O Tempo Que Não Passa Nessa Cidade escrita por Youth


Capítulo 5
Marcos - quem vai falar primeiro?




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5

                Chegou um momento em que as chuvas pararam de cair com frequência, criando um tempo mais firme e calorento naquela cidadezinha. Austen e Lynch, ou Marcus e Marcos, passaram os últimos dias distantes, conversando por bilhetes e cartazes, cada um de seu lugarzinho no mundo. A sensação aconchegante de estar num ambiente familiar facilitava — e muito — a aproximação tênue dos dois que, cá entre nós, eram dos mais belos exemplares de timidez humana. Austen costumava chegar ao sebo da tia às nove horas, Lynch, nesse momento, já estava na locadora, chegando sempre, religiosamente, às oito da manhã. Quando entravam se cumprimentavam com acenos carismáticos e sorrisos sinceros, mas nada além disso durante algum tempo.

                Como o som de suas vozes quase sempre era abafado pelas lágrimas chuvosas que despencavam sob o chão, descobriram uma outra maneira de conversar entre si, ainda a distância: uma velha conhecida do mundo antigo — lê-se, aqui, mundo antes da virada do milênio — que ainda reinava por aqueles lados, naquela cidadezinha onde o tempo parecia não passar: a lista telefônica — e, é claro, o telefone fixo, que ainda era usado comumente entre os habitantes, em razão de uma densa instabilidade das operadoras móveis.

                Lynch descobriu o número do sebo de Austen e, todos os dias que via o garoto de cabelos coloridos atravessar a rua chuvosa, com um guarda-chuva florido e galochas amarelas, corria para seu telefone e discava o número do estabelecimento a cinco metros dali.

                — Hello darkness, my old friend... — não era a voz de Lynch no telefone, como podia se averiguar. Era uma música de 1964, chamada “Sound of silence”. Marcos havia tido essa ideia graças a um de seus filmes favoritos: as Virgens Suicidas. Marcus entendeu de cara e se divertiu bastante com a ideia. A partir daí começaram a trocar ligações contínuas, em que nada diziam, apenas tocavam músicas com algum significado ou ainda “pedaços de uma conversa musical”. Às vezes, quando faltava criatividade, um só ligava pro outro para tocar uma música que gostavam. Mas nada além disso. Um não se recordava do tom de voz do outro.

                — Hello, i’ts me — “olá, sou eu”, ouvia-se a voz de Adele no telefone de Austen. Lynch sorriu e chacoalhou a cabeça, olhando por cima da bancada da locadora o além dos vidros da vitrine, observando Marcus com seu celular próximo ao telefone fixo.

Austen ergueu os olhos para Lynch. Um sorriu para o outro, daquela distância tão ínfima, mas tão significativa. Acenaram. Sorriram. Corações batendo em uma perfeita sincronia. Um sibilou oi, não sei exatamente qual, o outro leu seus lábios e respondeu com “olá”. Ainda se olhavam. Olhos nos olhos. O preto no castanho. Cinco metros de distância, uma rua molhada, um clima chuvoso e uma cidade em que o tempo parecia não passar, mas passava, passava, passava e passou. Já estavam se olhando por tanto tempo que se tornou constrangedor. Austen se acanhou e recuou um pouco, com um risinho envergonhado. Lynch permaneceu com seu olhar firme, desafiador e corajoso. Nunca na vida havia se sentido tão próximo a alguém — mesmo daquela distância — e esse era um sentimento que, por nada, ele deixaria escapar. 

Austen ergueu os olhos novamente, com uma expressão diferente, mais rígida e preocupada. Engoliu seco e arqueou as sobrancelhas, voltando a olhar Lynch no fundo dos olhos — e Marcos, sem precisar de um cartaz erguido a cinco metros através da chuva, ou de uma música com uma letra com significado explicito, ou qualquer palavra na voz desconhecida de seu vizinho, compreendeu perfeitamente o que aquele olhar significava. Pôde, inclusive, imaginar a conversa perfeitamente:

“Quando vamos nos falar de verdade?” — Austen perguntaria.

“Eu tenho medo de não ser interessante, bonito ou divertido o suficiente e te afastar sem que você me conheça de verdade” — Lynch responderia, mesmo não sendo essa a pergunta de Austen.

“Então continuamos assim? Cada um no seu mundo, amedrontados nossas especulações?”

“Eu não sei. Não tenho coragem”

“Eu acho que tem sim”

Então se olharam novamente. Lynch engoliu seco. Austen esboçou um olhar de decepção. Lynch suspirou e fechou os olhos.

Afinal, não chovia mais lá fora. E não haviam razões, que não a chuva, para mantê-los, assim, tão distantes — além, é claro, de seus medos imaginários e suas timidezes arrebatadoras. Austen olhou Lynch mais uma vez, parecia o convite final. Marcos engoliu seus medos, deixou o telefone de lado e atravessou a locadora.

Quando menos percebeu, estava no meio da rua, olhando para dentro do sebo. Austen o encarava. Afinal, era, enfim, a vez dele.


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