Sobre as flores e as cores de abril escrita por JN Silva


Capítulo 3
Capítulo 3




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O quarto estava imerso em penumbra, iluminado apenas por um toco de vela que queimava sobre um pires, em cima de um criado mudo ao lado da cama. Do lado direito do aposento, a única janela estava coberta por uma grossa cortina carmesim, a qual impedia a entrada de qualquer luminosidade do sol radiante lá fora.

A menina ressonava sobre o leito, afundada entre os travesseiros e cobertores. Sua frágil figura parecia quase sumir entre tantos tecidos e acolchoados que a cobriam e envolviam. O rosto pálido e magro, pendendo suavemente de lado sobre o travesseiro, era iluminado pelas luzes bruxuleantes da vela, revelando uma boca pálida e manchas escurecidas ao redor dos olhos. Uma de suas mãos repousava sobre o peito, enquanto a outra pendia ao lado do corpo.

Bernardo permanecera imóvel em seu lugar, sentindo o coração bater violentamente dentro do peito e a respiração se tornar mais forte. Havia uma sensação estranha crescendo dentro de si, difícil de nomear. O coronel pareceu dizer algo, mas o moço não ouviu: a voz do homem parecia muito distante, assim como os demais elementos que compunham o aposento. A imagem da moça era de fazer pena a qualquer um, no entanto, apesar da tristeza e comoção que causava, havia naquela cena uma certa candura. Adormecida em seu leito, ela parecia tão plácida como a superfície de um lago que nunca houvesse sido perturbada pela menor gota de orvalho que se fosse. Sua formosura havia sido ofuscada pela enfermidade e não havia, naquele momento, qualquer atrativo físico que pudesse impressionar ao doutor. Todavia, sua atitude resiliente e imperturbável, como a de um cordeiro inocente perante o sofrimento, causara uma forte impressão no rapaz.

A voz do coronel despertara Bernardo de seus devaneios, chamando-o de volta à realidade:

— O caso é assim tão grave, doutor? – perguntou o homem, com uma expressão preocupada no olhar e a face carregada de assombro.

— Não, de maneira nenhuma, coronel... – respondeu o rapaz, buscando se recompor de sua abstração.

O rosto do homem pareceu suavizar.

— Bem, é que o doutor ficou tão sério de repente, que cheguei a ficar preocupado...

Bernardo dirigiu-lhe um olhar confiante e tranquilizador.

— Não se preocupe, coronel. Sua filha ficará bem...

Em seguida, correndo os olhos pelo ambiente, o rapaz foi percebendo melhor a disposição das coisas.

— Por que a janela está fechada? – perguntou.

— Nós imaginamos que a claridade do sol poderia incomodá-la... – respondeu uma voz feminina e embargada ao fundo do quarto, cuja dona Bernardo não havia percebido. – Ela tem estado muito sensível ultimamente...

O doutor voltou-se para a direção da voz, encontrando uma senhora de meia idade sentada sobre uma cadeira, em um canto do aposento. Certamente, a mulher do coronel. A mulher tinha o rosto manchado de lágrimas e segurava um lenço entre as mãos. Seu rosto estava carregado de cansaço.

— Ainda com a choradeira, mulher? – disse o coronel, em tom de repreensão. – O doutor já está aqui, ele já garantiu que fará nossa filha ficar boa...

A esposa pareceu não gostar do tom aparentemente insensível do marido, mas não respondeu ao comentário. Bernardo dirigiu-se ao coronel.

— Bom, se os senhores me permitem, peço para abrirem a janela. Me possibilitará examiná-la melhor e além disso, um quarto arejado e bem iluminado a ajudará em sua recuperação.

— Claro, doutor... – assentiu o coronel, fazendo sinal para a esposa. – Iolanda, faça o favor.

A mulher afastou as cortinas e abriu a vidraça, permitindo que a luz solar da manhã entrasse. A atmosfera dentro do quarto mudara completamente. Com a nova luz, parecia ir embora o clima tristonho e quase fúnebre que antes reinava, ao mesmo tempo em que as coisas pareciam tomar cores mais vivas.

— Assim está bem melhor... – disse o doutor lançando um novo olhar à convalescente, podendo agora vê-la com mais clareza.

Se as cores do ambiente haviam se tornado mais vivas, a menina, por outro lado, parecia ainda mais apagada e acinzentada do que antes, quase como uma figura em preto e branco inserida em um ambiente colorido.

O coronel logo se adiantou:

— Eu vou acordá-la, doutor, para o que senhor possa examiná-la melhor...

E dizendo isto, dirigiu-se para junto da menina, sentando-se em uma beirada da cama.

— Acorde, minha filha... – disse o homem baixinho, afagando a testa da menina – O doutor Garcia está aqui para ver você. Vamos, acorde...

A moça mexeu-se um pouco ante a voz do pai e após alguns segundos, abriu os olhos, ainda confusos pela sonolência e a súbita claridade. Seus olhos correram pelo ambiente e logo encontraram os do doutor, que lhe sorriu e cumprimentou cordialmente:

— Olá, senhorita...

A menina lhe devolveu um sorriso educado, ainda que estranhasse um pouco a presença do desconhecido em seu quarto.

— Veja, filha, este é o doutor Garcia – explicou o coronel. - Está aqui para ver você e tratar da sua enfermidade.

Em seguida, voltando-se para Bernardo, o homem levantou-se e deu passagem ao médico.

— Pronto, doutor. Fique à vontade...

— Eu agradeço – respondeu o rapaz, dirigindo-se para junto da paciente. – Há quanto tempo ela está assim?

— Mais ou menos uns quatro meses... – respondeu a mãe da garota.

— Ela já passou pelas mãos de algum outro profissional?

— O doutor Felisberto esteve aqui algumas vezes para vê-la – explicou o coronel. – Mas foram visitas muito esporádicas. Não há muitos médicos por aqui e ele é muito requisitado.

— Compreendo. E quais sintomas ela tem apresentado? – perguntou o rapaz, sentando-se na beirada da cama e colocando a maleta ao seu lado.

— Bem, há um certo tempo ela começou a ficar meio abatida, não conseguia se alimentar direito, começou a ter umas tonturas, umas vertigens... não é mesmo, Iolanda? – iniciou o pai.

— Sim... – confirmou a mulher. – Ela tem estado muito fraca, não consegue mais se equilibrar de pé. Esta noite ela teve muita febre, até o amanhecer do dia. Passamos a noite em vigília, colocando compressas frias sobre a testa dela.

Bernardo pousou uma mão sobre a testa da jovem, passando em seguida para as laterais do rosto.

— É, ela ainda está um pouco quente... – comentou o rapaz. – É bom descobri-la um pouco, para que a temperatura corporal não volte a subir...

Dizendo isso, o rapaz levantou-se e puxou uns dois cobertores, dobrando-os até a altura dos joelhos da menina, deixando-a coberta apenas por um lençol mais leve. Depois, sentando-se novamente, pôs-se a examinar seus olhos: com o dedo indicador, puxava a pálpebra inferior de um olho, verificando-o bem e em seguida, fazendo o mesmo com o outro olho.

Logo após, o rapaz puxou a maleta sobre o colo e a abriu, retirando de dentro dela um estetoscópio. Posicionando as olivas auriculares do instrumento em seus ouvidos, disse à paciente:

— Com licença, senhorita...

E em seguida inseriu o diafragma do aparelho sob a gola da camisola rendada. Depois de alguns segundos de ausculta, o doutor retirou o diafragma do peito da paciente e comentou aos pais da moça, que assistiam a tudo com atenção e certa ansiedade:

— A frequência cardíaca está regular. Não há grandes alterações no padrão dos batimentos, até o momento...

Por último, o médico tirou da maleta um esfigmomanômetro e ajustou-o em um dos braços da paciente, inserindo por baixo do manguito do aparelho o diafragma de seu estetoscópio.  Após a aferição de pressão arterial, o doutor finalizou o exame, retirando o aparelho do braço da moça e as olivas auriculares de seus ouvidos.

— Bom, de tudo o que os senhores me relataram até agora e do que pude constatar na senhorita sua filha, o que percebo até o momento são sinais típicos de desnutrição... - explicou o rapaz ao coronel e à mulher. – Os olhos fundos, a palidez, a pressão baixa, a cor arroxeada das unhas, todos estes sinais de fraqueza apontam para a insuficiência de nutrientes no corpo dela. Com a falta de nutrientes, caem também as defesas do organismo, o que talvez explique a febre persistente...

— Mas o doutor consegue identificar o que ela tem? Que tipo de enfermidade é esta? – perguntou o coronel, com preocupação no olhar.

— Bem, os sintomas que sua filha apresenta são comuns a muitos problemas: alterações no sistema nervoso, doenças relacionadas ao ouvido interno, problemas no funcionamento do coração... - explicou Bernardo. – De imediato, assim, é muito difícil identificar as causas, eu teria de me debruçar por mais tempo sobre o caso...

— Entendo... – respondeu o homem.

— Minha recomendação no momento é que a senhora, Dona Iolanda, prepare um chá de manjericão bem forte para sua filha, para baixar a febre. Esta infusão irá causar uma sudorese intensa, o que ajudará a temperatura corporal a diminuir. Depois disso, a senhora pode banhá-la em uma água mais fresca.

— Eu não sei se ela conseguiria tomar o chá, doutor...  – iniciou a mulher do coronel. – Ela não come há três dias. Tudo o que lhe cai no estômago, ela vomita minutos depois...

O rapaz puxou um bloco de notas e uma caneta de dentro da maleta e começou a escrever.

— Neste caso, vou prescrever um medicamento anti-vômito, o coronel mande alguém à cidade buscar depois. Ela deverá tomá-lo cerca de 30 minutos antes de cada refeição, vai ajudá-la a segurar o alimento no estômago. Aqui está, coronel – disse Bernardo, passando a receita para as mãos do homem.

— Obrigado, doutor. Vou mandar o Tião à cidade agora mesmo, buscar esse remédio...

E voltando-se para Dona Iolanda, o médico falou:

— Uma outra opção para baixar a febre, seria umedecer chumaços de algodão no álcool e colocar sob as axilas e nas solas dos pés da sua menina. O álcool irá puxar a febre e ajudar a temperatura corporal a diminuir. No entanto, vai desidratá-la um pouco também. Dê-lhe bastante água depois. Recomendo também que sua filha faça refeições leves, por estes primeiros dias. Podem ser papas, canjas, algo que seja nutritivo e fácil de deglutir. Evitem temperos de sabor forte e coloquem um pouco a mais de sal na comida dela, para regular a pressão arterial. Ela precisa estar bem nutrida para reagir bem ao tratamento.

— Está certo, doutor, irei providenciar... – respondeu a mulher.

— Bom, agora convém deixá-la descansar... – disse o médico, guardando seus equipamentos de volta na maleta e se levantando.

E dirigindo um último olhar à menina, lhe disse:

— Mais tarde eu volto para ver como a senhorita está.

— Nós lhe agradecemos muito doutor... – disse o coronel – E imaginamos que o senhor também queira descansar da viagem. Venha comigo, irei levá-lo ao quarto de hóspedes.

Os dois saíram do cômodo e o coronel o conduzira novamente pelo corredor, levando-o a subir um pequeno lance de escadas, no final do qual se encontrava um corredor menor acima. No primeiro aposento após o topo da escada, o coronel parou e abriu a porta, estendendo a mão para dentro do quarto, em um gesto de convite:

— Fique a vontade, doutor. Sinta-se em sua casa...

— Eu agradeço sua hospitalidade, coronel... – disse o moço ao entrar, tendo seu gesto seguido pelo outro.

— Veja só, o Tião já trouxe sua bagagem... – comentou o homem, apontando para um cantinho do quarto onde se encontravam as malas. – Bom, aqui há um armário bastante espaçoso, onde o senhor pode organizar seus pertences como lhe aprouver. Temos também um criado mudo ali ao lado da cama, uma escrivaninha, e ali ao fundo há um banheiro – disse o coronel apontando para os objetos no quarto. – O doutor fique à vontade para se organizar e descansar. O almoço será servido daqui a pouco...

— Eu lhe agradeço mais uma vez, coronel... – respondeu Bernardo.

— Disponha... – disse o homem, rumando em direção à porta.

Antes de cruzá-la, porém, o coronel parou e voltou-se para Bernardo:

— Olha, doutor, eu vou lhe ser muito franco: é difícil que eu simpatize com um camarada assim, à primeira vista. Quando vi o Tião trazendo da cidade um moço tão jovem, não nego que, dentro de mim, cheguei a duvidar de sua competência... mas vendo o esmero e o respeito com que o senhor examinou minha filha, não há para mim dúvidas de que o senhor seja um profissional honesto e dedicado. Eu espero, de verdade, que nos tornemos bons amigos...

— É o que também desejo, coronel... – respondeu Bernardo, agradecido pelas palavras do homem.

— Bom, como já disse e reitero: sinta-se em sua casa. Com sua licença, doutor...

O coronel retirou-se do aposento e fechou a porta. Bernardo expirou e sentou-se na cama, soltando a maleta ao seu lado. Poderia, enfim, respirar e reorganizar sua mente; tentar entender melhor o que havia acontecido minutos antes, nos aposentos da senhorita Linhares.

— O que foi isso? – murmurou o rapaz para si mesmo, passando as mãos pelo rosto.

A menina era apenas mais um doente, como tantos outros que já vira em sua vida, como tantos que acompanhara em seus estágios. Por que, então, aquela visão o impactara? O que havia de diferente? Seria o choque de ter, pela primeira vez, um paciente real totalmente sob seus cuidados, sem a supervisão de nenhum superior? A insegurança e o nervosismo de ter por primeiro caso a filha de alguém tão distinto como o coronel Linhares? Compaixão pela moça? Pena, talvez? Ou quem sabe, nenhuma dessas coisas. A sensação dentro de si era indefinível e inominável. De qualquer forma, não poderia deixá-la transparecer outra vez. Os aspectos humanos e pessoais não poderiam comprometer seu profissionalismo como médico.

Abanando a cabeça e afastando os pensamentos para longe, o rapaz jogou-se para trás e deitou a cabeça sobre o travesseiro. Precisava descansar ao menos um pouco da longa viagem e refazer-se do susto do acidente. As costelas haviam voltado a doer.

Com o passar dos minutos, o cansaço do corpo e da mente o dominaram. Algum tempo depois, não restava mais nada, além de olhos fechados e uma respiração pesada.


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Notas finais do capítulo

Bom, pessoal, é isso aí :D
Dei uma rápida revisada geral, porque queria postar o capítulo logo kk
A parte do exame foi a mais difícil de escrever kkkkk precisei de muita, mas muita pesquisa a respeito de instrumentos, procedimentos, técnicas e muito mais. Por isso, se houver algum profissional da saúde lendo essa fic, peço que relevem qualquer besteira que eu possa ter escrito kkk
No mais, espero que tenham gostado :D
Bjs e até o próximo capítulo!



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