Elvenore: A Revolução Das Marés escrita por Pandora Ventrue Black
O Castelo da Alta Corte
Passei a noite inteira rolando no pedaço de tecido que me servia de cama. A manta fina estava parcialmente molhada, umedecida pela terra da floresta, frio e minha mente, uma combinação perigosa. Não consegui esquecer o chiado de dor que escapava da boca do animal enquanto ele dava seus últimos suspiros de vida, não esqueci a forma fria que atirei na loba, como se ela não tivesse importância alguma.
Me sentia suja, elfos não matavam assim, somos piedosos até nesse sentido.
Toda morte tinha seu valor e glorificamos a carne quando precisávamos abater algum animal. Cada vida era prestigiada e fazia parte de nossa cultura protegê-las. Mas ontem eu havia matado sem nem ao menos agradecer, havia colocado uma flecha no crânio do canino sem pensar duas vezes.
Era horrível pensar que eu estava começando a agir como uma humana.
Entretanto, se não tivesse agido com tanta rapidez, Dominic não estaria vivo.
— Elfa? Está acordada? — Um dos soldados me chamou — Está na hora de partimos.
Resmunguei um “bom-dia” e me levantei. Meu corpo parecia ser feito de pedra, duro e impossível de movimentar. Rasdir repousa sua cabeça quente em meu ombro, carinhosa como sempre.
— Oi, minha querida — Falei, acariciando seu focinho.
Ela relinchou baixinho, curvando-se para que eu subisse nela. Mas antes de conseguir montar, percebo que exata selada, com estribo, o assento e tudo mais. Engulo um grito de ódio com força, rasgando a minha garganta. Rasdir nunca esteve perto de nenhum desses instrumentos.
— O que fizeram com você? — Sibilei, tocando no material de couro.
— Não podemos deixar você se apresentar na Alta Corte em cima de um corcel selvagem — A voz de Rei Evander ecoa pela floresta, chocando-se contra a minha pele como vários tapas ardentes — De nada.
— Acredite, não ia agradecer… — O encaro, queria poder socá-lo.
Ele estava tentando me tornar humana e eu odiava isso.
— Não selamos os cavalos, Rei Evander — Digo, montando em Rasdir.
— Um costume que nunca entenderei…
— Esses animais não são nossas propriedades — Minha voz sai séria, menos sutil e delicada, quase agressiva — São nossos amigos.
— Bem, você não está mais em Elfdale, ou está? — Um sorriso de escárnio assume seu rosto, enquanto aperta as rédeas de seu animal.
Calo-me, antes de insultá-lo e ser severamente punida.
— Isso é música para os meus ouvidos, Kyanite — Falou, assumindo a dianteira da formação — Continue assim e seremos ótimos parceiros.
Um grunhido animal escapa de meus lábios, podia sentir o calor da raiva percorrer o meu corpo. Sabia que meu olhos tinham mudado de cor, pois o soldado que estava do meu lado me olhou estranho e logo em seguida se afastou de mim quando começamos a andar. Vermelho escuro, devia ser a cor que viu.
— A cor de seu olho mudou — Apontou Dominic, cavalgando ao meu lado — Parece uma bruxa.
— Obrigada? — Murmuro, evitando dar-lhe mais atenção do que merecia.
— Como faz isso? — Indagou, com seu olhar voltado para o horizonte — Já vi seu pai enfurecido, os olhos dele nunca mudaram de tom.
— Eles mudam de cor de acordo com as nossas emoções — Explico, mal segurando as rédeas de Rasdir que parecia terrivelmente desconfortável — É involuntário, mas podemos controlar quando treinamos bastante. Elfos mais velhos como o meu pai e Novak conseguem.
— Quantos anos você tem? — Indagou — Perdi as contas depois do seu aniversário de quinze anos.
— Por que está falando comigo? — Retruco, encarando-o — Ou melhor, por que não está me insultando?
— Simples, morará conosco e não quero me estressar na minha própria casa — Ele respira fundo, finalmente repousando seu olhar em mim — Não quero inimizades no mesmo lugar em que durmo.
— Tem medo que eu te mate?
Dominic não responde, apenas encara o caminho à sua frente.
— Não sou tão baixa assim — Murmuro, observando como os raios de sol deixam os seus cabelos negros, levemente castanhos — Mataria você em um duelo, quando pode lutar e se defender.
— Uma atitude muito honrosa, Kyanite.
— É um elogio? — Pergunto e ele dá de ombros, indiferente.
— Aceite como quiser… — Balanço a cabeça e me viro para Rasdir, trançando seu pelo — Quantos anos você tem?
— Está muito curioso hoje, Dominic.
— Apenas me responda — Resmungou, irritado.
— Dezenove.
Um silêncio estranho ocupa o espaço entre nós. “Disse algo errado?”, pensei “Provavelmente não. Dominic que é muito temperamental”.
O resto do caminho seguiu assim, silencioso. Pude ouvir os pássaros cantando e o relinchar dos cavalos, mas nada além disso. Os homens ao meu redor estavam quietos, solenes, até mesmo Dominic, que emudeceu-se ao meu lado. Parecia magoado, encarando a floresta e pigarreando algumas vezes.
Depois de uma colina verde e um caminho de pedregulhos que mais pareciam conchinhas brilhantes, erguia-se o palácio branco, dourado e azul da Alta Corte Real. A obra arquitetônica parecia reluzir quando os raios de sol tocavam suas paredes de pedra. Podia ouvir o oceano se chocar contra a base do castelo. De onde eu estava podia ver o mar, as nuvens rechonchudas e o sol, que se despedia de mim.
Era um conto de fadas.
Tão belo que parecia sobrenatural.
Etéreo e forte.
O som de trombetas luta com o das ondas, anunciando a minha chegada. Diante das portas altas e reluzentes do castelo estava uma senhora, com um belo vestido azul-escuro, e um menino de cabelos castanhos e roupa real branca. Rainha Evangeline e príncipe Nicholas.
— Bem-vindos de volta — A voz de Evangeline é doce e sutil, como andar em um tapete fofinho.
— Mãe — Dominic fala, descendo de seu cavalo e a abraçando.
Rei Evander assentiu, primeiro para sua esposa e depois para seu filho mais novo.
Eu não estava conseguindo prestar atenção em sua conversa, a beleza do lugar era hipnotizante, parecia o paraíso. O cheio de sal e areia invade o meu nariz e a brisa morna bagunça o meu cabelo, desfazendo as tranças de Novak. Aqui era completamente diferente de Elfdale.
Minha aldeia passava oito meses do ano coberta por gelo, sendo que quatro meses o Rio Branco ficava congelado. Os dois meses que sobravam era um inverno ameno, não tão congelante, mas frio. Podíamos ver as kyanites surgindo por entre a neve, salmões de todas as cores pulando rio abaixo, os pinheiros verdes exibiam suas folhas complexas e o degelo permitia uma caminhada confortável por Elfdale. Era nesse período também, que podíamos caçar, cervos, coelhos, ursos e lobos.
A Alta Corte era completamente diferente. O oceano contemplava a parte norte de seu território, imponente e, no momento, sereno. As árvores não eram como as de Elfdale, imutáveis e rígidas, havia coqueiros e plantas frutíferas, uma explosão de cores e sabores, presumo. O vento não era frio, e sim, quente, como um abraço materno. As vilas ao redor do palácio eram de casas simples, algumas de madeira e outras de tijolos. A vida pulsava naquele lugar, com mercados, lojas de perfumes e crianças.
— Kyanite — A Rainha me chama — Está tudo bem?
— Ah, hum… — Pigarreio, tentando acalmar o meu coração alegre — Sim, estou sim.
— Apreciando a paisagem? — Ela sorri.
Percebo sua pele morena, bronzeada e brilhante por conta do Sol. Seus cabelos eram cacheados, mais ondulados que os meus e estavam presos em uma trança grossa e escura. Parecia uma deusa com seus olhos de um marrom tão claro que pareciam dourados e sorriso perfeito.
— Aqui é bem, hum… diferente de Elfdale.
— Imagino que nunca tenha vindo para um lugar tão quente — Disse, sinalizando para que um de seus empregados me ajude a descer de Rasdir.
— Realmente… — Falei, passando a mão pela minha testa suada — Os verões em Elfdale costumam ser abaixo de zero.
Sua risada é elegante e melódica.
— Sentirá falta do frio, então?
— Eu… — Respiro fundo, sentindo o sol tocar a minha pele. Estava quente, bem quente para o que estava acostumada, mas era bom, muito bom — Eu acho que não, Rainha Evangeline.
— Só Evangeline — Pediu, apontando o caminho — Venha comigo, te guiarei pelo palácio.
— Sim, hum… — Eu não queria perder aquele clima agradável — Podemos andar um pouco pela praia? Não quero…
— Imagino que deteste as construções humanas — Uma voz alegre percorre o meu corpo, era Nicholas com um sorriso jovial no rosto.
— Eu não…
— Não seja rude, Nick — Sua mãe o reprimiu, fazendo-o sorrir mais ainda.
— Estou mentindo, Kyanite?
— Não quero ser absorta pela vida real ainda — Falo diplomaticamente, observando o homem à minha frente.
Nicholas era parecido com seu irmão, mas, diferentemente de Dominic, seu sorriso era mais frequente e parecia ser uma boa companhia, com sua voz tranquila e olhos curiosos e brilhantes como os de sua mãe.
— Sinto muito, minha querida — Evangeline falou, segurando a minha mão — Pode ir para a praia com Nicholas, ele conhece melhor o lugar.
— Isso seria uma honra — Ele se curva na minha frente, esticando sua mão — Aceita?
— Obrigada, Evangeline — Uma linha fina que deveria imitar um sorriso se forma em meus lábios enquanto seguro a palma lisa e quente de Nicholas.
— Não voltem tarde — Pediu, abrindo espaço no cascalho claro para que possamos andar — O jantar é servido às oito.
— Sim, mãe — Brincou revirando os olhos — Não é como se eu não tivesse nascido aqui — Ele olha para mim, apertando a minha mão e depois a soltando — Me diga, Kyanite, o quanto conhece sobre o oceano?
Depois de bons minutos ouvindo Nicholas falar sobre os animais marinhos e os povos sereianos, finalmente chegamos a praia. Tiro a bota de couro e deixo meus pés afundarem na areia macia e quente, era como se estivesse tirando todas as energias ruins de mim e recarregando-me com a pureza do mar.
Caminho ao seu lado, em silêncio, prestando atenção em seu monólogo sobre as sereias e sereianos enquanto aproveitava o cheiro do oceano e o barulho sereno das ondas.
— Você sabia que havia sereias nessas partes de Elvenore? — Falou, apontando para uma caverna escura a mais de três quilômetros de distância da gente — Viviam ali, na Caverna Opal, mas não aparecem mais.
— Talvez seja culpa de vocês… — Murmuro encarando a areia fina.
— O que?
— Acho que as sereias não saem mais por conta de vocês — Reafirmo, olhando-o — Quer dizer, há palácios aqui, muitas pessoas… Talvez prefiram a tranquilidade da Caverna Opal ao invés da muvuca humana.
— Não consegue mentir não é?
— É apenas a minha opinião…
— Eu concordo com você, Kyanite — Soprou, com um sorriso no rosto, ainda percorrendo a orla com o seu olhar — Mas me surpreendo por alguém pensar como eu…
— Sereias são caçadas por vocês, as escamas delas são preciosas… Devem temer serem mortas toda vez que ousam se aventurar por um mundo que costumava ser delas.
— Eu sei, são uma ótima fonte de dinheiro… Acho que valem mais do que ouro — Falou, pensativo, com as mãos atrás das costas — Há caçadores de sereias em nosso reino, mas só podem caçar quando elas estão em mar aberto… Somente loucos entrariam na Caverna.
— Uma beleza fatal…
— Sim, certamente — Ele para, me olhando, ou melhor, me analisando — Suas tranças estão se desfazendo — Apontou, tocando em meu cabelo — Posso?
Assinto, deixando que ele se aproxime.
— Deve ser o vento e o percurso todo de cavalo — Explico sentindo seu toque sutil e carinhoso — Obrigada.
— Elas tem significados, não é? — Indagou, roçando a ponta de seus dedos em meu pescoço, fazendo-me estremecer — Desculpe.
— Sim, hum, todas tem — Explico — Como sabe?
— Eu, uh, leio muito — Falou, tocando me meus ombros para avisar que havia terminado — Não sou como o meu irmão, Dominic.
— Isso é bem visível — Sorrio, encarando-o.
— Que bom…
Balanço a cabeça, o convidando para continuar o passeio. Era bom ter alguém como ele ao meu lado, sereno como uma manhã de inverno, algo que Dominic nunca será. Permaneço ao seu alcance, caminhando em silêncio, escutando-o falar sobre tudo o que sabia sobre os elfos, tudo que havia lido e estudado sobre mim e minha espécie. Seu tom não era de colonizador, conquistador, e sim educado e com interesse. Um historiador a fim de entender para ajudar e não para destruir.
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Espero que tenham gostado!