Sobre as flores e as cores de abril escrita por JN Silva


Capítulo 4
Capítulo 4


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoal...
Sumi por uns tempos, por questões de saúde. Estava enfrentando algumas crises de ansiedade, precisei me retirar por um tempo para me estabilizar. Por esse motivo, o capítulo demorou um pouco mais para ser postado.
Ainda desejo fazer postagens mensais, mas não sei se essa constância será possível. Caso os próximos capítulos atrasem um pouco mais, conto com a paciência e a compreensão de vocês :)
Aproveito para agradecer os comentários e favoritos que a história tem recebido e cumprimentar os novos leitores que chegam :)
Uma boa leitura a todos!



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Algumas horas mais tarde (que mais pareceram minutos) Bernardo acordou com o som de batidas na porta. Antes que se levantasse para atender, porém, ouviu a voz do coronel do outro lado:

— Desculpe incomodá-lo, doutor. O almoço está pronto e será servido dentro de alguns instantes. Desça quando estiver pronto, estamos todos lhe esperando...

— Está certo, coronel... – respondeu o rapaz, ainda com voz sonolenta. – Só um momento, eu não me demoro...

Enquanto o som dos passos do coronel se distanciava pelo corredor, Bernardo ajeitou-se na cama. Ainda estava na mesma posição de quando adormecera e não havia sequer tirado os sapatos. Conforme imaginou que aconteceria, seu corpo doía muito mais agora, depois do breve descanso, do que antes, enquanto ainda estava com o corpo quente e envolvido pela pressa dos acontecimentos. Seus membros estavam pesados e doloridos, especialmente aquele lado que havia sofrido maior impacto do acidente. Como costumava dizer o pessoal mais simples, sentia-se como se tivesse levado uma surra de porrete.

Com algum esforço, colocou-se de pé e, mesmo com os músculos doloridos e meio travados, caminhou como pôde em direção ao banheiro. Ao olhar-se no espelho, encontrou uma aparência um pouco pior do que esperava: além dos cabelos bagunçados pelo ato de dormir, havia alguns esfolados bem evidentes pelo rosto. Os pequenos ferimentos não pareciam graves, porém era quase certo que despertariam comentários e suscitariam perguntas que o jovem médico não desejava responder. Ainda assim, alguns minutos depois, o doutor descia as escadas de seu aposento com as vestes bem alinhadas, rosto lavado e os cabelos molhados e devidamente penteados. O coronel o esperava ao pé da escada, pronto para conduzi-lo aonde a família Linhares se reuniria.

Conforme o conduzia pelo corredor, o homem perguntou, de súbito:

— Me diga uma coisa: o doutor já comeu carne de tatu?

— Não que eu me lembre... – respondeu Bernardo com um leve sorriso.

O coronel deu uma risada sossegada.

— Pois então irá experimentar hoje. Tatu-galinha, uma das carnes de caça mais saborosas que há!

Ao chegarem ao portal da cozinha, se depararam com a cozinheira compenetrada em pôr a mesa, tão zelosa quanto esbaforida, dispondo os pratos e talheres em seus respectivos lugares.

Um fato interessante da mansão dos Linhares, é que a sala de jantar não se separava da cozinha. O ambiente amplo abrangia os dois espaços: de um lado, a preparação do alimento; de outro, a reunião da família para consumi-lo. Estas duas realidades tão próximas, do cozinhar e do comer, davam ao lugar a uma atmosfera de acolhimento e aconchego.

— Ei, Rosa... – chamou o coronel a princípio.

Mas a mulher estava tão concentrada na tarefa que cumpria, andando de um lado para o outro com um pano de prato jogado sobre o ombro, que nem mesmo ouviu a voz do patrão.

— Rosa! – chamou o coronel um pouco mais alto, adentrando na cozinha.

A mulher deu um pulo de sobressalto ante a voz do patrão, virando-se para ele imediatamente.

— Ara! O coroné qué mi matá de susto?! Óia qui meu coração tá in tempo di saí pela güela! – respondeu a mulher em uma voz esganiçada, esfregando a mão no peito.

— Deixe de bobagens, quero lhe apresentar o doutor Garcia. Venha, doutor, pode se achegar... – disse o homem, gesticulando para que Bernardo se aproximasse.

O rosto de Rosa assumiu um ar de surpresa e ligeira vergonha quando o rapaz entrou na cozinha. Preocupando-se em alisar o avental e ajeitar os cabelos sob o lenço da cabeça, disse, em tom ameno e levemente constrangido:

— Uai, o coroné num falô nada que nóis ia tê visita...

— Não se trata de uma visita, mas de um hóspede – explicou o coronel. – Este é o doutor Garcia, veio para cuidar da menina. Ficará conosco pelo tempo em que durar o tratamento.

Escondendo a vontade de rir pelo jeitão pitoresco da cozinheira, Bernardo beijou-lhe a mão educadamente e lhe disse, em um sorriso cortês:

— Estou encantado em conhecê-la, Dona Rosa.

A mulher deu uma risadinha tímida e lisonjeada, levando a outra mão ao rosto, provavelmente para esconder o rubor.

— Ara, quê isso, dotô! Eu é qui tenho muito gosto in cunhecê o sinhor...

Mas reparando melhor no rosto do médico, o sorriso da mulher se transformou em espanto:

— Ave, cruiz! O dotôr brigô cum um gato, foi?!

— Olhe os modos, Rosa! – ralhou o coronel, ligeiramente constrangido pela atitude da empregada.

— Mai coroné, óia a cara do minino!

— Basta, Rosa...

— Não se preocupe, coronel, não me ofendo com a observação da Dona Rosa... – disse Bernardo, com gentileza.

E voltando-se para ela, disse:

— Não se preocupe, foi apenas um pequeno incidente que aconteceu antes que eu viesse para cá.

— O doutor depois nos conte essa história melhor – pediu-lhe o coronel, com certa curiosidade.

E voltando-se para a cozinheira, perguntou:

— Onde está o resto da criadagem?

— O Tião cabô de chegá da cidade. Dexô aqui o remédio da minina Laurinha e saiu aí pra fora. A Otília foi buscá umas lenha para mim. Os zôtro deve tá puraí...

— Entendi. E Iolanda, onde está?

— Tava no quarto da sinhazinha inté góra pôco. Deve que tá se ajeitano, antes de vim armuçá...

— Está certo. Vamos nos acomodando então, doutor, enquanto ela não chega... – disse o coronel, fazendo menção para que Bernardo se sentasse à mesa.

O estilo rústico daquele ambiente – e de toda a casa na verdade – imprimia um caráter artesanal e acolhedor no lar dos Linhares. Em uma das paredes do amplo espaço ficava acoplado o fogão à lenha, encerado de vermelho vivo, transformando em brasas e cinzas os galhos secos e pedaços de tocos que lhe eram inseridos para combustão. Bem acima do fogão, penduradas em uma vara firme e roliça acoplada à parede, pendiam réstias de alho e de cebola, as quais secavam suas palhas ao calor das chamas que subia, fazendo rescender pelo espaço um aroma de tempero.

A certa distância do fogão, ainda ligada à mesma parede, estava uma pia caprichosamente limpa, sobre a qual se encontrava um jarro com água contendo um maço de cheiro-verde e um cesto de vime repleto de tomates bem vermelhos. Acima da pia, em um pedaço de ripa pregado à parede, cravejado de pregos, ficavam pendurados toda a sorte de conchas, colheres de pau e tachos de cobre bem areados, de diversos tamanhos. Ao pé da pia, servindo como tapete, um pedaço de couro bovino curtido.

Nas paredes perpendiculares ao fogão e à pia, havia, do lado esquerdo, um janelão de madeira bem aberto, trazendo luminosidade ao ambiente. Do lado direito, um armário de madeira e uma cristaleira que exibia bonitas peças de cerâmica, ambos os móveis enfeitados por vasos de margaridas e crisântemos amarelos.

Ao centro de todo o espaço, situava-se a mesa para refeições, ampla e de madeira escura e avermelhada, decorada com uma toalha branca de crochê.

Após algum tempo, Dona Iolanda apareceu na cozinha, arrumada e recomposta, com ares diferentes daqueles encontrados de manhã, no aposento da filha.

— Já está tudo pronto, Rosa? – perguntou calmamente à cozinheira.

— Tá tudo no jeito sim, Sinhá...

— Podemos servir o almoço então.

Rosa pôs-se a transferir as panelas de barro da taipa do fogão para uma esteira de palha trançada sobre a mesa, que servia de descanso para as panelas. Ao destampá-las, o aroma da comida se espalhou por todo o ambiente. A carne do tatu, corada pelo açafrão, rescendia a salsinha e cebolinha.

Enquanto Rosa servia porções de arroz, feijão e outros acompanhamentos, Tião apareceu na cozinha.

— Escute, Tião – disse o coronel – vá até a adega e nos traga uma garrafa de vinho. Traga também aquela pinga de barril, envelhecida no carvalho.

— Tá certo, coroné...

Em questão de alguns instantes, o homenzinho voltava com as bebidas.

— O doutor aceita uma dosinha da marvada? – perguntou o coronel, em tom brincalhão.

— Obrigado, coronel, mas vou preferir o vinho mesmo... – respondeu o médico.

— Pois eu sempre gosto de uma dose antes das refeições... o doutor sabe como é: para abrir o apetite... – disse o coronel, sorvendo o líquido amarelo do copo com uma careta e um estalar da língua.

O decorrer do almoço seguiu tranquilo, com diálogos leves e uma ou outra pergunta do coronel ou de Dona Iolanda. Até que a pergunta inconveniente surgiu:

— Mas então, doutor, nos conte melhor esta história de seu incidente. O que foi que aconteceu afinal de contas? – perguntou o coronel, dirigindo seu olhar ao rapaz, ao mesmo tempo em que a esposa.

Bernardo lançou um olhar discreto a Tião, encostado de braços cruzados à pia da cozinha. O homenzinho assumiu o olhar de um coelho assustado e Bernardo percebeu o sangue sumir de seu rosto.

— Bom, como o senhor sabe, me mudei hoje para a cidade - iniciou o rapaz. – Eu estava em busca de hospedagem e quando cruzei a rua, fui atropelado por um sujeito numa carroça...

— Valha-me Deus! – exclamou Dona Iolanda, cobrindo a boca de espanto, ao mesmo tempo em que Rosa bradava “Minha Virgi Santa!”.

O olhar do coronel não era menos assustado.

— Mas como é que o doutor me vem nesse estado para atender a menina? – perguntou o homem abismado. – O doutor me desculpe, mas foi uma irresponsabilidade de sua parte sair desse jeito e vir para cá; quem precisava de um médico é o senhor! O doutor podia ter quebrado um osso, ou tido uma hemorragia, ou qualquer outra coisa do tipo! Ainda está em tempo de buscar um médico na cidade para atendê-lo...

— Não há necessidade, coronel... – adiantou-se Bernardo rapidamente. - O golpe não foi tão feio assim. Felizmente não tive mais do que arranhões e hematomas.

— Ainda assim, o doutor deveria se cuidar... – recomendou Dona Iolanda, com olhar preocupado.

— Mas afinal de contas, quem foi o filho de uma égua que...

— Teobaldo! – ralhou a mulher.

— Me desculpe, doutor. Quero dizer, quem foi o infeliz que lhe fez isso? – corrigiu o homem. – Um sujeito desses deveria ser preso!

Nesse ponto, os olhos de Tião estavam quase tão grandes quanto ovos de galinha. O homenzinho engoliu seco.

— Não pude ver, coronel. Quem quer que fosse, estava muito apressado. Deveria ter lá seus motivos. Por sorte, nesse momento o Tião vinha passando pelo caminho e me ajudou.

Pelo canto de olho, Bernardo viu Tião suspirar aliviado. O doutor lhe dirigiu um sorriso discreto.

— Bom, neste caso, menos mal... – disse o coronel. – Mas se o doutor sentir qualquer coisa, qualquer complicação, não hesite em pedir ajuda.

— Se o dotô quisé e aceitá us cuidado de uma véia sem istudo, eu posso fazê um banho de arnica pu sinhô tirá a dor do corpo – ofereceu Rosa. - É tiriquéda! Amanhã u dotô já acorda di ôto jeito!

— Obrigado, Dona Rosa, irei aceitar sim – respondeu Bernardo, com bondade. – A medicina tradicional tem muito a aprender com a sabedoria popular...

A mulher sorriu com satisfação.

— U dotô só espere um cadim intão, pra cumida báxá, purquê num presta si banhá co estâmo cheio.

O decorrer do almoço seguira tranquilo e o coronel não insistiu mais na história. Quando todos se retiraram da cozinha e Bernardo se dirigia para seu quarto, Tião parou-o no meio do caminho, amassando o chapéu de palha entre as mãos, com uma expressão tímida no olhar:

— U dotô me discurpe mêmo do aconticido. Néra minha intenção tacá u cavalo in riba do sinhô não, inda mais seno um moço bão que nem o dotô...

— Não se aborreça, Tião, eu já esqueci isso... – respondeu o médico, com um sorriso gentil.

— O dotô num sabe a gratidão que eu lhe tenho, pur num tê falado nada pru coroné... – disse o homenzinho cabisbaixo. - Numa hora dessa, eu e a minha Rosa ia tá no ôio da rua. O coroné é um ômi brabo, num tulera essas coisa...

Bernardo deu-lhe um tapinha nas costas.

— Eu nunca colocaria em risco o seu emprego, nem o de sua família. Se agora eu tenho um trabalho, foi graças a você... – respondeu-lhe, bondosamente. – Bom, agora me deixe ir para meu quarto. Preciso descansar da viagem e tenho o caso da senhorita Linhares para estudar...

— Tá certo, seu dotô. Gradicido mêmo, o dotô é um ômi bão, muinto bão!

Enquanto o homenzinho voltava pelo corredor com um largo sorriso no rosto, o médico seguiu adiante. Por um momento, a lembrança da moça voltou à sua mente. O rapaz voltou os olhos para trás, ao fim do corredor, olhando para a porta que guardava os aposentos da enferma. Com um menear de cabeça, porém, afastou o pensamento da mente, pondo-se a subir as escadas em direção ao próprio quarto.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado :D
Até o próximo capítulo!



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