O Tempo Que Não Passa Nessa Cidade escrita por Youth


Capítulo 4
Marcos - Lynch e Austen




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4

                O pai de Marcos havia tido aquela velha discussão com seu avô (novamente): sempre o mesmo assunto, as mesmas palavras e a mesma velha amargura pela locadora. Sim, era óbvio que alugar dvds não era (E nem poderia ser, tecnicamente) o negócio mais rentável do mundo, mas, ainda assim, era parte da vida tanto do avô, quanto do neto, que cresceram ali, meio à nomes renomados e artistas de cinema, de Elizabeth Taylor à Marlon Brando, do Poderoso Chefão à Uma Linda Mulher. Não havia dinheiro no mundo que pagasse o amor de Marcos ou de seu avô por aquela locadora, por aqueles filmes e por toda nostalgia que lhes era proporcionada quando lá estavam.

                Abrir a Netflix e procurar um filme no catálogo era prático, sem dúvidas, mas nada mais clássico e estimulante que vasculhar as prateleiras de dvds e ficas cassete, procurando religiosamente por descrições, sinopses, histórias, rostos e nomes conhecidos — ou desconhecidos, tornando tudo melhor ainda. Marcos era apaixonado por filmes antigos na mesma medida que era por música antiga. Seu filme favorito era, sem dúvidas, “O que terá acontecido com Baby Jane?”, pois toda especulação e escândalo que rondavam os bastidores dessa produção deixavam seu coraçãozinho curioso e pensativo, ademais, é claro, era um clássico sem precedentes.

                Mas o pai não enxergava (Ou tinha) a mesma paixão que o filho e seu avô. Ele só via as contas chegando e a inércia da locadora, que mal pagava as próprias dividas... e isso o deixava extremamente desgostoso, tendo que bancar toda a casa sozinho. Para ele a melhor opção, sem dúvidas, seria fechar a locadora e alugar o local, que ainda era um ponto agradável — bom, pelo menos ele também achava, mas sabemos que não era. Marcos não era fã dessa ideia, o avô menos ainda (Mas, infelizmente, parecia inclinado a concordar, estando inerte desde que adoeceu e sem forças para lutar pelo contrário). O resto da família pouco sabia fazer, encurralados com toda severidade do pai (Que, apesar de não ser agressivo, não era a pessoa mais amável do mundo).

                O pai de Marcos, além da questão econômica, é claro, tinha outras razões para desejar o fim da locadora: há muito enxergava no filho uma solidão assustadora e extremamente angustiante. Não tinha amigos, colegas ou pessoas para conversar, gastando todos os seus dias e momentos de sua vida enfurnado naquela locadora, vendo filmes, ouvindo música antiga e lendo quadrinhos, sempre sozinho... E que pai consegue ver isso e achar normal? Não um que, apesar da severidade e amargura, ainda desejava todo o bem para o filho. Além disso, é claro, ainda tinham as malditas “línguas grandes” que o irritavam desmedidamente, fofocando e fazendo teorias bizarras sobre Marcos, o chamando de estranho, maluco ou doente — todavia, a raiva que vinha desses comentários ele canalizava e descontava no próprio filho, achando que assim ele poderia mudar.

                Foi por isso que Marcos chegou chorando na locadora naquele dia, se sentou no chão e ficou lá, pensando em tudo e em todos, na sua existência complexa, na sua solidão alegre e na incompreensão do pai dos seus próprios gostos. Quando ele levantou o rosto enxergou o rapaz de sorriso de raposa lhe encarando, com um olhar amigável, através de uma chuva densa que cobria o chão de lágrimas dos céus escurecidos. Ele sorriu. Eles sorriram. Eles fizeram as pazes.

                — Lynch e você?

                — Austen.

                —  Quer ver uma coisa legal?

                — Quero.

                Lynch — ou Marcos — sorriu, pegou um cristal que guardava com todo cuidado sobre a bancada da locadora e uma lanterna. Quando ligou a luz e apontou para o prisma, um arco-íris brilhante surgiu e coloriu a parede cinzenta atrás de si. Austen — ou Marcus — sorriu e aplaudiu, de longe, a cinco metros, no seu lugarzinho do mundo.


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