteja indo para sua direção. Na escuta?! — Aumentou o tom, bufando. Nenhuma resposta. 

 

Largados no meio da chuva, uma fila de cadáveres se acumula numa das vielas que rodeia o quarteirão numa das únicas rotas de fuga dos alvos. Joseph não recebeu um único aviso há tempo, já que aqueles homens morreram rápido demais para qualquer coisa.

 

No interior do orfanato, os passos minuciosos de Bertholdt se afastam brevemente de Alissa e Ulrich por um bom motivo. Com a escopeta devidamente posicionada, foi iluminando o longo corredor enquanto avança, até achar Heike, estirada no chão. Ela ainda se move desnorteadamente, mas tem uma fratura grave no crânio e sangue escorre pela cabeça. Não é preciso ser um gênio para saber o que acontece.

 

Bertholdt se virou em alta velocidade, e com um recuo lateral, esquivou por muito pouco da morte súbita. Um homem avançou contra ele, exibindo os olhos tomados pelo preto e destacados pela iris âmbar. Ele carrega consigo um pedaço de uma barra de aço que avançou em direção a cabeça do soldado de uma estrela, que escapou por muito pouco.

 

Bertholdt apertou o gatilho, e o disparo concentrado atingiu o abdômen da criatura. Não foi o suficiente.

 

Aquele homem continuou avançando, e de maneira brutal, mesmo ferido, conseguiu fincar a barra de ferro contra o estômago do soldado. Um grunhido de dor escapou, e Bertholdt foi sendo pressionado pela força superior do vampiro até a parede.

 

Pôde vislumbrar ali o rosto tomado por raiva e tristeza do vampiro, que ao mesmo tempo que esboça toda sua periculosidade, também deixa lágrimas escaparem dos globos. É um funcionário do orfanato, que ficou na espreita até o momento certo. Viu as crianças sendo mortas por Ulrich, e inegavelmente lamenta por elas. Seus últimos suspiros foram depositados naquela tentativa de ganhar tempo.

 

Mesmo agonizando e com o chão extremamente enxarcado pelo próprio sangue, Bertholdt usou suas últimas forças para ranger os dentes e erguer sua escopeta uma última vez. Ele colocou o cano de sua arma abaixo do queixo do vampiro, e como última atitude, disparou. A cabeça da criatura foi dilacerada, e os pedaços pintaram o chão e as paredes com o vermelho de seu sangue.

 

Bertholdt caiu ajoelhado no chão. Muito sangue vaza de sua ferida e da boca, visivelmente não tem muito tempo de vida. Seus olhos cansados deslizam até Heike, que já melhor, exibe as presas profundas e os olhos negros aos prantos.

 

Heike tem uma sede absurda por sangue, e lágrimas escapam dos seus olhos só de ter que se controlar numa situação dessas.

 

Bertholdt novamente ergueu sua arma, ameaçando:

 

— Para trás, sua... aberração. — Ele disse, pausadamente. O dedo já está no gatilho, e basta pressionar para Heike ser dilacerada como o vampiro de agora há pouco.

 

— Eu não vou fazer nada! Desculpa! — Insegura, a mulher respondeu. Heike tentou se afastar brevemente, mas mais uma vez fraquejou. Seus instintos falam mais alto que seu corpo.

 

Alissa surgiu ao fundo do corredor, com armas apostas após ouvir os sons dos disparos. Os olhos se arregalaram ao ver Bertholdt, ou melhor, o que está atrás dele. 

 

Antes que o homem pudesse pressionar o gatilho, as mãos cobertas por uma luva preta encostaram em seus ombros. O soldado até tentou olhar do que se trata, mas antes que pudesse, teve o próprio pescoço revirado com tanta brutalidade que a cabeça ficou virada em direção a retaguarda, com a mesma expressão enfurecida que exibia antes de morrer. 

 

Alissa ficou em estado de choque, deu três passos para trás e ergueu sua guarda. Heike, em pânico, tentou se escorar contra a parede e tampou a própria boca; ela tinha que lidar com uma crise em seus instintos, misturando o medo da morte iminente com a sede de sangue como vampira.

 

O assassino de Bertholdt se revelou um homem alto, coberto dos pés à cabeça com um sobretudo negro, pesado. Encapuzado, nem uma única parte de seu corpo está exposta, claro, além dos exorbitantes olhos azuis por trás da máscara teatral que usa, inexpressiva, vazia. Ele se agachou brevemente, chamando por Heike com uma das mãos. 

 

— Você é adestrada como uma cadela, mas ainda é uma de nós. Ninguém vai saber se você se alimentar agora. — O tom sarcástico escapou de seus lábios, com uma voz abafada e um sotaque fraco. Ele ofereceu um pedaço de Bertholdt, rasgando um de seus braços com tanta facilidade quanto desmonta um brinquedo. Naturalmente, mais sangue escorreu pelo chão, o que só piora a situação de Heike e tira um riso distorcido do rapaz. 

 

O mascarado virou lentamente a cabeça para um dos lados, notando Alissa no fundo do corredor. As risadas pararam, e ele foi se levantando lentamente até estar completamente ereto. Mesmo desarmado, aquele homem oferece mais ameaça do que qualquer outro vampiro que esteja ao alcance da Portnova, e justamente por reconhecer isso, ela hesita. 

 

— É ele, — Alissa disse, pressionando com dificuldade o comunicador em seu ombro. Ela engoliu seco, dando uma pausa dramática sem piscar uma única vez. Não pode deixar nenhuma brecha para o mascarado avançar, e aquilo por si só já é de extrema dificuldade. Está diante a uma máquina de matar. — Morgarath. Ele está aqui. 

 

Aquela última frase foi capaz de congelar Aaron, e espantar Joseph – que começou a tentar contato com todas as divisões da operação.

 

Vampiros são classificados em hierarquia, com base em proximidade com o Vampiro Progenitor – que nunca foram capazes de encontrar. Quanto mais próximos do primeiro grau, mais poderosos eles são. Vampiros são registrados com base na densidade da toxina que são capazes de gerar pelas glândulas salivares para infectar o próximo da cadeia, e também com base na densidade da toxina que os infectou e transformou-os em monstros.

 

Durante grande parte do século XIX, os vampiros foram caçados e dados como extintos. No período de guerra, sabe-se lá como, a Alemanha conseguiu acesso a um ou mais vampiros, dos grandes. Assim puderem consolidar o Projeto Heulen, tão poderoso que sua primeira aparição devastou as tropas francesas em uma única semana.

 

Se fossemos classificar os Heulen, seria como de quinto ou sexto grau. Por ter devorado outros dos seus (e consequentemente o fluído/toxina deles), a última amostra dos Heulen, encontrada pelo próprio Aaron Adamik, é classificada como de segundo grau.

 

Não existe nenhuma ameaça tão grandiosa quanto os vampiros que estão no mesmo nível ou acima dos finados Heulen, pelo simples motivo de que Hitler reacendeu a infestação como uma epidemia. Em outras palavras, os que estão acima ou igual aos de sexto e quinto graus foram gerados ANTES da Segunda Guerra Mundial, ou infectados por vampiros que antecederam a guerra e sobreviveram ao genocídio em massa a sua espécie.

 

Morgarath é classificado como um de terceiro grau. Isso o torna quase invencível, e são justamente vampiros como ele, tão próximos ao Progenitor, que criaram a fama de imortalidade e a crença de que apenas objetos de cunho religioso, como cruzes, são capazes de matá-los. 

 

A verdade, no entanto, é que nada pode.

 

 


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