Sobre as flores e as cores de abril escrita por JN Silva


Capítulo 6
Capítulo 6


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoal
Mil perdões pela demora em atualizar a história, mas foram tantas coisas que aconteceram desde o fim do ano passado, desde a organização das festividades de fim de ano, alguns problemas de saúde, dificuldades de organização da rotina, bloqueios criativos, projetos novos que iniciei, enfim. Este ano me propus a aprender aquarela, então acabei me empolgando muito com isso e deixando a história meio de lado kkk
Mas prometo que vou fazer o possível para conciliar as coisas e não ficar mais tanto tempo sem postar :)
Desejo a todos uma boa leitura!



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Já fazia alguns minutos que não se ouvia, no quarto da jovem, nenhum outro ruído a não ser a voz calma e pacienciosa do médico a ler os versos do poema. Não sabia declamar, era verdade, mas era capaz fazer uma leitura razoavelmente bonita, que pudesse proporcionar, ainda que por breves momentos, alguma forma de entretenimento à sua paciente.

Livre filho das montanhas,

Eu ia bem satisfeito

Da camisa aberta ao peito,

 – Pés descalços, braços nus –

Correndo pelas campinas,

À roda das cachoeiras,

Atrás das asas ligeiras

Das borboletas azuis!

Recostado sossegadamente à cadeira, com o livro apoiado sobre o colo, de quando em quando o doutor levantava os olhos da leitura para a paciente, esboçando um leve sorriso ao contemplar sua reação.

A moça parecia embalada por um sonho. Os olhos meditativos, voltados para a paisagem da janela, revelavam uma alegria nostálgica. Os lábios se moviam levemente, acompanhando a leitura dos versos, como se os recitasse de memória. Em sua face havia uma expressão de leveza, como se a menina resgatasse antigas lembranças.

O poema já estava em suas estrofes finais:

Naqueles tempos ditosos

Ia colher as pitangas,

Trepava a tirar as mangas,

Brincava à beira do mar;

Rezava às Ave-Marias,

Achava o céu sempre lindo,

Adormecia sorrindo

E despertava a cantar!

Oh! Que saudades que tenho

Da aurora da minha vida,

Da minha infância querida

Que os anos não trazem mais!

— Que amor, que sonhos, que flores,

Naquelas tardes fagueiras

À sombra das bananeiras,

Debaixo dos laranjais!

Ao concluir a leitura, o doutor fechou cuidadosamente o livro e permaneceu em silêncio por um tempo, admirando a capa, a refletir. Ao voltar os olhos para a paciente, viu que a jovem ainda mantinha os olhos e a mente bem longe, imersa no que acabara de ouvir.

— A senhorita parece conhecer este poema muito bem... – disse Bernardo, em leve tom de gracejo.

Laura lançou um olhar surpreso ao rapaz, sem entender sua suposição.

— Eu percebi que o recitava de cor, durante a leitura...

A menina deu um sorriso surpreso e constrangido.

— Eu nem mesmo percebi que fiz isso...

O doutor sorriu em resposta, levantando-se para depositar o livro de volta ao lugar.

— A verdade é que este poema me traz muitas memórias... – iniciou a paciente. – De minha infância, da minha irmã...

— É mesmo? – perguntou o rapaz, interessando-se pelo assunto.

— Sim. De certa forma, me faz lembrar de mim mesma quando menina, das aventuras da infância. Teresa costumava ler para mim todas as noites, antes de dormirmos. Acabei por memorizar alguns dos poemas...

— E este em específico, parece ser bastante significativo para a senhorita... – deduziu o rapaz.

Laura assentiu. Bernardo lançou novamente um olhar aos outros livros, sobre o criado mudo.

— A senhorita fala de sua irmã com uma certa saudade... aconteceu algo? – perguntou o rapaz cuidadosamente, esperando não ter tocado em um ponto delicado ou desagradável de se recordar.

Laura fez um gesto negativo com a cabeça, em aparente tranquilidade.

— Ela casou-se, há alguns meses...

— E por que não pede para que ela venha lhe visitar?

— Não é possível... – iniciou a moça, desviando o olhar para os entalhes do guarda-roupa. – Logo após o casamento, ela e o marido viajaram para Portugal, a negócios. Ao que parece, não pretendem retornar antes de um ano.

— Compreendo... - disse o rapaz, logo em seguida correndo os olhos para o relógio de pulso em seu braço. - Bom, agora preciso ir. Acabei tomando muito do seu tempo, era para ter sido uma visita rápida. Vou deixá-la descansar...

O rapaz retornou à cadeira e apanhou a maleta, preparando-se para deixar o aposento.

— Pedirei à Dona Rosa que lhe traga algo para comer, não pense que me esqueci. Havendo necessidade, volto mais tarde para ver como a senhorita está. Com sua licença...

 Antes, porém, que Bernardo alcançasse a porta, a voz de Laura o fez parar:

— Doutor...

— Sim? – respondeu o rapaz, voltando-se para ela.

— Eu o agradeço por seu gesto. Foram os minutos mais agradáveis que pude vivenciar em meses...

O médico assentiu com um breve movimento de cabeça, em sinal de cortesia.

— Estou à disposição... – respondeu, solícito.

Quando cruzou a porta e deixou os aposentos da moça, Bernardo sentia o coração leve como uma pluma. Os sentimentos de satisfação interna e de realização que lhe invadiam o peito eram indizíveis. Compreendia, naquele momento, que sua missão como médico se estendia para além de meramente prescrever medicamentos. E que o sorriso grato de sua paciente constituía a maior paga que poderia receber...

***

Era próximo da hora do almoço quando um som de buzina de automóvel fez-se ouvir, do lado de fora. O coronel e Tião acabavam de chegar da cidade.

— São todos uns abutres, uns safados! – esbravejava o coronel, enquanto subia a escadaria de pedra.

Tião o acompanhava logo atrás.

 – Pensam que é fácil colocar o boi no pasto e mantê-lo saudável, como se não houvesse custos, esforço, sacrifícios. Mas eles que tirem o cavalo da chuva! Esses canalhas não botarão a mão em uma só rês do meu rebanho! Nem uma sequer!

O som das pisadas fortes do coronel ressoava pelo soalho de madeira da varanda. Dona Iolanda apontou na porta:

— Ara, homem! O que é isso? O que houve na cidade para você voltar desse jeito?

— Negócios, mulher. Négocios... – respondeu o homem, sem muita paciência, passando por ela diretamente.

— O coroné tá sortano fogo pelas venta... – cochichou Tião ao passar por ela, cuidando para que o coronel não ouvisse.

— O que foi que houve? – perguntou a mulher no mesmo tom, olhando para trás para certificar-se de que o marido já estava a uma boa distância.

— Pareceu uns compradô lá na cidade, interessado nun’as cabeça de gado do coroné. No cumeço levaro o coroné na cunversa, tentaro ingambelá... mai quando o coroné deu o preço, viéro com umas proposta isquisita, cherâno a górpe dos grande! O coroné num aceitô, mais us ômi quisero teimá, cumeçaro discutí co coroné, fartá cum o respeito... o resto, a sinhá já imagina cumo que foi...

A mulher abanou a cabeça, reprovando a confusão que imaginava ter acontecido.

— Deve quêis num era daqui... - continuou o homenzinho – Purquê s’êis subésse da fama du coroné, num ia fazê um disaforo desse pu ômi...

— Bom, vamos deixá-lo quieto então... – recomendou a mulher – Não o perturbem por enquanto, nem com perguntas, nem com assuntos, nem nada. Daqui a pouco ele se acalma e esquece disso.

— Tá certo, sinhá. Aqui a chave do carro. O coroné saiu tão aturduado que inté isqueceu... – disse Tião entregando-a na mão da patroa e descendo novamente as escadas.

***

Como Dona Iolanda havia previsto, depois de algum tempo trancado em seu gabinete, sozinho, o coronel se refez da fúria e voltou com ares bem melhores na hora do almoço. A refeição aconteceu de forma tranquila e sem grandes animosidades.

Quando todos começavam a se retirar da cozinha, o coronel chamou Bernardo.

— Ei, doutor, venha cá... – disse o homem, fazendo um gesto para que o rapaz o acompanhasse em direção à sala.

Bernardo o seguiu. O coronel sentou-se sossegadamente em sua poltrona, ao mesmo tempo em que indicava para o médico um lugar ao sofá.

— Por gentileza, doutor, sente-se. Ontem o dia foi tão corrido que mal tivemos tempo para conversar...

O rapaz tomou lugar ao assento. O coronel pegou uma garrafa de líquido escuro, que estava sobre a mesinha de centro, desarrolhando-a e fazendo menção de servir.

— Aceita, doutor?

— Não, coronel, obrigado...

— Ora, doutor, um licorzinho não há de fazer mal a ninguém. Pegue...

— Bom, neste caso... – considerou o rapaz, aceitando o pequeno cálice das mãos do coronel. – Obrigado.

Logo em seguida o homem encheu um cálice para si mesmo, do líquido roxo escuro.

— O licor da jabuticaba é um dos meus preferidos... – comentou, tomando um pequeno gole. – Mas me fale um pouco de você, doutor: de onde vem, de sua família, de seus objetivos por estas bandas...

— Bom, até pouco tempo atrás eu residia em São Paulo, por conta de meus estudos – explicou o moço. - Mas minha cidade natal é Diamantina.

— Vale do Jequitinhonha... – disse o coronel, com uma risada sossegada.

— Pois é... – disse o rapaz, agitando o licor em seu cálice, antes de bebericar.

— Tive bons amigos por aquelas bandas... – disse o coronel, com um sorriso saudoso. – Homens de muita visão, engenhosidade... aprendi muito do que sei com eles...

E tomando mais um gole de sua bebida, o homem continuou:

— Mas e sua família doutor?

— Sou filho de Dona Vera e Dr. Joaquim Garcia. Basicamente, foi meu pai quem incentivou minha vinda para cá... – respondeu o rapaz.

— Compreendo. Médico também? – perguntou o coronel.

— Advogado.

— Oh, sim. E o senhor tem irmãos?

— Uma irmã, Celina. Dois anos mais velha do que eu.

— Entendi. Vejo que o senhor tem boas referências familiares – disse o coronel amigavelmente. – Imagino que sejam gente muito estimável...

Bernardo sorriu timidamente perante a lisonja. O coronel deu um último gole em seu licor e depositou o cálice sobre a mesinha de centro.

— Pelo o que eu entendi então, o senhor se formou recentemente?

— Sim, sim... – disse o moço, logo após um pequeno gole de sua bebida. – Pouco mais de um mês. Na verdade, sua filha é a primeira paciente que atendo como médico graduado...

— Veja só... – disse o homem, ligeiramente surpreso com última a informação. – Agora, se o senhor me permite perguntar: por que, precisamente, Entre-Montes? Quero dizer: o senhor praticamente atravessou o estado de Minas Gerais de um canto a outro, para chegar aqui. Não teria sido mais fácil escolher uma cidade mais próxima da sua?

— Os motivos que me levaram a esta decisão foram diversos... – respondeu o rapaz. – Em primeiro lugar, eu tinha uma parenta residente por aqui, uma prima distante. Na verdade, cheguei esperando contar com a hospedagem dela, até que conseguisse encontrar outro local onde pudesse me instalar. Mas acabei contrariado em minha expectativa, ao saber que ela havia ido embora para outro lugar. Circunstância essa, que me fez deparar-me com o Tião e estar aqui agora...

O coronel esboçou um sorriso diante do gracejo.

— O segundo motivo – continuou Bernardo – foi o desejo de independência pessoal, de expandir meus horizontes. Sinto que se tivesse ficado debaixo das asas de meus pais, ou muito próximo deles, teria sido afetado pela dependência material ou afetiva e não conseguiria caminhar por mim mesmo, dedicar-me com afinco à profissão que escolhi. Talvez a experiência de ter morado alguns anos em São Paulo tenha me influenciado, de alguma forma. A perspectiva de novos ares, novas oportunidades, me inspira a trilhar um novo rumo na vida.

— Muito bem... – disse o coronel, balançando a cabeça em sinal de anuência. – O senhor é um moço muito jovem, está mesmo na idade de se aventurar, se arriscar, experimentar. Fico feliz que tenha escolhido fazer isso pela via do trabalho. Outros moços, na sua idade, escolhem aventuras bem menos nobres, se é que o doutor me entende. Mas enfim, espero sinceramente que a sua experiência por aqui seja feliz e que o senhor obtenha êxito naquilo que almeja...

— Agradeço, coronel...

O homem deu uma coçada na barba, com o olhar longe.

— Lembro-me de quando comecei a tocar estas terras. Era um rapazote sem experiência, sem jeito. Tinha medo de desapontar meu pai... – disse o coronel, com uma leve risada. – Mas o tempo, o trabalho e a vida foram me ensinando o que eu precisava saber. E também meu saudoso pai, é claro. Depois me casei, assumi esta família, enfim... no final das contas, não era lá aquele bicho de sete cabeças que eu imaginava. Houve sim, muitas dificuldades. Mas a gente vai passando por elas quase que sem perceber e, quando olha para trás, vê que já andou boa parte do caminho...

O coronel deu um suspiro e correu a mão para o bolso do paletó, à procura do relógio de bolso.

— É, está na hora de cuidar das obrigações... – disse o homem, tornando a guardar o objeto após ver as horas. – Foi muito agradável poder dar uns dedos de prosa com o amigo, conhecê-lo melhor. Mas agora preciso ir cuidar dos afazeres...

O homem se levantou, apoiando-se na bengala. Bernardo levantou-se também, em sinal de respeito.

— Preciso dar um chego no curral, uma de minhas vacas pariu ontem à tarde. Quero dar uma olhada no filhote, nas outras prenhes. Verificar se as coisas estão correndo como devem. Com sua licença, doutor...

— Claro, coronel, fique à vontade...

— Tome seu licor sossegado, não tenha pressa. Qualquer coisa, estou à disposição.

— Está certo.

Quando o coronel saiu da sala, o médico voltou a sentar-se, refletindo sobre a conversa que haviam acabado de ter. Por trás da casca de durão, havia um homem como qualquer outro, marcado pela experiência dos anos e pelas lutas da vida.

De alguma forma, aquela apreensão que o rapaz sentira no dia anterior, começava a se desfazer...  


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Notas finais do capítulo

* Os trechos poéticos citados na primeira parte do capítulo são do poema "Meus oito anos", de Casimiro de Abreu, contido no livro As Primaveras (1859).

**Pergunta rápida aqui: vocês ainda utilizam a versão antiga do Nyah ou já migraram para o +Fiction (versão nova do site)? Pergunto porque esse novo site parece que só aceita capas de histórias na posição retrato, vertical. Como a minha capa está na posição paisagem (horizontal), quando abro a história no +Fiction a capa fica muito estranha. Sendo assim, eu teria que alterar a capa da história para ficar mais condizente com o formato que o site pede (uma pena, porque eu gostei dessa capa kkk). Eu ainda uso a versão antiga do site.

Até a próxima, bjs!



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