Sobre as flores e as cores de abril escrita por JN Silva


Capítulo 5
Capítulo 5


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoal :)
Demorei um pouco novamente, mas enfim, o capítulo saiu
Espero que gostem, boa leitura!



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O dia seguinte amanheceu com o gorjeio dos pássaros e o cantar do galo, numa agradável sensação de calmaria e naturalidade. O doutor não se lembrava da última vez que tivera uma noite de sono tão agradável, longe da agitação das cidades, com suas buzinas de automóveis, vozerios e apitos de trem.

Como Rosa havia dito, o banho de ervas fizera-o acordar bem melhor, com significativa redução das dores musculares. As escoriações e hematomas levariam um tempo a mais para sumir, mas o rapaz já se dava por satisfeito por poder movimentar-se com maior facilidade.

Era ainda bem cedo quando o doutor adentrou na cozinha, onde Dona Iolanda tomava café e Rosa se encontrava bastante ocupada em mexer um tacho de cobre ao fogão.

— Bom dia, senhoras... – cumprimentou Bernardo, recebendo um uníssono “Bom dia, doutor” em resposta.

Enquanto o moço ocupava um lugar à mesa, a anfitriã se pôs a cortar um pedaço de bolo e uma fatia de queijo fresco, dispondo-os em um pires e passando ao rapaz.

— Aqui está, doutor...

— Obrigado.

— O senhor dormiu bem? Ficou bem acomodado?

— Sim, sim... – assentiu o médico, servindo-se de uma xícara de café. – Não me lembro de dormir tão bem há muito tempo.

— Fico feliz em saber... – respondeu a mulher com um leve sorriso.

E dirigindo-se à empregada, perguntou:

— Como está o doce, Rosa?

— Tá quais bão, sinhá. Farta só apurá mais um cadim... – respondeu a mulher, enquanto mexia vigorosamente a mistura do tacho.

— As chuvaradas de março não derrubaram todas as goiabas do pé... – comentou a mulher casualmente para o médico. – Resolvemos aproveitar as que sobraram. O Teobaldo ficará feliz quando voltar. Ele adora goiabada com queijo...

Bernardo sorriu levemente.

— Por falar no coronel, onde ele está?

— Saiu logo cedo, foi à cidade tratar de negócios...

— Entendo. E sua filha, como passou a noite? Ontem eu prometi que voltaria para vê-la, mais tarde, mas quando voltei ela estava adormecida. Não tive coragem de incomodá-la...

— Passou bem melhor, graças a Deus... – respondeu a mulher. – A febre não voltou tão forte e, ao que parece, o mal estar no estômago também reduziu.

— O sinhô acridita qui na janta ela inté consiguiu tumá um tiquim de canja? – comentou Rosa.

— Ora, essas notícias me animam muito! – disse o doutor com um sorriso.

— Tumô umas duas ô trêis cuierada, mais pa quem tava sem cumê há mais di trêis dia já tá bão, num é?

 – Sim, no começo será assim mesmo, o organismo dela ainda está bem fragilizado. Mas é muito importante que ela não deixe de se alimentar. Pouco a pouco, irá se fortalecer e em breve estará saudável de novo...

— Deus lhe ouça, doutor... – respondeu Dona Iolanda, num tom de voz meio tristonho.

Embora tentasse aparentar tranquilidade e resignação diante do momento difícil, os olhos baixos e enevoados da mulher denotavam certa falta de esperança. O doutor percebera seu desalento, mas por respeito, não fizera nenhum comentário, embora se compadecesse de sua dor.

A matrona, por fim, mudando os ares do ânimo, limpou os lábios no guardanapo e levantou-se da mesa.

— Bom, com sua licença, doutor, vou me retirar. Tenho alguns afazeres a cumprir, os quais não posso postergar...

— Claro, Dona Iolanda, fique à vontade... - disse o rapaz, levantando-se em respeito à anfitriã.

— Tome seu café sossegado, o senhor está em sua casa. Se quiser ver minha filha depois, fique à vontade. Ela já está acordada...

— Está certo...

A mulher depositou sua louça e talheres sobre a pia e se retirou da cozinha. Rosa a acompanhou com o olhar. Ao ver a patroa desaparecer pelo corredor, suspirou pesadamente e comentou, em um semblante pensativo:

— Dona Nholanda num qué mostrá, mais tá disassussegada cuéssa história da minina... ela disfarça, discunversa, mais dum jeito ô dôtro a gente percebe...

A mulher se deteve em silêncio por um tempo, ainda a observar o lugar por onde a patroa saiu. Por fim, voltou-se à sua tarefa e acrescentou:

— É... a gente tem que tê fé. Deus há di sê maior, num é, dotôr?

Bernardo assentiu.

— Com certeza, Dona Rosa.

***

A porta do quarto estava entreaberta quando Bernardo alcançou o fim do corredor. A luminosidade que vinha pela fresta indicava que a mãe da moça havia acatado seus conselhos e não mais deixara a janela fechada. O rapaz abriu a porta vagarosamente.

— Com licença. Posso entrar?

— Sim, doutor, por favor... – respondeu a voz delicada, porém enfraquecida, fazendo-se ouvir pela primeira vez.

O médico entrou silenciosamente e encostou a porta, aproximando-se do leito da convalescente. O rosto da moça estava voltado para a direção da janela, e seu olhar, perdido ao longe. Bernardo sentou-se na cadeira próxima à cama, repousando a maleta sobre o colo.

— Como a senhorita está?

— Melhor... – respondeu a paciente, voltando a atenção para o médico.

— Sua mãe me disse que a febre diminuiu...

— Sim, desta vez não voltou tão forte.

— Bom, deixe-me verificar... – disse o doutor, pousando a mão sobre a fronte e as laterais do rosto da moça. – É, sem febre. Menos mal...

O rapaz abriu a maleta e tirou de dentro dela o estetoscópio e o esfigmomanômetro.

— Deixe-me ver sua pressão...

A menina fez menção de sentar-se na cama, mas o médico a dissuadiu, com um aceno de cabeça.

— Não, não precisa tanto esforço. Só encoste-se na cabeceira... isso, assim já está bom.

O médico ajustou o manguito do aparelho em volta do braço da moça e colocou as olivas do estetoscópio nos ouvidos. Após a aferição, comentou:

— A pressão ainda segue meio baixa, mas dentro do quadro em que a senhorita se encontra, é compreensível. Já se alimentou hoje?

A menina fez sinal negativo com a cabeça.

— E por que não? – perguntou o médico com tranquilidade, enquanto retirava o manguito do esfigmomanômetro de seu braço.

— Não senti vontade...

— O estômago ainda embrulha?

— Não tanto. Apenas acordei sem apetite...

— Ainda assim... – disse o médico, terminando de guardar os instrumentos na maleta – ficar em jejum não é bom para você. Seu corpo sofreu uma desnutrição severa nestes dias em que ficou sem se alimentar. Se continuar assim, a senhorita poderá ficar gravemente anêmica. E dependendo da gravidade do caso, pode não haver reversão.

A menina nada respondeu, voltando novamente o olhar para a janela.

— Se eu pedir para a Dona Rosa lhe trazer um copo de leite, a senhorita se esforça para tomar ao menos meio copo?

A menina assentiu.

— Está bem – disse o doutor. – Agora, deixe-me examinar seus olhos.

Quando o médico cuidadosamente puxou a pálpebra inferior de um dos olhos da moça, percebeu algo que não havia reparado quando a examinou anteriormente. A íris castanha voltada para ele, tal qual uma avelã madura, era envolvida de mistério, de um brilho melancólico, profundo, velado, que o fizera perder-se em um devaneio e demorar-se em seu olhar por mais tempo do que deveria. No dia anterior, pela pressa que a urgência do caso pedia, bem como pela presença do coronel e da mulher, a coisa passara batida. Agora, entretanto, tal detalhe se tornava bem evidente e, por um momento, o doutor esquecera-se de que deveria focar no aspecto clínico.

— Há algo de errado, doutor? – perguntou a paciente, despertando o médico de seus pensamentos.

— Não, claro que não... – disse o doutor, ligeiramente envergonhado ao recobrar a atenção. – Ao que parece, a senhorita está se recuperando bem. Continue a repousar e não deixe de se alimentar e tomar líquidos. Logo estará boa de novo...

Enquanto a paciente volvia novamente o olhar à paisagem lá fora, o médico voltou sua atenção à maleta, constrangido, fingindo tentar fechar um zíper emperrado. Será que ela havia percebido sua abstração? Sua expressão facial poderia ter transmitido algo do que se passara em sua mente? Era melhor acreditar que não. E pelo aspecto despreocupado e apático no olhar da moça, era bem possível que ela não tivesse mesmo notado nada.

Antes que um silêncio desconfortável e constrangedor se instaurasse no ambiente, Bernardo puxou assunto:

— Embora seu pai tenha nos apresentado ontem, acho que não sei seu nome...

— Laura... – respondeu a jovem.

Bernardo assentiu.

— É um belo nome...

— Obrigada – respondeu a menina, com um sorriso educado.

O médico depositou com cuidado a maleta no chão e levantou-se da cadeira, andando um pouco pelo quarto, reparando nos detalhes e disposição dos objetos. Os olhos da jovem ainda se mantinham ao longe, perdidos, pensativos. O rapaz caminhou em direção à janela, inclinando-se um pouco para tentar olhar o que ela observava. Lá fora, as ramagens das árvores balançavam com a brisa da manhã. Os olhos da moça, aparentemente, não estavam fixos em coisa alguma.

— É uma bela propriedade, a do seu pai... – comentou o rapaz. - E um bom alimento para o espírito contemplar este horizonte... – acrescentou, virando-se para a moça com um leve sorriso.

Havia percebido desde o início os olhares meditativos da paciente para a paisagem ao longe.

— Pois é... – respondeu Laura, com um sorriso melancólico e um pouco nostálgico, desviando o olhar da janela para o guarda-roupa à sua frente.

Embora tentasse esconder, era visível que algo além dos desconfortos da enfermidade a aborrecia. O doutor permaneceu em silêncio por alguns minutos, refletindo sobre esta percepção, antes de continuar o diálogo.

Sobre o criado mudo ao lado da cama repousavam uns três livros, um deles tendo como marca-páginas uma fita vermelha de cetim.

— A senhorita gosta de ler? – perguntou Bernardo, aproximando-se um pouco para ler os títulos.

O primeiro livro da pilha, marcado com a fita, era intitulado “As primaveras”, de Casimiro de Abreu.

— Não tanto quanto deveria, confesso... – respondeu a menina, com um sorriso constrangido. – A aficionada por leitura sempre foi minha irmã Teresa...

— Devo dizer que também não sou muito afeito a livros que não tratem de literatura médica... – admitiu o doutor, com uma leve risada.

Laura lançou um olhar aos livros no criado mudo ao lado.

— Não é que eu não goste de livros, mas acho que prefiro vivenciar experiências do que ler sobre elas.

E dizendo isso, a jovem lançou um olhar sugestivo e profundo na direção da janela, levando o doutor a olhar também para a mesma direção.

— Sente falta de algo lá fora? – perguntou Bernardo.

A paciente assentiu.

— Sim. Do vento no rosto, o sol na cabeça, de andar pelos campos, subir a serra... me sentir livre. De ir à cidade aos domingos, reencontrar algumas amigas, tomar sorvete na praça... – disse a menina, rindo consigo mesma do acréscimo final de sua frase.

— Bom, eu estou aqui para ajudá-la nisso... – respondeu o médico. – Logo que a senhorita recuperar sua saúde, poderá fazer tudo isso de novo.

Por um momento, no entanto, o sorriso sumiu do rosto de Laura e seu olhar se tornou tristonho e pensativo.

— Considerando o preço que devo pagar, já não sei se vale a pena...

Bernardo estranhou as palavras e o desânimo da paciente. A menina parecia não fazer conta de sua recuperação. O rapaz se pôs a pensar nos possíveis motivos da melancolia da jovem, mas resolveu não perguntar nada. Poderia soar invasivo de sua parte questioná-la sobre seus motivos pessoais.

Mudando o rumo do assunto, Bernardo observou:

— Bom, mas imagino que ao menos este livro deva ser especial para você... – disse o médico, pegando o livro “As primaveras” em suas mãos.

Um leve sorriso surgiu no rosto da paciente.

— Todos estes são, na verdade. Teresa os deu para mim. Eu os guardo como uma memória afetiva.

— Vejo que há uma página marcada... – observou o médico.

— Sim, eu costumava ler alguns destes poemas antes. Mas depois que as tonturas aumentaram, ficou impossível ler qualquer coisa. A vista embaralha, as letras ficam turvas, fico com a sensação de que tudo ao meu redor está rodando.

— Entendo... – disse o médico, folheando algumas páginas.

E enquanto folheava o livro, uma ideia se passou na cabeça do doutor.

— Bom, se a senhorita me permitir, eu poderia ler um pouco para distraí-la. Imagino como deva ser desagradável estar a tanto tempo acamada sem ter nada com o que se comprazer...

A oferta inusitada fez com que a paciente se surpreendesse. No entanto, uma expressão de gratidão surgiu em seu rosto, em uma clara resposta à proposta do médico.


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Notas finais do capítulo

Bom, por hoje é isso :)
Revisei o capítulo tanto quanto possível, mas se ainda assim tiver escapado algum erro, me desculpem kkk
Bjs, e até a próxima! :D



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